2. Encontros memoráveis na Praça

 

 Uma das personagens com quem me sentei inúmeras vezes na Praça Alexandre de Albuqerque, entre 1969 e 1972, dava pelo nominho de Baje, figura emblemática conhecida de toda a Praia, que o cognominava de “ministro da informação”, pois estava sempre a par das últimas, particularmente dos movimentos no porto, naquela altura o coração da circulação de pessoas e mercadorias, emprestando ao pontão da Gamboa uma agitação palpitante, bote-vai-bote-volta, que o ancoradouro era em plena baía, a dezenas de metros de distância.

Ora pessoas, que desciam por escadas pendentes dos barcos maiores, ora mercadorias, pendendo de cordames, umas e outras eram acomodadas nas travessas e nos lastros dos botes, e logo transportadas a remo até ao pontão, onde os passageiros eram ajudados a desembarcar, e as mercadorias eram levadas por estivadores para armazéns ou camiões.

Sempre vestido a preceito, casaco, gravata e chapéu alto, o Baje, inseparável da sua bengala, era um homem conversador, apesar da língua travada que lhe atrapalhava o discurso. Fazia questão de que soubéssemos quem tinha desembarcado, se na cidade, na ilha ou no arquipélago tinha ocorrido algum acontecimento de relevo, ou mesmo se a nível internacional circulava alguma notícia mais sonante...

Em um destes encontros, se bem me lembro lá para finais de 1971, o Baje chegou com ar de quem tinha a notícia do ano. Sentou-se, tirou o chapéu, que enfiou como de costume no punho da bengala, solicitou como habitualmente o seu café e anunciou com solenidade que tinha escrito um livro. E, questionado sobre o respetivo conteúdo, não se descoseu e fez-nos saber que a obra tinha 9 capítulos, cada um dos quais com 9 artigos, por sua vez com 9 parágrafos cada. Um valente livro, de que entretanto nunca lográmos conhecer os desenvolvimentos...

Uma outra personagem, curiosamente com o mesmo problema de mobilidade da língua, era o Tchibita, um rapaz aí pela casa dos 30, que além de disástrico era também vesgo e manco de um braço, que tinha atrofiado e paralisado. Era esperto e persistente no gesto repetido de estender a mão válida. Não se sentava às mesas, pois não consumia. Limitava-se a abordar os clientes da Esplanada pelo lado de fora da cercadura que limitava o espaço, e apenas queria moedas.

Uma terceira personagem que chegava frequentemente à Praça era o Vává. Vinha dos Órgãos, sempre a conduzir o seu automóvel imaginário, que motorizava com o vibrar dos lábios, brrrrrruuuum, brrrrrrruuuum... Até que estacionava, e quando alguém na galhofa o advertia de que tinha deixado a porta aberta, “fechava-a” batendo a mão na coxa...

Uma característica comum a todas estas personagens um tanto excêntricas era a de manterem níveis de educação exemplar, não lhes dando para incomodarem quem abordavam, para além da persistência nos objetivos que cada um perseguia...

Mas para além destas personagens de todos conhecidas por fazerem da Praça o seu espaço de presença atuante, foi nos momentos de descontração entre os afazeres intensos que tinha que eu conheci na Praça algumas personalidades marcantes. Uma delas, inesquecível, foi o professor Velhinho Rodrigues, homem de idade madura, invariavelmente armado da sua máquina fotográfica a tiracolo e de alguma leitura em que andava embrenhado. As conversas com o professor eram sempre elevadas e até eruditas, não fosse ele um docente competente, experimentado e dedicado, pois ensinara gerações sucessivas de crianças na Calheta de S. Miguel. Em tempo de férias, o seu hobby era a fotografia.

Já o Arménio Vieira era por essa altura um jovem ainda na casa dos 20, mas com uma maturidade intelectual invejável. A poesia bailava-lhe na mente, nos olhos e na conversa, que alimentávamos mais no Caxito, um café ali ao lado, do que na Esplanada. Foi das poucas pessoas com que me cruzei por essa altura com preocupações existenciais para além do imediato, a par do Armando Simões, também ainda na casa dos 20 e que, além de meu homónimo, se revelou uma alma gémea, melómano, leitor inveterado, analista social, frontal, um rapaz para além daquela época, e ao mesmo tempo funcionário público competente dos Serviços de Educação, zeloso e preocupado com a formação das crianças e da juventude.

De uma tertúlia de alunos e ex-alunos do Liceu, não me esquecem as saídas contagiantes do Raúl Barbosa, à roda de uma mesa de apreciadores de cerveja, ao entrar da noite. Num desses serões, desalentado por alguma desilusão amorosa de momento, saiu-se com uma cançoneta de um só verso que rezava assim: “cusa más ca sábi, bu crêl, el ca crêbu, ba-pum ba-pum, ba-pum ba-pum”. Gargalhada geral, seguida de inquérito... Ainda hoje me vem à ideia a associação desta letra com a respetiva música e com o semblante descoroçoado que o Raúl afivelava naquele cair de noite...

Num tempo em que a comunicação era direta e imediata, ou não era, o convívio era uma necessidade e uma prova de vida presencial, e a Praça era o palco de encontros os mais diversos. Se os bancos, os canteiros, as estátuas e o coreto falassem, haviam de nos saciar a curiosidade de recordar e compreender aqueles tempos tão diferentes dos de agora...

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