42 - SalAnima, um evento memorável

 

No início do verão de 2013 respirava-se na Ilha do Sal um ar de preocupação com a perspetiva de um abrandamento no volume de reservas de turismo, que tinham vindo a crescer dois dígitos anuais no último triénio, até atingirem perto de 534.000 entradas e mais de 3.334.000 noites dormidas em estabelecimentos hoteleiros no país em 2012, mas ameaçavam estagnar já na época alta que se aproximava, refletindo a retardamento a descida sustentada do PIB per capita nesse período, na generalidade dos países europeus, de onde provinha a quase totalidade dos turistas que procuravam Cabo Verde para as suas férias, como viria a verificar-se, pois o crescimento das entradas e das dormidas haveria de cair para 3,4 e 3,1% respetivamente em 2013 e seria mesmo negativo em 2014.

O alerta foi surgindo de vários lados: por Andrea Vita Finzi, do Hotel Crioula; por Américo Soares, cujo restaurante, icónico em Santa Maria e com desdobramento no Aeroporto Amílcar Cabral, acusava com antecedência as variações da demanda no mercado; por Luciano Teixeira, que explorava o Café Cultural na Praça Central de Santa Maria, mas que se via obrigado a encerrar a estrutura de restauração que instalara com natural expectativa no norte da ilha, na Buracona; por Benoit Vilain, da Morabitur, que geria uma importante operação de ligação do turismo a partir do Sal e da Boavista às restantes ilhas de Barlavento e às de Sotavento; por António Manuel Lobo (Patóne), um dos fundadores da Unotur, que ampliara o hotel Odjo d’Água para 46 quartos; ou de João Inglês, na altura Delegado da TAP em Cabo Verde. Numa ilha cuja economia se estruturava a quase 100% à volta de serviços gerados pela indústria do Turismo, a apreensão que transpirava de responsáveis por hotéis, restaurantes, companhias aéreas e outros operadores turísticos traduziam uma ansiedade bem mais abrangente e profunda do que uma ameaça passageira e circunscrita, e tornava-se notório que pairava um clima de preocupação generalizada por parte de toda a gente que vivia do comércio e dos serviços.

Na Câmara de Turismo estávamos naturalmente atentos a estes apelos, e coube-me a mim, como titular do pelouro do “Produto Turístico, Marketing e Eventos e Relação com os Associados” convocar uma reunião com estas personalidades para consensualizarmos alguma ação que pudesse contribuir para prevenir, desarmar e revitalizar a ameaça de letargia em que a dinâmica criada pelo impulso de duas décadas de crescimento sustentado do Turismo se arriscava a mergulhar. Esta primeira reunião decorreu no Hotel Crioula, no final da manhã do dia 26 de junho de 2013, acolhida por Andrea Vita Finzi, um entusiasta da ideia de que havia que fazer algo para agitar as águas, juntamente com Américo Soares, que à data desempenhava funções de assessoria neste hotel, e Humberto Brito, um diretor de uma amabilidade inexcedível. Nela marcaram presença todas as personalidades acima citadas, que rapidamente manifestaram consenso quanto ao figurino de uma primeira ação, já ventilada por alto nas abordagens prévias, que consistiria em substância na organização de um mês de animação nas ruas de Santa Maria, que por um lado desse oportunidade aos residentes de cultivarem maior empatia com os benefícios que o Turismo atraía à ilha, e ao mesmo tempo proporcionasse aos visitantes ocasião de confraternizarem com a população local, em ambiente de fruição cultural mútua. Seria, de resto, no pensamento dos seus promotores, a primeira de outras animações a serem relançadas periodicamente, mormente no arranque de cada época balnear, a de inverno em outubro, e a de verão em maio.

 
Andrea Vita Finzi                            Américo Soares                            Humberto Brito
Levava quatro pontos na agenda: (i)Quando e em que condições poderia ocorrer este primeiro evento na cidade? (ii)Quais as animações suscetíveis de serem programadas? (iii)Modo de organização e lançamento da iniciativa? (iv)Contactos a serem feitos. Desde logo, foi definido o mês de outubro, no limiar da época alta, em horário vespertino, das 18 às 24 horas, de quinta-feira a domingo. Seriam fechadas nesse período duas ruas, a 1º de Junho e a que a liga ao Pontão. Seriam montados três ou quatro palcos, cada um com programação cultural diversa, de música, dança, teatro e outras artes performativas. Nas ruas e praças, atuariam batucadeiras, mimos, retratistas, malabaristas, ilusionistas, palhaços, gigantones, grupo de tamboreiros colá son djon… Haveria bancas de artesanato diante das respetivas lojas, assim como de bebidas, petiscos e doçaria. Seriam convidados decoradores para pintarem murais em algumas empenas e fachadas cegas. Elaborou-se uma lista de todas as empresas suscetíveis de se interessarem em colaborar no evento, num total de quatro dezenas, e foi distribuída uma quota de contactos a serem feitos com brevidade por cada um dos participantes na reunião. Calcularam-se custos, que ascenderiam a cerca de 200.000€, metade a ser traduzida em bens e serviços fornecidos pelas diversas empresas aderentes.

Paradoxalmente, do clima depressivo que gerou esta reunião, brotou de súbito uma certa euforia, ao ponto de se generalizar entre os presentes no encontro a convicção de que o montante avançado era conservador e fácil de arrecadar, perante a relevância do programa que acabava de ser pensado, que implicava a deslocação ao Sal de numerosos artistas, vindos quer das ilhas quer da Europa, e que incluía ainda o VI EITU, de três dias, com uma dezena de insignes oradores, nacionais e internacionais, tendo em conta que, distribuído pelas empresas e instituições aderentes ao projeto, se reduziria a uma média de 5.000 euros por cada uma, boa parte traduzida em géneros e serviços.  Um otimismo que, contudo, os factos depressa se encarregariam de desvanecer, desde logo quando os contactos bem sucedidos se reduziram a uma metade dos esperados, e o entusiasmo, tanto o nosso como o das empresas contactadas, ainda que tenha sido formalmente indesmentível, tardaria, porém, a converter-se em compromissos concretos, quer em fornecimentos, quer em financiamentos.

Pese embora Vita Finzi ter disponibilizado de imediato o Hotel Crioula, por essa altura o mais conceituado da ilha, para acolher o Encontro Internacional (VI EITU), assim como boa parte dos convidados e artistas que acorreriam aos dois eventos, e os restantes participantes nesta primeira reunião terem garantido também pelo seu lado serviços conforme a disponibilidade de cada um, ficou a meu cargo estruturar um plano de atuação que convocasse outros atores a colaborarem, mormente os que se evidenciavam como fulcrais para que fosse garantido o máximo sucesso possível à iniciativa.

A Câmara de Turismo era a entidade cujo papel agregador impunha por natureza que tomasse a dianteira, e foi aos meus pares da respetiva Direção que expus de imediato o projeto que se desenhava, aliás da forma mais conveniente, pois que emergia de um conjunto significativo de associados, e por isso mereceu acolhimento e aplauso imediatos, como viria a ser expresso no relatório da respetiva reunião de setembro, dia 9, elaborado pelo seu Secretário, Carlos Santos, já com a programação discutida e amadurecida, do qual ressaltava a importância que a Câmara atribuía à retoma dos Encontros Internacionais de Turismo, que permitiam “despertar uma onda de interesse maior junto dos governantes e da sociedade civil sobre a verdadeira importância do Turismo na economia do país,  trazendo experts de todos os cantos do Globo para partilharem connosco as suas experiências”, e à participação no SalAnima, “a primeira iniciativa gizada pelo setor privado do Sal para animação de rua”. Foi por isso nesta reunião de setembro que o Conselho Diretivo da Câmara, na altura presidido interinamente por Dinis Fonseca, numa altura em que Gualberto do Rosário se retirara por um período sabático, assumiu a titularidade da organização destes eventos e a adjudicação à CPL Events de Linda Pereira da respetiva gestão, já alvitrada pelos promotores em 19 de agosto, que envolvia o VI EITU e o SalAnima, aprovando também de caminho o orçamento que esta empresa apresentara, depois de gorados esforços para trazer a concurso empresas nacionais de organização de eventos, pois as que foram consultadas consideraram a tarefa demasiado complexa.

                                                                            Dinis Fonseca

Outra cooperação fulcral para o sucesso do SalAnima era a dos TACV, pelo que fui reunir com o Presidente João Pereira da Silva na Praia, no dia 9 de setembro, a quem expus o projeto que a Câmara de Turismo acabara de aprovar, que englobava o VI EITU, de 17 a 19 de outubro, e as animações de rua, designadas de SalAnima, a decorrer em Santa Maria de 17 a 20 ao final do dia, prolongando-se pelo final da semana seguinte, de 24 a 27, também das 18 às 24 horas, e a quem solicitei a preciosa colaboração da Companhia, em particular no transporte dos artistas convidados para atuarem no evento, cuja programação lhe seria apresentada em detalhe por Linda Pereira, da CPL Events, diligência que transitou para Eunice Barbosa, na altura Diretora Comercial da Companhia.

Coube, a partir daí, à CPL Events assumir todo o controlo operacional e financeiro dos dois eventos, e Linda Pereira não deixou, uma vez mais, os seus créditos por mãos alheias, mau grado todos os empecilhos que foram desafiando um cenário olhado à partida com descontração, mas que, no decurso da implantação no terreno, pôs duramente à prova a excelsa equipa, integralmente feminina, chamada a concretizá-lo, Linda aos comandos, a doce Andreia Mendes na logística, dando a cara a tudo e a todos, Carmen Colim nos bastidores, e Idália Freitas na retaguarda. Como habitualmente, a primeira ferramenta posta em marcha foi a sacramental checklist, com as sapatas de todos os pilares do edifício a construir: conferencistas e artistas a contactar; viagens e deslocações; alojamentos; alimentação e bebidas; segurança; palcos; salas e recintos de exibições especiais; equipa de monitores e assistentes; orçamentação; promoção; comunicação social; patrocínios; autorizações; design e produção de imagem; sinalética; apoio sanitário; gestão financeira, rubrica por rubrica. Nada foi deixado ao acaso, tudo passou a ser monitorizado diariamente, através do acesso de toda a equipa implicada, eu incluído, como responsável pela parte da Câmara e elo de ligação com os promotores, à incontornável checklist, por todos visitada, analisada e incrementada diariamente…

Equipa de Gestão do SalAnima

Uma vista de olhos ao registo da evolução de procedimentos preparativos do SalAnima que perpassaram por esta checklist revela-nos a imensidão de diligências desenvolvidas entre agosto e outubro em backoffice, para se conseguir a inclusão na programação de perto de uma centena de artistas, entre individuais e grupos - músicos, atores de teatro e de circo, pintores, animadores de rua, monitores infantojuvenis -, desde confirmar a sua anuência até à marcação de viagens e deslocações e à reserva de alojamento e alimentação…  Não esquecendo que o EITU[1] implicou volume semelhante de diligências, em contactos com conferencistas, moderadores, fornecedores e participantes…

Tudo redundou num acontecimento até então inédito nas ruas e praças de Santa Maria. Nos palcos do Pontão, da Praça Central e da Praça Manuel António Martins; no topo da rua 1º de Junho; assim como no Centro Cultural e por todo o percurso de ligação entre estes palcos, a Cidade viu exibirem-se praticantes das mais diversas artes, durante os serões dos sete dias em que decorreu o evento. Quem tenha participado nestas festividades não esquecerá o clima de euforia em que decorreu, com a rua 1º de Junho, a rua Georges Vynckier, o Pontão, a rua Manuel António Martins e a rua de Agosto repletas de gente, residentes e visitantes, em alegre convívio e desfrute, em que artistas, residentes e turistas se fundiram intensamente em sã camaradagem, fruindo da festa mais genuína e fascinante que me foi dado contemplar nas décadas de convivência com o país. Tanto mais que a quase totalidade das prestações do SalAnima foram cortesia dos respetivos artistas, como incentivo ao desenvolvimento do Turismo, num gesto de generosidade e empatia que conferiu ao SalAnima um perfume peculiar de inclusão e de pertença mútua a evocar as melhores tradições de morabeza, tão caras à memória coletiva do povo cabo-verdiano…

Cartaz do SalAnima

Sem prejuízo da estima e gratidão a crédito de todas e todos quantos deram o seu contributo artístico ao SalAnima de Outubro de 2013, que se contam por mais de uma centena, merecem especial destaque alguns deles, seja pela notoriedade dos seus nomes, resultado de carreiras já consolidadas, seja pela excecional qualidade das artes que partilharam, nos palcos e nas ruas e praças, seja ainda, em certos casos, pela vertente humanista ou social das iniciativas culturais que ali vieram performar. É de relevar desde logo a vasta contribuição da boa-vistense Celina Pereira, uma cantora lírica, mas também popular, de notável talento, nem sempre valorizada na sua terra, talvez pela ausência prolongada fora do país, mas cuja atuação nos diversos palcos do SalAnima a tornou provavelmente a principal atração do evento, cantando a solo, em duo, com uma banda tradicional ou com orquestra, patenteando uma paixão que lhe era própria e um empenho de quem ansiava a oportunidade de uma imersão no aconchego dos seus. Emílio Lobo, salense, um dos nomes altos da música cabo-verdiana, compositor, e intérprete de produções de Dany Silva, Ramiro Mendes ou Antero Simas, atuando aqui também com o bandolinista Julien Martineau. TioLino, outro boa-vistense, cantor, compositor e entertainer em ascensão na altura. Teté Alhinho, mindelense, cantora a solo mas com passado no Grupo Simentera, compositora com dezenas de temas gravados. Patrick dos Santos, natural de Cabo Verde, mas com um palmarés de tournées por Cuba, Senegal e Estados Unidos, um preciosista na guitarra, interpretando desde jazz a samba, salsa, rhythm and blues ou bossa nova, com requintes de improvisos capazes de arrebatar as plateias. De Portugal veio a jovem mas categorizada orquestra de câmara Camerata Medina, já conhecida em Cabo Verde de Encontros Internacionais de Turismo (EITU) anteriores, que interpretou desde peças clássicas de Bach, Pachelbel, Mozart, Carrapatoso, Vivaldi, Carlos Seixas e outros eruditos, a uma rapsódia de mornas (Fidjo Maguado, Santo Antão,  Nôte de Mindelo, Na Caminho de Dja Brava, Sôdade, Cidade Velha) que eu agregara para o efeito em 2006 e que fora orquestrada por um músico de Barcelona, Blai Soler, amigo de Nuno Soares, o maestro da orquestra, para violinos, violas, violoncelos e contrabaixo. Igualmente o Hino Nacional, que havia também sido orquestrado por Blai Soler, foi executado por esta orquestra na abertura solene do VI EITU, à semelhança do que ocorrera em EITUs passados. Particularmente emotivo foi o Concerto que a Camerata Medina deu no domingo, dia 20, no Centro Cultural, que se encheu à pinha, culminando com a “Ave Maria no Morro”, de Herivelto Martins, cantado por Celina Pereira, cuja voz excecional, associada à riqueza musical dos instrumentos de arco e cordas, criou naquele espaço um clima raro de enlevo em que pudemos testemunhar pessoas a chorar de alegria, e alguém exultou mesmo exclamando, em clímax emotivo, “já posso morrer, depois de ouvir música tão sublime”.  Uma vivência deveras indescritível, que quem lá esteve pode confirmar com natural comoção. Também de Portugal veio o Grupo Colcheia, de Óscar Ribeiro, que se fez acompanhar dos músicos que com ele davam suporte didático ao Projeto Triplo Salto que na altura decorria na Boa Vista e proporcionava a centenas de crianças, das creches e das escolas, em conjugação com o Ministério da Educação e Desporto, um complemento didático visando a otimização das capacidades de expressão (oral, escrita, musical e dramática) das crianças e adolescentes da Ilha das Dunas. Foi particularmente assídua nos palcos do SalAnima a perícia do músico Ulisses, natural de Santiago, que era, havia mais de 10 anos, o animador-residente no Hotel Odjo d’Água nas noites de música ao vivo, onde acompanhava, com o seu grupo de músicos, interpretando desde funaná a mazurcas, coladeiras, mornas e outros géneros, por vezes alternando a viola com guitarra portuguesa, as refeições dos cientes deste hotel icónico construído à volta de um farol, onde se inalava, desde a propriedade aos clientes e ao pulsar do dia-a-dia do staff, a fragrância da idiossincrasia cabo-verdiana. Merecem ainda referência especial grupos de cultura artística da ilha, como os dançarinos “Maravilhas de Cabo Verde”, o “Grupo Teatral Dja d’Sal”, a “Banda Infantojuvenil Águias de Hortelã” ou o ”Grupo Hip-Hop Dance”, testemunhos de uma atividade cultural pouco badalada, mas manifestamente bem presente na sociedade salense. Destaque também para a atuação dos DJ Suul, Romeu, Loco, Bocas e Stenio, que alimentaram os altofalantes espalhados pela cidade com música ambiente e apoiaram diversas atuações em palco. Nem poderia faltar uma menção de grande apreço à Banda Municipal do Sal, que abrilhantou alguns dos momentos mais marcantes em palco. Mas esta relação fica longe de esgotar o numeroso elenco do mundo da cultura artística que Cabo Verde abriga e se fez representar nas ruas e praças de Santa Maria naquele início do outono de 2013, e muito menos logrará reproduzir em quem não o viveu, o momentum, que foi o SalAnima.




Salenses e turistas acorreram em massa aos espetáculos do SalAnima



Celina Pereira


Camerata Medina e 

Batucadeiras do Grupo L'Alambic

Banda Filarmónica da Câmara Municipal do Sal

Dançarinos do Grupo Zumba Fitness

Serginho & Banda Lana

Gigantones                                                        Mimo (Peixeira)

                            DJ Suul
Óscar Ribeiro                                                                Tété Alhinho 


























[1] Ver detalhes no capítulo respetivo

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