3 . Escolas
O professor Mário Santos foi o meu anfitrião, no primeiro dia em que dei aulas, em meados de novembro de 1969, no Liceu Adriano Moreira. A minha missão era lecionar a disciplina de canto coral às turmas dos 3º, 4º e 5º anos. Uma tarefa que tinha tanto de apaixonante como de ingrata. Apaixonante, porque a música é sempre muito querida e apreciada de todos os povos, e muito particularmente do povo cabo-verdiano, naturalmente dotado para a música, quer no que toca ao ritmo, quer no que toca à melodia, o que facilita muito a tarefa a quem tenha por encargo ensiná-la e desenvolvê-la, mesmo que se tratasse de adolescentes entre os 12 e os 16 anos. Ingrata, porque a adolescência é um período crítico, de comportamentos ainda inseguros e mutantes, e o facto de a disciplina não ser valorada retirava algum nervo à eficácia do respetivo ensino, criando uma certa tensão entre a capacidade de atrair os alunos aos conteúdos e a necessidade de manter a indispensável disciplina numa sala com dezenas de jovens adolescentes durante os 50 minutos que durava cada aula... Lembro-me que a turma do 4ºC era a mais problemática nesta vertente, pois era mista, e o pendor natural dos rapazes para darem nas vistas perante as raparigas, não tanto pelo saber como pela ousadia, baralhava de certo modo a escolha do registo a adotar no débito das teorias, caldeado com a aprendizagem, essa mais atrativa, de canções, ou com a introdução ao manejo de instrumentos...
Creio que as inovações mais criativas que logrei introduzir
foram, por um lado, (i)o solfejo, treinado com alguma profundidade, já com
laivos de harmonia e composição, tanto mais que a tradição em anos anteriores
se teria limitado à aprendizagem de canções populares, institucionais e
académicas; (ii) por outro lado, aproveitei os intervalos das aulas para
audições livres de música clássica, na esperança de superar a relutância que
encontrei em ouvi-la, estudá-la e interpretá-la. Creio que esse intento foi em
parte conseguido; em todo o caso, a sala enchia-se com alunos de diversas
turmas, que optavam por essa audição, em troca de descerem ao recreio no
rez-do-chão. (iii) Por fim, e embora num ambiente pouco entusiasta, uma vez que
a disciplina de canto coral não contava para qualquer parcela de registo do
sucesso escolar, e que em acréscimo implicava uma exigência de tempo suplementar
para ensaios, aos fins de semana, a tentativa de constituir uma coral polifónica
com um pequeno repertório, para além do incontornável hino nacional, terá sido
positiva, desde logo porque pressupunha uma seleção de vozes que, se por um
lado deixava de parte quem fosse menos dotado de ouvido ou de voz, em
compensação permitiu aos alunos e alunas com mais pendor para a música
perceberem que podiam desenvolver esta vertente e pensar até em seguir uma
carreira musical.
Foi o que, por coincidência ou não, aconteceu por esses
tempos, com o aparecimento de bandas como foram os Apolos, o Pop Académico, os Tubarões
ou, mais tarde, a Simentera, ou cantores e cantautores como foram o Ildo Lobo
ou a Lena França, entre muitas outras e outros, abraçando e cultivando esse dom
como hobby ou até como profissão, beneficiando da vantagem de disporem
de conhecimentos já sustentados da teoria musical.
Já no que toca a Filosofia, ministrada aos alunos dos 6º e 7º
anos, o ambiente era bem mais cordato e, quer porque se tratava de uma
disciplina importante e nuclear, quer sobretudo porque, sendo o seu objeto de
análise e estudo o próprio aluno(a), uma vez que a matéria versava não só
teorias filosóficas ou a história da filosofia, mas também a Psicologia, a
Lógica ou a Epistemologia, matérias estas que questionavam profundamente a
subjetividade, colocando aos estudantes, talvez pela primeira vez, desafios existenciais,
como a introspeção, o processo de formação de ideias a partir das sensações e
respetiva perceção, ou o real papel do indivíduo na sociedade e até no
universo, versus a objetividade dos diversos mundos que a História e a
Ciência foram decantando em estereótipos os mais diversos e em cuja
aprendizagem também estavam mergulhados, eventualmente deparando-se com dúvidas
as mais diversas, e uma sede nova de as deslindarem... Sem prejuízo de guardar
de todos os alunos desta disciplina uma recordação aprazível, ficou-me na
memória o desempenho excecional de dois deles: a Georgina e o Cirilo. Alunos
verdadeiramente distintos, pensadores autónomos já naquela idade...
Mas o ensino da Música não se limitou às paredes do Liceu. Em
1970 abriu a Escola do Magistério, que iniciou a sua atividade nas instalações
da Escola Primária, na Praça do Cinema. Esta foi também uma experiência grata
no meu múnus de lecionar música. Quase todas as alunas (só havia um homem, o
João Vieira Fernandes) eram já professoras no ativo. Vieram por isso adquirir, durante os dois
anos do curso, uma chancela para os conhecimentos que já possuíam, enriquecidos
de práxis, que também já tinham. Para além de aprofundarem conhecimentos
teóricos em música, traziam para as aulas uma vontade estimulante de
enriquecerem métodos e ferramentas que lhes servissem para dinamizarem as suas
práticas de ensino. Foi um prazer colaborar com esta turma, reduzida mas sempre
atenta e interessada...
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Comemoração dos 50 anos da Escola da Variante, em dezembro 2019 |
Finalmente, para complementar esta resenha do que foi a minha passagem pelo Ensino em Cabo Verde, uma breve referência à Escola de Música. Diversos alunos e alunas do Liceu, entre outros, manifestaram interesse em aprender mais, pelo que abri em 1971, com o Luís Cabral, uma Escola de Música na Cruz Vermelha, onde lecionávamos solfejo e viola, à noite. Uma experiência entusiasta, dado que eram os alunos que se inscreviam, e pagavam uma mensalidade. Mas não durou mais que meio ano, por motivos que não cabem neste post. A recordação mais forte que me ficou dessa experiência foi uma ‘jam session’ num domingo à tarde, com alguns músicos do Pop Académico, em que conseguimos atingir um certo nível de fusão musical num improviso de hot jazz em que eu me surpreendi a mim próprio como saxofonista improvisado...
A décadas de distância, a recordação deste tempo académico
como funcionário público, uma experiência que não repeti por a vida me ter
guiado para uma carreira empresarial privada, está arrumada numa das gavetas
mais aprazíveis das minhas memórias, certamente porque não há melhor recordação
do que a de ter semeado conhecimento e emoção em toda uma geração, neste caso a
que passou pelo Liceu da Praia entre 69 e 72, mau grado os escolhos que aqui e
ali sempre se atravessam no caminho, mas que felizmente se esbatem com o tempo,
deixando ver melhor a construção... E nessa mesma gaveta cabem também os
professores de que tive a vantagem de ser colega, todos bem mais experientes
que eu, a maioria deles muito competentes nas matérias que lecionavam e dedicados àquelas e àqueles
que vieram a assumir pesadas responsabilidades na transição democrática do seu
país. A talhe de foice, além do Mário Santos que já citei, docentes como a
Helena Santa Rita, a Gabriela Figueiredo, Helena Fogaça, Baltazar Barros,
Imelda Godinho, Fernanda Marques, Arnaldo França, Maria das Dores Morais, Maria
da Luz, Barreto de Carvalho, entre outros, constituíam um corpo docente de
peso! As carreiras dos seus discípulos estão aí para o comprovar...
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