4. Na Igreja de Santiago

 

    Cheguei a Cabo Verde em novembro de 1969 pela mão do Padre José Maria de Sousa, meu antigo professor de Música e de Filosofia no Secundário, no Seminário do Fraião, em Braga, e à data Superior dos Padres do Espírito Santo em Cabo Verde, que me convidou para um estágio de 3 anos com a missão específica de renovar o reportório de cânticos da liturgia nas paróquias de Santiago.

    Os anos 60 do século passado foram férteis em mudanças profundas no mundo da música ligeira, mormente a música Pop, desde gostos melódicos a ritmos que rompiam com o passado, instrumentos eletrónicos, dinâmicas cénicas, enfim, toda uma vaga de fundo que revolveu profundamente o cenário musical vigente até então.

    Floresceram bandas que foram dando corpo a sucessivas tendências, todas mais ou menos rompendo com o ambiente romântico do pós-guerra, desde os Shadows (o Apache soou aos nossos ouvidos como gong de uma nova era), aos Beatles, aos Rolling Stones, Creedence Clearwater Revival, Pink Floyd, Who, Bee Gees, Deep Purple, Procol Harum, Beach Boys, Poppy Family e tantas outras.

    Paralelamente, na Igreja Católica, músicos talentosos como, em França, Joseph Gelineau, David Julien ou Lucien Deiss, de quem ajudara o Padre José Pires a traduzir e adaptar alguns cânticos; o Padre belga Guido Haazan no Katanga, com a sua Missa Luba (https://www.dailymotion.com/video/x2r9x84); o argentino Ariel Ramirez, que compôs a incrível Misa Criolla (https://www.youtube.com/watch?v=jdSYpTbSYQg); ou Manuel Luís e Manuel Faria, entre outros, em Portugal;  uma vaga renovadora varreu o modus faciendi tradicional na liturgia católica, espartilhada em ritos que remontavam ao Concílio de Trento, reunido no longínquo século XVI. A Missa, em particular, foi profundamente remodelada, desde a disposição do altar e dos celebrantes, que se viraram para a Assembleia e dela se aproximaram, à introdução das línguas vernáculas, à admissão de instrumentos tradicionais locais, etc., na esteira do Concílio Vaticano II, promovido pelo Papa João XXIII (Roncali) em 1962, sob o signo do aggiornamento, assente nos pilares da “Paz de todos os povos na base da Verdade, Justiça, Caridade e Liberdade” explanados na sua encíclica “Pacem in Terris”, de 1963, e finalizado em dezembro de 1965 pelo seu sucessor, Paulo VI (Montini), que, entre outras, veio a escrever dois anos mais tarde, em 1967, uma encíclica marcante na adequação da mensagem evangélica aos novos tempos, mormente em matéria de desenvolvimento e de distribuição da riqueza, a “Populorum Progressio”, aliás na senda da “Rerum Novarum” de Leão XIII (1891).

    Ao mesmo tempo em França, acontecia o Maio68, que abalou profundamente as mentalidades a partir da juventude estudantil e dos movimentos católicos. E, no domínio da exploração do cosmos, punha-se o pé na Lua, em 1969, feito precursor selado por aquela frase de Neil Armstrong que ficou para a História: “é um pequeno passo para o homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”...

     Para um jovem recém-formado de 25 anos, o desafio do Padre José Maria increvia-se perfeitamente na perspetiva de enriquecimento pessoal e de passagem de um longo período de aprendizagem à praxis desejáveis, incluindo uma componente letiva nas disciplinas de Música e Filosofia aos adolescentes e jovens que então frequentavam o Liceu Adriano Moreira.

    Além da formação musical de 7 anos no Seminário, frequentei,  como preparação para esta missão, no verão de 1969, na Biblioteca Nacional do Campo Grande em Lisboa, um curso de verão para maestros, da Gulbenkian, ministrado por dois grandes mestres suiços, o professor Sibertin-Blanc e o Maestro Michel Corboz, nessa altura a lecionarem em Portugal, e participei durante alguns meses nas missas da Capela do Rato, onde se desenvolvia uma renovação litúrgica e de mentalidades que viria a culminar com os conhecidos acontecimentos de 1972 e 1973, precursores do 25 de abril de 1974 em Portugal. Ali recolhi diversos cânticos da nova vaga litúrgica, que passaram, juntamente com outros do Padre Lucien Deiss, Joseph Gelineau, Manuel Luís e outros, a constituir o essencial da renovação que me fora confiada.

    O coro da Igreja de Nossa Senhora da Graça, de que era Pároco o Padre António Figueira, ampliado com novas vozes, após uma seleção entre jovens dos movimentos da Juventude Católica, assistidos na altura pelo Padre Veríssimo Teles, recebeu com entusiasmo o novo reportório, que passámos a ensaiar à assembleia antes das missas dominicais.

    Por outro lado, o Padre José Maria fez vir do Japão um bom órgão Yamaha, de 3 teclados, incluindo pedaleira, e uma variedade rica de timbres, que permitia a quem o operava (em geral o Padre Afonso Cunha, e depois também o Luís Cabral), dar outro apoio e profundidade à participação nos cânticos pela assembleia, que passou a estender-se à Praça, incluindo não praticantes que ali afluíam como apreciadores da nova dinâmica. E chegou entretanto também o Luís Cabral, que acrescentou ao acervo musical a presença da viola e formou um pequeno grupo instrumental para acompanhar o coro e a assembleia.

    Foram anos de grande vitalidade litúrgica, que se foi estendendo também às restantes oito paróquias da ilha, numa altura em que na Igreja de Santiago se viviam tempos de particular entusiasmo e esperança, não apenas no interior das numerosas igrejas e capelas da ilha, mas igualmente nas Juventudes (Juventude Agrária Católica e Juventude Estudante Católica), nos Movimentos de Reflexão e Intervenção Social (Legião de Maria, Apostolado da Oração), e mesmo, se não sobretudo, ao nível do ensino generalizado, pois estabeleceu-se uma colaboração exemplar entre a Igreja e os Serviços de Educação, cujo Diretor era então o Inspetor Madaleno, e foram abertas pelas paróquias nesses anos mais de 120 escolas em toda a ilha, que funcionavam de dia para crianças e à noite para adultos. Enquanto que, para prover todas estas escolas novas com docentes, os Serviços de Educação criaram, em 1969, por um lado a Escola do Magistério Primário e, por outro, a Escola de Habilitação de Professores (Variante), e ainda um colégio em Santa Catarina, dirigido pela Irmã Olinda.

    Na Praia os Padres Figueira e José Maria de Sousa ergueram, com fundos recolhidos na sua maioria nos Estados Unidos, um Centro Paroquial, em frente ao Liceu, em que o ensino era também preocupação importante, assim como na Calheta de S. Miguel o Padre Crettaz erigiu, com fundos recolhidos na Suiça, um colégio, gerido por Irmãs vindas do Senegal.

    Pude sentir bem por dentro, durante aquele triénio, este palpitar de renovação cristã e cultural, uma vez que por um lado dava aulas em várias Escolas durante o dia, e à noite e nos fins de semana deslocava-me às diversas paróquias para aulas de catequese a catequistas e ensaio de novos cânticos, uma experiência que calou fundo na minha sensibilidade, pois, bem mais que o meu esforço pessoal em sacrificar horas de descanso para me encontrar com estas comunidades no âmago da sociedade interior da ilha, pude avaliar e valorizar o empenho autêntico daquelas pessoas, que calcorreavam caminhos no escuro por vezes durante horas para poderem aproveitar a oportunidade de melhor se capacitarem na missão de transmitirem às crianças os ensinamentos do Evangelho. Recordo ainda com emoção que, para além da hora de aula, ficávamos a falar por mais outra hora não só para se esclarecerem dúvidas que subsistissem no âmbito da matéria dada, mas ainda para aperfeiçoarmos a expressão escrita e oral, nas respostas às questões colocadas, ou mesmo satisfazendo uma curiosidade genuína em assuntos puramente culturais e literários...

    Muitos dos meus fins de semana por esse tempo eram dedicados, com a colaboração da Irmã Maria do Carmo e o patrocínio do respetivo Pároco, a cursos de formação intensiva a jovens (catequistas, cantores...) nas diversas paróquias (S. Domingos, S. Miguel, Santa Catarina, Santa Cruz, Tarrafal...), em matéria de liturgia e de caminhos de juventude.

     Também do Fogo, ciente da renovação litúrgica e juvenil que estava a ser desenvolvida em Santiago, o Padre Camilo, que era Pároco em S. Filipe, convidou-me, em 1971, a levar este curso de formação à ilha, em um fim de semana, custeando para o efeito a deslocação de uma avioneta, que me levou e ao Armando Simões num sábado de manhã e nos devolveu à Praia no domingo à tarde. Foi um fim de semana muito exigente, pois tratava-se de organizarmos uma série de palestras, debates e atividades com a juventude de S. Filipe agrupada por equipas, orientados para a missa dominical no sentido de que fosse vivida dentro do espírito de renovação que soprava no pós Concílio Vaticano II. Foi uma jornada memorável, que ainda recordo com nostalgia daquele tempo em que a juventude demonstrava sede de saber mais e aspirava coletivamente a um futuro mais autêntico, rico e partilhado.

     Numa outra vertente, o Seminário de S. José, que entrara em funcionamento uma década atrás, era uma frente importante da ação da Igreja em Cabo Verde, neste caso ao nível da formação de adolescentes e jovens com vista ao múnus sacerdotal. A minha atividade na Ponta Temerosa limitou-se a ensaios do coral, que agreguei em determinada altura ao do Liceu para um espetáculo no Cinema. Mas convivi regularmente com o Padre Nogueira, que era o Reitor, assim como os professores, Padres Pimenta, Lobo, Floriano, Lino, todos vindos de Goa, à semelhança do Bispo, D. José Colaço, e do Cónego Jacinto.

Foto-família de alunos e professores com D. Colaço e Cónego Jacinto em 1966


    
De sublinhar que a grande maioria dos alunos que passaram pelo Seminário de S. José não seguiu para os estádios mais avançados na formação sacerdotal, que eram ministrados em Portugal, pelo que o seminário acabou por ser um alfobre de formação de cidadãos leigos de primeira água, que de resto vieram a desempenhar papéis relevantes na política, na economia, na academia, na estrutura judicial e social, não só dentro das fronteiras do país, como na Diáspora.

 

(da esq p dir): Arlindo Furtado, Manuel Veiga, D. José Colaço, Boaventura Lopes, José Bento

Um outro veio de renovação cristã trazido a Cabo Verde em 1971 foi o dos Cursilhos de Cristandade. Surgidos em Espanha nos anos 40, tinham-se espalhado pelo mundo católico e começavam a ser adotados igualmente no seio das Igrejas Evangélicas. Em Portugal, este movimento estava no auge, e, por iniciativa do Bispo de Viseu, D. José Pedro da Silva, chegou a Cabo Verde em 1970, pelos cuidados do Pe. Francisco Santana e do Cónego Abel Figueiral.

Este movimento, que ainda hoje está bem vivo, ganhou novo alento com o Concílio Vaticano II, pois tinha como objetivo despertar nos cristãos o reavivamento do batismo, através de um retiro de 2 ou 3 dias, geralmente de sexta a domingo, que funcionava como uma espécie de abanão dirigido à consciência de cada participante através de uma sequência de “rollos” (apresentações curtas mas muito objetivas, tendo por objetivo fazer VER, DISCERNIR e AGIR), cujo primeiro efeito nos participantes (logo na sexta-feira à noite) era um abalo visível, como se tivessem lavado um soco no estômago, mas os “rollos” de sábado estavam orientados para uma surpreendente recuperação do espírito positivo,  e sentia-se nas pessoas uma libertação e um élan entusiástico para encarar a vida como uma nova etapa, reconstrutiva e proativa. Como participante e depois como comunicador, impressionaram-me os testemunhos de muitos participantes nestes cursilhos, que eram depois reavivados com reuniões periódicas a que se chama “ultreias”. Os três em que participei reuniram muitos dos quadros da sociedade santiaguense de então.

 






Nos próximos posts abordarei memórias de outras vertentes da minha colaboração na ação socio-religiosa da Igreja em Cabo Verde naqueles anos memoráveis que precederam a independência: como Redator do jornal A Voz Paroquial e como Diretor de Programação do Rádio Clube de Cabo Verde.

Comentários

  1. Muito bom, meu amigo. P.f., continue.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado por comentar. Continuarei, pois há imenso a dizer sobre aqueles 3 anos em que estive na Praia. Posso saber com quem estou a interagir?

      Eliminar
    2. Bom dia, com Saúde!
      Texto magnífico! Recordações históricas...
      Sou Boaventůra Mârtiñs, estou na foto de família de 1966, o primeiro, da segunda fila a contar da esquerda!
      Obrigado!
      Bem haja!

      Eliminar
  2. Bom dia, com Saúde!
    Texto magnífico! Recordações históricas...
    Sou Boaventůra Mârtiñs, estou na foto de família de 1966, o primeiro, da segunda fila a contar da esquerda!
    Obrigado!
    Bem haja!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Boaventura Martins.
      É um prazer constatar que este blogue pode contribuir para reencontros de antigos colegas de estudo.
      Aproveito a oportunidade para lhe pedir que identifique os colegas que reconhece, pois esta foto foi-me cedida pelo Padre André, mas só reconheço os padres, exceto o primeiro à esquerda, e alguns alunos, entre os quais o Celestino, que é inconfundível.
      Desde já, grato.
      Armando

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

26 - Cabo Verde descobre-se como Destino Turístico

11 - Soltrópico, um operador turístico focado em Cabo Verde

35 - A REDE - Sonhos Adiados