19 - Monólogo de um Rebelado - conto
Deus
saberá porque houvera eu de ter nascido no mais fundo de Fundura, um lugar
sombrio em terra de sol farto, mas ali atrapalhado por achadas[1],
cutelos[2]
e serras, a começar pelo vulcão do Jagau, na Volta do Monte, a retardar-lhe a
alvorada, até ele se libertar, mais a sul, na Achada Lém, planando, já bem alto,
sobre outro vulcão, o Felicote, de onde ia iluminando os contrafortes da
Malagueta, a meio do dia, içados a norte, em vertentes alcantiladas, na
Rincuada, e que descia depois para Ribeira da Barca à tarde, por cima da
Ribeira de Aguada, para se esconder, no ocaso, por banda das seis da tarde, atrás
do Pico Mestre, o do Fogo, no fim do horizonte, encurtando-nos o dia e
furtando-nos a visão romântica de um Sol-Poente a mergulhar nos segredos da
noite sob o lençol escarlate do oceano, envolto no abraço da bela aurora,
tépida, acolhedora e refulgente, um privilégio reservado aos de Fajã d’Água, na
escondida Brava, a última ilha de Sotavento, que privava, por sua vez, os do
Fogo de tão romântico cenário…
Ainda
vinham longe os paralelos arduamente talhados no basalto, e muito menos o
alcatrão da estrada furando a Malagueta pelo Curral d’Asno, a caminho do
Tarrafal, ao passo que a via para Ribeira das Pratas, por Figueira das Naus,
era pouco mais que um caminho de terra batida, que as enxurradas de agosto
escalavravam regularmente, impedindo em cada ano, por largas semanas, a
passagem dos poucos automóveis e camiões que na altura demandavam o norte da
ilha, ou de lá voltavam. Quanto a nós, os nascidos e morados naquele recanto
entre campestre e rupestre, palmilhávamos de pés descalços os caminhos poeirentos,
que devinham lamacentos nas as-águas[3],
do verão ao inverno.
Deodato
me chamaram os meus pais, cristãos piedosos e praticantes das virtudes, as
teologais e as cardeais, legadas pelos meus avós e pregadas pelo padre Cachada
e pelo suíço padre Allaz, que paroquiavam Santa Catarina, a cuja missa acorríamos
religiosamente, fosse na vila, na igreja de Nossa Senhora de Fátima; fosse na
Capela de Santa Ana, na Volta do Monte; fosse em Figueira das Naus, na Capela
de Nossa Senhora de Lurdes; ou fosse ainda na pequena capelinha rústica que o
padre Louis Allaz acabara de fazer construir em Curral d’Asno, ali no sopé da
Malagueta, depois de ter logrado vencer a resistência dos rabelados[4]
que se acoitavam na região e associavam a batina preta que então vestiam os
sacerdotes à indumentária da bíblica besta do Apocalipse, e a branca dos
recém-chegados à de falsos profetas, até serem desenganados pela evidência benfazeja
dos missionários que chegavam, prestimosos e persistentes na ajuda e na evangelização.
Deodato
era nome de um santo italiano do século IX, que morreu no Mosteiro de Monte
Cassino, no Lácio, encarcerado e consumido pelos tormentos e pela fome, à mão
de algozes obscurantistas. Nascido que fui nos anos 50 de 900, filho do meio de
pais extremosos, talvez a escolha do meu nome tenha sido sugerida pelo pároco,
que na época se ocupava dos registos, como uma espécie de seguro contra os
efeitos da terrível seca que se abatera sobre as ilhas nos pretéritos anos 40,
condenando ao extermínio largos milhares de ilhéus pela fome…
O certo é
que sobrevivi, e a minha infância em Fundura foi seguindo os trâmites corriqueiros
da meninência da terra, que decorriam entre a casa e a fonte, na Ribeira de
Aguada, as idas à capela de Santa Ana, na Volta do Monte, à Escola de Nhu Dom,
na Boa Entrada - uma hora de caminho para cada lado -, e os mandados à loja de
Nhô Ntone, em demanda de mercearia. Ou, mais raramente, a casa dos avós em
Curral Velho, onde às vezes pernoitava. Ou ainda, nas férias e domingos, na
tarefa maçadora embora bucólica de “enxôta pardal” e “tadja côrbo”
nas sementeiras de Mau Passo: “Iá, xôtinha, iá! Mi simiál, mi ca cumêl!...”Uuh,
Tchéqui! Dobra! Dobra! Passa bai, mofino!...” De resto, os intervalos do
dia-a-dia passava-os eu entre as casas dos vizinhos e familiares, à roda de
Fundura e Boa Entrada, passarinhando pelas Achadas (Achada-Lém, Achada-Fora, Achada-Ponta)
ou Ribeirão Areia, brincando com os da minha idade.
À parte a sorte de ter nascido já a seguir à grande seca, escapando à carestia de alimento que colhera dois dos meus irmãos mais velhos, ainda ‘anjinhos’[5], estava a chegar à ilha, também por sorte, uma leva de padres progressistas, que foram espalhando escolas pelos lugares, primeiro informais, ancoradas numa Organização Mariana com origem na Irlanda, a Legião de Maria, um movimento que se ocupava das almas e dos corpos, valendo-se de uma pequena elite letrada, na Boa Entradinha com Nhu João Barreto, na Assomada com Nha Nozinha, no Bombardeiro com Nhu Roberto, em Chã da Lagoa com Nhu Joaquim Miranda, em Palha Carga com Nhu Duarte Moreira, em Poilão com Nhu Nicolau, em Nhagar com Nhu José Miranda, uma rede que se estendia a todo o território da paróquia, de Ribeira da Barca ao Charco, Achada Leite, Furna, Figueira das Naus, Mato Santcho, Rincão, e que trouxe o conhecimento das primeiras letras à maioria das crianças e a muitos adultos da terra, estes com aulas à noite, tiradas ao sono e ao repouso das duras lides agrícolas, abrindo horizontes novos de buscar vida, e que foi debelando pouco a pouco a ideia arreigada nas famílias de que “riqueza di pobre é rabo d’inxada”…
Assim,
das três escolas primárias existentes no Concelho de Santa Catarina nos anos de
1940, uma na Assomada, outra na Ribeira da Barca e outra em Chão de Tanque, os
postos de ensino multiplicaram-se nos ‘50, incluindo um colégio do primeiro
ciclo na Assomada, e nos anos 60 toda a população da região e da ilha teve
acesso à escolarização básica, graças aos esforços da Igreja Católica,
finalmente secundada pela Administração Escolar, nas mãos de um Diretor muito
dinâmico, Artur Madaleno. Uma verdadeira revolução na Educação, que seria
coroada no início dos anos 70 com o lançamento da Escola do Magistério, na
Praia, e da Escola de Habilitação de Professores, na Variante de S. Domingos,
gerida por um Diretor disciplinador mas estimado, António Ribeiro da Cunha,
escolas estas que vieram juntar-se ao Liceu Adriano Moreira, inaugurado em 1962
em Monte Agarro, no Plateau da Praia, que deu continuidade à Secção do Liceu
Gil Eanes, instalada de 1955 a 1960 no 1º andar da Casa SERBAM, antigo Hotel
Club da antiga Casa Serra, que um século atrás, em 1861/62, albergara por sua
vez o primeiro Liceu Nacional da Província de Cabo Verde, à Praça Alexandre de
Albuquerque, antiga Praça do Pelourinho, já depois da primeiríssima Escola
Secundária, a de Santa Bárbara, na Brava, em 1845, mas ainda antes do
Seminário-Liceu do Caleijão, na Ribeira Brava de S. Nicolau, fundada em 1866, e
do Liceu Gil Eanes, que lhe sucedeu no Mindelo, em 1917.
Não
admira, assim, que eu tenha ido parar, aos 11 anos, por decisão paterno-materna
e pelos bons ofícios do padre Allaz, à Ponta Temerosa, na Praia, onde em 1957
começou a funcionar também o Seminário de S. José, com professores vindos da
Metrópole e de Goa.
Se
eu tinha todas as razões para me considerar feliz na minha vida de Fundura,
apoiado e acarinhado por familiares, vizinhos, professores, religiosas e
padres, imagine-se o choque que foi para mim ver-me entregue exclusivamente a
homens, estranhos, ainda mais recém-chegados, na sua maioria, de uma Ásia
longínqua, de abordagem para mim ainda inusitada, num papel híbrido de
professores, mentores, confidentes, disciplinadores e avaliadores, não só de
conhecimento, mas também, e sobretudo, de conduta - escolar, moral, cívica e
espiritual… As primeiras semanas foram de natural desalento, com saudades
inconsoláveis da mãe, da família, da casa, só amenizadas pela visita mensal do
padre Allaz, que delas e da terra me trazia notícias, porém insuficientes para
me desquitar de um desejo ardente de regressar ao doce lar.
Paradoxalmente,
ou talvez não, a visão daquele mar, com abertura ao nascer e ao pôr-do-sol e, a
sul do farol Maria Pia, à linha do horizonte infinito; as sétimas ondas a
emergirem em repuxo do Penedo Furado, ali mesmo ao lado, ao ritmo de uma
ampulheta imorredoura; o chegar e partir dos barcos na baía, desde botes de
pesca a transatlânticos; os mergulhos retemperadores aos fins de semana na
Prainha; as passagens pelo Plateau em digressão, com ruas ordenadas, pessoas de
todas as idades e condições cruzando-se e conversando nos passeios e nas praças;
montras vistosas repletas de atrações tentadoras; mulheres expondo tabuleiros
de apetitosa fatiota[6];
a banda no coreto, à noitinha, espalhando pela cidade uma harmonia
enternecedora de mornas, ou os ritmos mexidos de coladeiras, merengues e
cúmbias; o mercado repleto de peixe fresquinho, carnes prontas a cozinhar,
frutas, legumes, quiçá - perguntava-me eu com enlevo -, vindos lá da minha
Santa Catarina… Todo este turbilhão de sensações e perceções para mim inéditas,
espevitadas e enriquecidas pelos conhecimentos novos que se me iam abrindo na
sucessão das matérias lecionadas em ritmo inexorável ao longo da semana, me
foram anestesiando a dor da nostalgia, compensada e equilibrada pelo
enriquecimento, primeiro sensorial, depois assumido paulatinamente do
consciente ao subconsciente, como um farol a revelar mundos inimaginados. E
quando, em dezembro, fui das minhas primeiras férias de Natal, e mergulhei de
novo na ternura do berço familiar, percebi melhor o paradoxo daqueles versos
que Nhu Dom nos fizera decorar, do inefável Eugénio Tavares no “Hora di Bai”:
“si ca bado, ca ta birado…”
Não
obstante, afogadas que foram as saudades nas alegrias natalícias de uma
infância que caminhava para a adolescência e para descobertas que se me iam
deparando sem cessar, fui percebendo que na vida haveria de ir e voltar a
muitos sítios e a muitas vivências, sem por isso jamais saciar a apetência para
descobrir lugares novos, gente nova, riquezas novas, dentro e fora de mim. Assim,
entrando em janeiro, surpreendi-me a mim próprio com pressa de voltar ao
convívio dos colegas, dos professores, do mar, da cidade… E a seguir à
Epifania, como se o simbolismo desta festa religiosa fosse uma roupa mais crescida
que passara a servir-me, lá estávamos, eu com os colegas, como que engrenados a
um carrossel ligado à corrente, nas aulas, nos estudos, nos recreios, nos
passeios, nas refeições, nas idas à capela, nas conferências, nas sessões de
ginástica, nos passeios a pé pela cidade, nos ensaios de canto ou de teatro.
Tudo previsível, com horários afixados no quadro do átrio, sob a designação acronímica
de R.O., o Regulamento Ordinário, cozinhado e servido em doses calculadas e
compassadas, nutrientes e virtuosas…
Na
ementa das aulas era o padre Nogueira, o Diretor, orador notável, de voz sonante,
e que tinha, ele próprio, gerido a construção do Seminário na Ponta Temerosa,
que nos lecionava o português e o francês. Ciente da sua primordial
importância, batia constantemente na tecla da prática das línguas, com
leituras, redações, cópias, revisões e exposições no repertório, ao ponto de
recomendar, conhecendo embora, apreciando e falando ele mesmo o nosso crioulo, praticado
nas lides já longas de pároco por toda a ilha, que procurássemos exercitar a
fala, sobretudo do português, fora das aulas. Criou mesmo uma rotina, que
consistia em fazer circular uma moeda, a qual era passada por quem tivesse tido
o azar de a receber de outro colega, por ter sido surpreendido a conversar em
crioulo, a quem por sua vez o infeliz e involuntário proprietário apanhasse
também na mesma distração, como forma de forçar a prática da língua portuguesa.
O pobre que no final do dia não tivesse tido a oportunidade de se livrar da
moeda era credor de umas palmatoadas… Já o Cónego Jacinto vinha do Paço, no
Plateau, lecionar Matemática e Físico-Química, matérias em que se licenciara em
Goa; o Padre Francisco Lobo ensinava Latim e História da Filosofia; o padre
Floriano Rodrigues, História Universal, pelo manual de José Mattoso, e também
Geografia; o padre Caetano Pimenta, Inglês e Desenho; o padre Campinho, vindo da
Diocese de Braga, ensinava Música e ensaiava Canto Coral. A ginástica era
ministrada pelo Tenente Marques e pelo sargento Timani, que se deslocavam para
o efeito do quartel, no Plateau, e era um outro militar, de nome Félix, que nos
lecionava Grego. Tivemos ainda o Padre Lino Gonçalves, mais jovem, que nos
lecionou Latim, assim como um seminarista espiritano, António Rocha, que nos
deu aulas de francês, e o elenco docente do Seminário de S. José contou ainda
com colaborações mais fugazes, caso do padre André Costa. O padre José Maria de
Sousa era à época o nosso Diretor Espiritual e o próprio Bispo, D. José Colaço,
vinha presidir ao júri dos exames finais…
Para
mal dos meus pecados não demonstrei vocação para prosseguir no Seminário após o
quinto ano, ao que não foi estranha a mudança da família para o Mindelo, por
razões profissionais do meu pai. Em compensação, o Mindelo foi mais uma conta
no meu rosário de experiências, novas saudades, já não tanto dos pais e irmãos,
que os tinha por perto, mas da minha Fundura, da Assomada, de Figueira das
Naus, do padre Allaz, do Seminário e dos professores que lá deixei e não mais
esqueci. Não irei ao ponto de afirmar que me ficou alguma nostalgia das
palmatoadas que algumas vezes me tocaram por conta da moeda peregrina dos
devaneios crioulos, mas estou seguro do contributo dessa prova para a robustez
da minha capacidade de ler e comunicar, sobretudo na forma escrita, desde logo
na língua portuguesa e, como corolário, em algumas outras línguas que a vida me
levou a aprender e a praticar, em particular quando vim a precisar de fazer investigação
e análises técnicas e de desenvolver e expor projetos a exigirem rigor
conceptual e clareza comunicacional. E desengane-se quem pense que a prática
das línguas, fosse em leituras, fosse em fala ou em escrita, prejudicou em mim o
meu querido e materno crioulo, bem pelo contrário. Como investigador, professor
e conferencista, numa carreira ligada à jurisprudência, mergulhei com empenho
nas suas raízes históricas, genuinamente latinas e às vezes gregas, e por ali
fui reconhecendo as origens de cada palavra, de cada expressão, até de cada
provérbio, história ou mesmo anedota, e me fui deleitando com a descoberta das
premissas que ditaram a construção da nossa língua, tão simples e ao mesmo
tempo tão melodiosa e tão sábia, logrando evoluir de pidgin[7]
a crioulo comunicacional corrente e até exportado, e finalmente a veículo da
arte, da poesia, da literatura e da música do nosso povo.
Acalento
a esperança de que a nossa língua, tão estimada e entranhada em nós, atinja,
harmonizando com serenidade as suas variantes, os cumes de excelência que a
nossa Constituição preconiza, como expoente do nosso génio cultural e
comunicacional multicentenário, sem com isso pôr em causa a utilização de
outros idiomas, muito especialmente da língua-mãe, ou estancar o usufruto dos
seus legados científicos, culturais e literários, sob pena de estiolarmos, a débito
de uma maximização de um aliás justo brio nacional, o bem ainda maior da
capacidade de as gerações em ascensão compreenderem a história, a ciência, a
cultura e o mundo na sua globalidade… Não nos faltam exemplos de sabedoria a
seguir, desde o do quinhentista André Álvares de Almada ao do seiscentista André
Donelha, ao do oitocentista ficcionista José Evaristo de Almeida, a Eugénio
Tavares e Pedro Cardoso na alvorada do século XX, depois aos Claridosos,
à geração da Certeza, do romantismo ao realismo, e às novas, diversas e vastas
gerações de escritores, poetas, romancistas e historiadores que lhes foram
sucedendo em crescendo…
Da
obra e da ação destes e de muitos outros autores me falaram os grandes
professores que tive no Liceu Gil Eanes, ex-Liceu Velho, ex-Infante D. Henrique,
Baltazar Lopes da Silva, que tratávamos por Nhô Balta, e António Aurélio
Gonçalves, que tratávamos por Nhô Roque, e que foram os primeiros expoentes a
conciliarem-me o presente com o passado do que são a nossa fala e a nossa escrita,
por meandros razoavelmente labirínticos, mas esclarecedores, de aféreses,
próteses, síncopes, apócopes, epênteses, paragoges, próclises, ou palatizações,
nasalações, velarizações, ou apicalizações, sonorizações e ensurdecimentos, escalpelizando
a origem das ideias, das palavras, das formas e das frases que eram a matéria-prima
e o molde de toda a aprendizagem em que cada vez mais me empenhava e faziam
crescer em mim entusiasmo pela imensidão do saber disponível, como poço
alimentado, nesse tempo e para nós, por dois veios linguísticos, o materno e o dos
mestres e dos livros, afinal parentes chegados num sistema semelhante ao das
redes hidrográficas que estudávamos na Geografia e nos deleitavam, estancados
que estávamos no ecossistema sedento de Cabo Verde em que nos enquadrávamos, perante a evocação e ilustração de nascentes, afluentes, estuários e deltas, correndo placidamente sobre
leitos e entre margens, com vocação oceânica ou lacustre, e ciclos de
evaporação, nuvens, condensação, sublimação, congelação, glaciares e icebergs,
rápidos e geisers… Tudo se resumindo à mesma fórmula química, combinando
sabiamente um número limitado de elementos, numa aparência de complexidade afinal
líquida, que serve o mesmo propósito: crescer, tornar-se útil, agregar-se num
fluido navegável e vivificante, fomentando a excelência, em comunhão e harmonia… Um autêntico
paraíso terreal imaginado e desejado, amplo, verdejante e florido, de
horizontes apelativos e infindáveis…
Mestre
Nhô Balta, que mantinha vivas algumas memórias do Seminário-Liceu do Caleijão, encorajava-nos a harmonizar plasticidade com rigor, evocando as “sabatinas”, um exercício académico escolástico em que, contava, os alunos
mais velhos eram ali chamados a debater, em tête-à-tête, pontos de vista opostos,
como forma de apurarem argumentos oratórios, quer filosóficos, quer
científicos, ou mesmo até de pendor psicossocial, raiando inclusive, por vezes,
sub-repticiamente, as baias da política, por aqueles tempos um tabu no espaço público;
os neófitos contendores serviam-se nesses debates de premissas, arquitetadas
com termos catalogados de maior, médio e menor, que deviam
bater certo, numa economia estrita de palavras, desembocando em conclusões
irrefutáveis, e haviam sobretudo de evitar as ciladas de falácias, sofismas,
ou até de involuntários paralogismos, eticamente desculpáveis mas na
mesma indutores de erros de perceção e apreciação, e por isso de avaliação
negativa… Um exercício de rigor que, lamentava, se foi perdendo na bruma de
facilitismos ecléticos de nivelamento por baixo, uma tendência insinuante de
cedência à quantidade - transversal, abrangente, de mínimo denominador comum -,
em detrimento da qualidade, esta, ao contrário, verticalizante, de excelência,
tendencialmente elitista, é certo, mas agindo como locomotiva da cultura e de
toda e qualquer progressão social e existencial…
Vinha
esta divagação algo erudita do excelso professor a propósito precisamente do
debate então reinante sobre o potencial da língua crioula para emparelhar com o
português, quiçá mesmo de se lhe substituir, como parece que defendera numa
dessas sabatinas certo colega no seu saudoso Caleijão, esgrimindo
atabalhoadamente como termos de premissas e conclusão as três traves-mestras da
gramática: a fonética, a morfologia e a sintaxe, sem
conseguir escapar, no mínimo, à mais benigna das ciladas do silogismo, o tal malfadado
paralogismo, ao retirar da evidente simplificação fonética e morfológica do
linguajar crioulo conclusões que, sistematicamente, ou diminuíam ou ampliavam a
génese e o justo desenvolvimento da bela língua crioula.
Recordo,
neste contexto das aulas de linguística e filologia de Mestre Baltazar Lopes,
um dos exercícios práticos que nos passou, no encalço do estudo da obra camoniana,
e do potencial que o crioulo herdou do português erudito, peneirado e filtrado pelos
processos fonológicos de inserção, supressão e alteração, como demonstravam
algumas traduções, tal a que fez Eugénio Tavares de “Bárbara
Escrava”: Quêl bonita scrába /Qui teném câtibo /Pamô n’ dál
nha bida /Cá crê pan stâ bibo. /Tê hoje n' c ôlhâ rósa /Num môta berdinho, /Qui
mé na nhá olho/Parcém más sabinho. (…) Tratava-se de vertermos,
em 6 oitavas decassilábicas, quais outros Camões, num esquema de rima AB/AB/AB/CC,
esses processos fonológicos que estudávamos. Eis o trabalho que então apresentei,
e que lhe mereceu boa nota e um louvor:
Vertendo
os sons, da mente pra palavras,
Escreverei,
sem medo, este poema,
Ciente do
rigor que reclamava
O caro
professor, com este tema,
Certamente
- acho eu - porque visava
Pôr-nos à
prova com tão árduo esquema.
Mas aposto,
ó Mestre, que há-de ver,
Os seus
alunos a surpreender!
Pois bem…
Se o tema é filologia,
--Que
outro, acha, poderia ser?
…Ou iria
pensar que me eximia
Ao mister
que me incumbe de aprender,
Pese embora
causar-me alguma asia
A soma de
figuras a reter…
Irei
então aqui desbobinar
Todas a
fio, sem me atrapalhar.
Corta a aférese
letras no princípio,
Elide-as
a síncope no seio.
E, como
se ela fosse um precipício,
Come a apócope
o final, sem rodeio…
Já a prótese
acrescenta no início;
A epêntese
soma pelo meio;
E a paragoge,
farta e liberal,
Dilata os
fonemas no final.
E para
que não falte a este acervo
Outra
figura, a da assimilação,
Deixo
aqui afirmado que ela é o nervo
Que resume
dois grafemas em tensão,
Subjugando
um ao outro, como servo.
Ditongação e palatização,
Anasalando
ou afunilando,
Aparecem
também de vez em quando…
Quem se
perder por entre estes carreiros
E não
topar a porta de saída,
Tenha cautela
com alguns sendeiros
Cambaleando,
ébrios, sem guarida,
Pois que vos
levarão a um atoleiro.
Seguem, lerdos,
miragens corrediças,
E somem-se
em areias movediças…
REBELADO,
assim, me manifesto,
Não
contra cores, gostos ou feitios,
Mas quero
aqui deixar o meu protesto
Aos duros
kapas, e a outros desvios
Que tornam
o crioulo indigesto,
Difícil
de tragar, porque bravio.
Nôs é morábi… Deixo aqui a dica:
Indjúto
móri, ma firfíri fica…
Talvez
porque as ideologias, ao menos no Gil Eanes, não tinham ainda por essa altura
(anos 60 de 900) contaminado significativamente a Academia, Nhô Balta, bem
escorado na sua sólida formação em Filologia Românica, pilar sólido do Direito,
em que também se formara, era um valor seguro bem firmado da língua e da
literatura cabo-verdianas, com obras publicadas nas duas vertentes, mormente
“Chiquinho” (1947), um romance autobiográfico escrito durante a maior crise de
estiagem e de fome verificada nas ilhas; “O Dialecto Crioulo de Cabo Verde”
(1957), uma obra-mestra de filologia da língua cabo-verdiana; para não falar
dos poemas e prosas da Claridade, nos já longínquos idos dos anos 30, ou da
“Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea” acabada de publicar no início
dos 60. Menosprezar o legado destes Mestres, a que veio juntar-se a brilhante
filóloga Maria Dulce de Oliveira Almada, outra são-nicolauense, que publicou,
também no início da década de 60, uma sábia “Contribuição para o Estudo do
Dialecto” falado em Cabo Verde, de 160 páginas, seria como ter uma despensa e
uma geleira recheadas de suculentas iguarias e alimentar-se de desperdícios… Serviu-me
bem por essa altura a lição com que fechei o meu poema, trazida de Fundura, no
rescaldo dos terríveis anos 40:
Baltasar
Lopes da Silva, poeta, professor, filólogo, ensaísta, romancista, advogado,
músico e até político, discreto mas requintado, e por outro lado homem do povo,
íntegro, indefetível, inteligente, perspicaz, defensor da liberdade, como bem o
define um historiador recente, logrou transmitir-nos nos anos 50 a 70 do século
XX, com limpidez e singeleza, e ao mesmo tempo com a profundidade do
investigador e a paixão do patchê[8]
que se orgulhava de ser, os fundamentos, a gestação e os rebentos do alfobre do
nosso belo linguajar crioulo.
Numa
Mesa Redonda havida no Grémio do Mindelo, nos dias 21 e 24 de julho de 1956 sob
o tema “O Homem Cabo-Verdiano”, seguidas pelos estudantes de então com
particular atenção, moderada pelo prestigiado médico Aníbal Lopes da Silva, registada,
transcrita e difundida por técnicos da Rádio Barlavento, na qual participou e
interveio a fina-flor da sociedade civil cabo-verdiana de então, desde médicos,
como Henrique de Santa Rita Vieira ou João Morais; a advogados, como Adriano
Duarte Silva ou Manuel Serra; a escritores, como Henrique Teixeira de Sousa ou
o próprio Baltasar Lopes; a comerciantes, como João Lopes ou Joaquim Nonato
Ramos; a professores, como Guilherme Chantre ou António Gonçalves; a jornalistas,
como Raul Ribeiro e o pessoal da Rádio Barlavento; a militares, como José
Resende ou Manuel Pélico; a industriais, como Jonas Whanon ou Emílio Santiago;
ou a políticos, como Júlio Oliveira ou José Mascarenhas, um dos vários temas
lançados para o debate pelo orador convidado, professor Almerindo Lessa, que
chefiava uma Missão de Seroantropologia a Cabo Verde, fora o de saber “se a
língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional, com a riqueza
fonética e a plasticidade de um verdadeiro idioma, ou é apenas um ‘falar útil’,
bom como instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações
intelectuais”…
Nada
melhor que as respostas então dadas a esta pergunta pelo professor, para deixar
neste meu monólogo, sucintamente mas com meridiana clareza, o pensamento que
Baltasar Lopes nos transmitia nas suas aulas sobre a abordagem ao nosso crioulo:
1.
A língua crioula tem a plasticidade de um
verdadeiro idioma, com capacidade de desenvolvimento, desde logo fonético, pela
via da ‘aristocratização’ da sua base tradicional, reconstruída, com o passar
do tempo, e enriquecida pela influência constante da língua-mãe, reconstrução e
enriquecimento esses aportados quer por falantes de português vindos de fora
quer, sobretudo, por naturais de Cabo Verde que moraram ou se formaram fora e
se mantiveram inseridos na sociedade cultural e linguística das ilhas.
2.
Há uma diferença marcante entre os processos
de transição do latim para o português relativamente à que ocorreu do português
para o crioulo, porquanto no primeiro caso a língua portuguesa se estruturou
num tempo em que a língua-mãe já não era viva, e portanto sem a sua influência
direta, prestando-se assim a uma evolução menos próxima da estrutura latina, ao
passo que o crioulo nasceu, cresceu e vive sob a influência e até o carinho da
sua mãe, não só viva, como florescente, e progenitora de várias irmãs, o que
implica e explica a grande proximidade, mau grado as aparências, entre língua-mãe
e língua-filha, nos diversos eixos de análise...
Quanto ao
léxico da língua cabo-verdiana, ele flui, mau grado as aparências de quem esteja
desatento, como sejam a da obnubilação das vogais átonas e a do consequente
encontro violento de consoantes, um fenómeno particularmente observável em
Santo Antão, quase cem por cento do português de origem, conservando mesmo, por
vezas, os respetivos arcaísmos.
Já no que
respeita à estrutura morfológica da língua cabo-verdiana, e sendo sabido que é a
morfologia que define - mais que a fonética, o léxico ou a sintaxe – a filiação
de uma língua em outra, Nhô Balta era perentório: o crioulo reduziu e
simplificou o sistema morfológico do português materno, mas sem o adulterar.
Ou
seja, o crioulo cabo-verdiano, “se não é uma língua de civilização, é uma
língua regional de corpo inteiro, com todas as características e todas as
possibilidades que um idioma comporta”… Tal constatação apela à identificação e
à compreensão das dinâmicas fonéticas e morfológicas da fala e da escrita, sem
desvios para eventuais constructos alienígenos e fraturantes que pretendessem esconder,
por motivos meramente ideológicos, ou até nativistas, mascarando a genética da escrita com puzzles de sinais gráficos, o nosso falar e o nosso
escrever das suas origens, ou, pior ainda, viessem a privar as novas gerações
da nação cabo-verdiana da compreensão e do acesso ao acervo literário e
científico que a língua portuguesa produziu e divulgou ao longo da sua
história, e continua a produzir e a divulgar, nos quatro cantos do mundo em que
é falada e escrita, incluindo em Cabo Verde, constituindo-se em património
comum, de pleno direito, de todos quantos falam, cantam ou escrevem em língua
portuguesa... Ao contrário de rebuscar disrupções tectónicas de afastamento, alimentar e monitorizar os fluxos do português para o crioulo, uma língua novilatina, cheia de vigor e de futuro,
só a fortalece e nobiliza, pois mantém vivas as suas raízes, usufruindo
da rica seiva que ambas recolhem da terra comum, gerando novas flores e novos frutos
de colorido e sabor diferenciados mas belos e gostosos, tal como exibem, para gáudio dos nossos
sentidos e das nossas mentes, os jardins e os pomares na primavera…
[1] Pequenas
chãs ou planaltos
[2] Lugares
elevados, cimos
[3] Estação
das chuvas
[4] Grupo
refratário à aplicação das reformas do Concílio Vaticano II na Igreja Católica
em Santiago
[5] Inocentes.
Crianças de tenra idade.
[6]
guloseimas
[7] Língua
de contacto
[8]
Designativo, por antonomásia, do natural da Ilha de S. Nicolau. Homólogo de
“porquê”.
Comentários
Enviar um comentário