5 - Rádio Clube de Cabo Verde (parte I - A minha passagem pela Estação)
...“Tujinha,
na Achadinha de Cima, dedica com muita saudade a morna ‘Mostram Céu”, por Amândio
Cabral, para Djodje e Bia, a bordo do Ernestina, a caminho da América”...
Nação-arquipélago, as maiores estradas de Cabo Verde estavam sobretudo no mar, antes da popularização do tráfego aéreo, pelo que as rotas dos barcos, desde as mais extensas, a caminho de terras longe, às mais curtas, aproximando as ilhas, eram as mais visadas nessas mensagens, num refúgio emocional que ansiava manter por perto quem se afastava, a bordo de palhabotes, escunas, faluchos, caíques ou chalupas, como o Ernestina, o Maria Sony, o Belmira, o Carvalho, o Ildut, o Novas da Alegria e outros navios, de um, de dois e de três mastros, em viagens que podiam durar entre um dia e semanas, e trajetos que alternavam a esperança com a fatalidade, o que conferia àquelas mensagens um dramatismo verdadeiramente existencial, intensamente vivido pelos familiares e amigos, e partilhado pelos ouvintes da rádio, uma espécie de família alargada unida por fortes laços, se não de sangue, de uma cultura e vivências comuns, forjados ao longo de séculos, a superar constrangimentos vários, desde os impostos pela natureza, por vezes madrasta, aos que se ligam à diversidade longínqua de tradições, diferenças somáticas ou credos, que resultaram entretanto em uma nação polícroma, tolerante, ‘morábi’, com uma alma nova, resistente a ventos e marés, já expandida pelos quatro cantos do mundo, em um modelo de paz, eminentemente corporizado por um modelo cultural único, de que a música se foi tornando, muito devido à radiodifusão, um polo incontornável...
As mornas dominavam, pois a saudade dos que viam partir os seus para o desconhecido morava no coração de cada cabo-verdiano, que delas se alimentava.
À parte o
noticiário, preparado e lido geralmente por um dos três veteranos do Rádio
Clube, João de Deus Lopes da Silva, Raúl Barbosa e Arnaldo Barreto Monteiro, que
era também autor e apresentador do programa “Tapete Voador”, o essencial deste
período vespertino de transmissão era preenchido por aquela melopeia: “fulano/a, em tal
lugar, para sicrano/a, a caminho de algures, a bordo do barco tal, dedica o disco...” , que era repetida à
saciedade pelo locutor de serviço, em cumprimento dos desejos pagos pela quota de
seis escudos o pedido, ao que se seguia a respetiva audição, para de novo
recomeçar a leitura de nova lista de dedicatórias, novo disco, outra lista,
outro disco...
Foi assim
que a Praia viu progressivamente engrossada a sua população, não só de santiaguenses
de origem, que foram trocando o interior pela cidade, mas de todas as ilhas, em
especial as mais próximas, Fogo, Maio e Boa Vista, conferindo à capital um
ambiente marcadamente cosmopolita no que se refere à diversidade de oriundos
das ilhas, seduzidos pela promessa, talvez vaga mas atrativa, de dias melhores e de
vidas mais fáceis de tecer.
Não foi por acaso que essa rubrica do RCCV conheceu grande longevidade, e não só nunca desapareceu, como veio a alargar-se a outros horários. Mas a programação ia transformar-se profundamente ao longo de um ano, mais precisamente do final de 71 ao final de 72.
A minha entrada a tempo inteiro no RCCV ocorreu na confluência de duas circunstâncias fortuitas: (i)por uma lado, a Direção, que na altura era constituída por jovens quadros da sociedade praiense (Orlando Barbosa, Orlando Mascarenhas, Armindo Barbosa, Renato de Figueiredo...) procurava alguém que assumisse a programação e relançasse a produção da Estação, fazendo jus ao seu rico historial, desde a sua constituição em 1945, pela mão de Fernando Queijas, Bento Levy e outros sócios fundadores, ou nos anos 50, quando se deslocou, em 1954, da Marconi, na Achada, sob o patrocínio de Manuel Tomás Dias, para a Praça Alexandre de Albuquerque, e se instalou no primeiro andar do novo edifício da SAGA (Sociedade de Abastecimento de Géneros Alimentícios - que depois passou a sede do Banco Nacional Ultramarino, atualmente o BCA), desta vez sob o impulso de Jaime de Figueiredo.
Foi por essa altura que se organizou uma série de concursos de grupos musicais (Pedro Bettencourt – Pipita - e filhos Mário e Quim, Unidos de Belém, Rico’s Crioulo Band, a cantora-locutora Ima Costa, Daniel Rendall e outros), que atuavam em palco montado no Ténis, nessa altura um espaço livre no Plateau que incluía o Cruzeiro e a Bateria; (ii)e por outro, eu acabava de ser punido pelas autoridades administrativas da época com um ano de exclusão da função pública, na sequência do episódio ocorrido um ano antes, quando fui denunciado à PIDE/DGS pelo Secretário Geral Tito Lívio Feijó por alegada ofensa ao Estado, desrespeitando um símbolo nacional e dando mau exemplo público, ao não me ter levantado da cadeira na Esplanada, como era uso, num certo sábado à noite, ao toque dos acordes introdutórios ao hino nacional*.
* O Secretário Geral da Província, Tito Lívio Feijó, denunciara-me à PIDE/DGS, que me convocara para depor. Em consequência fora-me instaurado um processo disciplinar, conduzido pelo Governador Civil da Cidade, Artur Nobre dos Santos, que culminou com essa punição.
Nesta
circunstâncias, livre dos compromissos com o Ensino Público, fui propor os meus
serviços no setor privado, à Direção do RCCV, na pessoa do eng. Orlando
Barbosa, uma vez que já conhecia os cantos à casa, por estar já a colaborar em alguns
programas. Verificou-se consonância nos objetivos e propósitos, mas havia
necessidade de aumentar os recursos financeiros do Rádio Clube, cuja receita
bruta pouco ultrapassava os cinco contos mensais, no essencial o produto dos
discos pedidos.
A minha primeira missão foi por isso dar a volta ao Comércio da Praia, na altura já com apreciável vigor (Serbam, Antoninho Mijota, Abel Cruz, Cândido de Vasconcelos, Herculano Vieira, Firestone, Manuel dos Anjos, Casa Moeda, Shell, Farmácia Africana, Sociedade Luso-Africana, Alfredo Veiga, A. C. de Sousa, Bossa Nova...), angariando publicidade. Dois dias depois tinha em mão contratos de publicidade de mais de 21 contos, que, somados à receita existente, elevava os recursos financeiros mensais da Estação para perto de 30 contos, montante mais do que suficiente, nos parâmetros da altura, para acorrer às despesas que implicava o programa de relançamento que propus. Apresentei-os à Direção e fui de imediato admitido como Diretor de Programação.
Comecei logo a trabalhar numa nova grelha, que de imediato ampliou o horário até às 22 horas (o vigente era das 18 às 20). Nos primeiros meses de 1972 acrescentou-se um novo período, à hora do almoço, das 12 às 14, e no verão introduzimos finalmente um programa da manhã, das 6:30 às 8:30, que seria eu próprio a apresentar, até que aparecesse alguém com disponibilidade para se levantar de madrugada, com assistência técnica do Pepei Palma Andrade. Eu próprio gravei ao piano o gingle de abertura, com base na morna “Ês dez gronzinho di terra...”, em modo de carrilhão, que entrava no ar às 6:25 durante 5 minutos. E todos os dias escrevia um curto poema para a primeira rubrica, “Poema para o dia que surge”, gravado pelo Carlos Coutinho por volta da meia noite...
Um grupo de ex-alunos do Liceu (Carlos Coutinho, Lorena Santos – Janecas -, Duli Figueiredo, Fernanda Marafusta, Alexandre Herculano, Luís Lobo, Ivo Vera Cruz, Luís Carlos Vasconcelos, João Mariano - Janito...) trouxe sangue novo, injetado quer na locução, quer na apresentação de algumas rubricas, quer mesmo na produção de outras...

O Daniel Pereira, que já colaborava na produção com um “Momento de Poesia” e outro dedicado ao teatro (Proscénio) dava também uma ajuda como locutor, o José Gonçaves igualmente, além de inaugurar um programa de aconselhamento rodoviário. Valdemiro Lopes era o discotecário.
Diversas outras personalidades, como Ramiro de Azevedo, quadro superior na Agricultura, ou Mário Santos, professor no Liceu, mantinham com alguma regularidade crónicas temáticas.
Com um staff
tão jovem e reduzido conseguimos ainda assim passar de 28 para 52 horas de
programação semanal no espaço de alguns meses.
Viria ainda
juntar-se a nós o Aurélio Carlos Moreira, um profissional experimentado, exímio
locutor, além de excelente companheiro de equipa, vindo da Rádio Renascença, da
Metrópole, contratado pelas Galerias Praia (SERBAM), e que passou a operar uma hora por
dia com um programa publicitário de variedades, que, para além de enriquecer a
programação, reforçou também significativamente a receita do Rádio Clube.
Tipos de programação em setembro de 1972 (totais semana)
Carga horária |
Tipo de PROGRAMA |
32h45’ |
Programas produzidos no
RCCV |
10h45’ |
Programas publicitários
de agência (Galerias Praia) |
3
h |
Serviços de notícias |
3
h |
Pogramas enviados pela Emissora
Nacional (Lisboa) |
1h30’ |
Spots publicitários |
1
h |
Interlúdios musicais e
outros |
Grelha de programas (semanal) em setembro de 1972**
Concurso “Tudo ou Nada” |
É o ouvinte quem manda |
Disco da semana |
Tema 72 |
Dimensão 5 |
Compasso |
Momento militar |
Tempo de poesia |
Conheça a sua terra |
Como eu vejo a minha
casa |
Vidas célebres |
Página |
Escape livre |
Pausa para meditação |
Um artista, uma história |
Divulgação (programa de
Saúde) |
Tempo Micá |
Um conto |
Proscénio |
Música para gravar |
Passatempo |
Diamante sonoro |
Caixa Postal |
Três pedidos, três
canções |
Estúdio 3 |
Lembranças pela Rádio |
Histórias de
palmo-e-meio |
Rádio stand |
Música na estrada |
Concurso “Tudo ou Nada” |
É o ouvinte quem manda |
Disco da semana |
Parabéns Excelente iniciativa Professor
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