7. Uma entrevista ao "Rei da Morna", em 1969
Dezembro de 1969. Estávamos prestes a fechar o nº 7 d’A Voz Paroquial, de cuja redação fora encarregado à minha chegada, um mês atrás. Não era a primeira vez que Luciano Gonçalves – Bana - vinha atuar na Praia, mas havia apenas 2 anos, em 1967, que dera o seu primeiro espetáculo na capital. Depois dos seus grandes lançamentos e gravações como “rei da morna”, como justamente era já conhecido, de tournées por Dakar, Lisboa, Paris, Angola, Estados Unidos da América, de onde regressara havia pouco, e da gravação dos seus primeiros discos, Eternidade (1965), Nha Terra (1965), Pensamento e Segredo (1965), Luís Morais (1967), Bana à Paris (1968), estava claramente ultrapassada aquela fase preambular em que os artistas não são ainda “profetas na sua terra”. Bana já quebrara essa barreira e era idolatrado na ilha do seu pai, natural de Ribeira da Barca.
Quase dois metros de altura, sapato 50, 37 anos, encorpado mas elegante, rosto marcado por uma boca e um nariz predominantes e expressivos, a aumentar ainda mais a sua avantajada estatura, num todo que transmitia um ar de bonomia de bom gigante. Foi diante deste homem invulgar que me sentei, na esplanada da Praça Alexandre de Albuquerque, bloco e caneta em punho, para a entrevista aprazada. Tivemos uma conversa agradável mas breve, pois não tardou que me indicasse o método que melhor lhe convinha: deveria eu colocar as questões por escrito, e ele traria as respostas no dia seguinte, também por escrito; ciente de que não era senhor de dotes particulares de escrita ou oratória, que não teve oportunidade nem grande motivação de cultivar na Escola, no seu Mindelo natal, Bana já tinha no entanto resolvido e rotinado esta premissa importante da sua vida artística: a importância dos contactos com a comunicação social. Não sei quem terá sido o assessor, mas no dia seguinte entregou-me numa redação impecável as respostas às perguntas que lhe formulei. Pormenor não despiciendo, a forma engenhosa como Bana se esquivou à minha pergunta sobre as canções de intervenção então vigentes em Portugal, deixando claro o seu foco sobre a divulgação da música cabo-verdiana pelo mundo... De uma fineza notável!...
Chegado a 1969, já peso pesado da morna e da coladeira, Bana fizera um longo caminho, para mim ainda desconhecido, como provavelmente para a grande maioria das pessoas na Praia. Para trás da enorme popularidade de que já gozava, aplaudido na rua e esgotando a lotação dos espaços em que atuava, ficava uma longa história pessoal que só mais tarde eu viria a conhecer mais aprofundadamente, através de dados biográficos que foram sendo publicados, e que fazem de Luciano Gonçalves um caso paradigmático de uma vida cabo-verdiana que, sendo muito específica, pois enveredou por uma carreira artística, se alicerçou a montante num trajeto que por meados do século XX era dramaticamente rotineiro em Cabo Verde.
Nascido no Mindelo, em 1932, de uma mãe maiense e de um pai natural de Ribeira da Barca, ilha de Santiago, os dois atraídos pelo Porto Grande do Mindelo, um centro nevrálgico da economia de Cabo Verde nos tempos que corriam, de secas severas em todo o arquipélago, que eram sinónimo de carestia e fome, acabando por levar o pai a seguir o canto da sereia de S. Tomé, uma ilusória terra prometida, de natureza pujante mas onde trabalhar nas rossas de cacau significava um corte abismal com o estilo de vida pacato e livre de Cabo Verde, faleceu pouco depois, de “febres”, um eufemismo da altura para evocar a malária, o mesmo vindo a suceder à mãe alguns anos mais tarde, no Mindelo. Sendo ele ainda adolescente, a vida de Bana não foi nada fácil, coagido a ganhar o pão de cada dia, em conjunto com os irmãos órfãos, em biscates ou na estiva.
Francisco Xavier da Cruz (B. Leza)
Em alternativa à escola, o seu hobby desde cedo foi o de seguir os passos do grande mornista Francisco Xavier da Cruz (B. Leza), de quem se aproximou tanto que acabou por se tornar o seu discípulo predileto, além de seu moço de recados e cuidador, e quando Xavier já não podia mesmo cantar, diminuído pela doença, assobiava as suas criações, que Bana reproduzia cantando. Foi assim com aquela que foi considerada uma das suas últimas obras, Lua, nha testemunha, que Bana, acompanhado de Olavo Bilac e Caduca, dois dos companheiros que com ele animavam as noites do Mindelo na década de 50 do século passado, introduziu logo no seu repertório.
Passados dois anos da morte de B. Leza, em 1958, ocorreria uma situação que serviu a Bana de trampolim improvável para outros voos que não o de se confinar aos bailes e serenatas costumeiros de S. Vicente. Em 1960, no âmbito das comemorações henriquinas pelos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, veio ao Mindelo um grupo de estudantes de Coimbra, no paquete do mesmo nome, ávidos de usufruir do ambiente sempre festivo e caloroso da ilha, sobretudo ao tombar do dia e noite dentro. Terminara o Bana e o seu pequeno grupo de amigos artistas a sua atuação, numa dessas noites, já de madrugada, e como era hábito, ficaram a ensaiar em frente ao Liceu Gil Eanes.
Manuel Alegre
Fernando Assis Pacheco
Atraídos pela música para eles exótica, uma mão de estudantes de Coimbra veio sentar-se ao pé dos músicos a apreciar as mornas e as coladeiras, uma, e outra, e outra... Entre eles, rapazes e raparigas, estavam Manuel Alegre e Assis Pacheco, que eram líderes do grupo de teatro que integrava a expedição. De tal modo se encantaram com a voz e a personalidade de Bana, que a partir dali e até ao fim da estadia vinham buscá-lo para todas as festas que organizavam, incluindo uma no Grémio, um clube restrito que integrava um número significativo de ex-estudantes cursados precisamente na Universidade de Coimbra, um ambiente vedado a quem não fosse da elite mindelense. Bana resistiu, porque nem sequer tinha sapatos, apesar dos seus 28 anos, nem se sentia à vontade naquele meio elitista, mas a insistência foi tal que ele acabou por anuir. A partir dali Bana não só passou a ser conhecido e aceite como artista talentoso no Mindelo, como se desenhou de imediato, com a conivência proativa dos estudantes, a perspetiva de emigrar, gravar discos e organizar tournées de música cabo-verdiana, o que veio rapidamente a acontecer, primeiro no Senegal, onde permaneceu durante 3 anos, cantou na Rádio Senegal, geriu um Dancing, até integrar o primeiro elenco da Voz de Cabo Verde, com Luís Morais, Tói de Bibía, Eduardo Silva, Amburtu, um grupo que mais tarde se consolidaria na Holanda, com João da Lomba, Morgadinho e Frank Cavaquinho. Seguir-se-iam Portugal, Angola, Europa, América...
VOZ DE CABO VERDE, anos 60 do século passado na Holanda
Morgadinho, Frank Cavaquinho, Luís Morais, Djon da Lomba, Bana, Toi de Bibía
Entretanto, a vertigem do tempo levou-nos por caminhos diversos, o Bana cantando sempre, mas também ensaiando algumas experiências empresariais em Lisboa, restauranteN ovo Mundo, discoteca Monte Cara, vulgo Bana, novos discos (um total de cerca de 50), entre os quais Rotcha Nu (1970), Só Coladeras (1971), Coladeras (1972), Contratempo (1974), Cidália (1976), Miss Unidos (1977), O Encanto de Cabo Verde (1982), Dor di nha Dor (1984), Gira Sol (1998) e tantos outros, novos espetáculos, novos países, novos músicos...
Eu fui para a Bélgica em 1973 afastar-me de guerras indesejadas, regressei passados 10 anos com família constituída, abri em Portugal a Soltrópico em 1989 e com isso reatei com Cabo Verde, já não sozinho, mas com centenas de milhar de turistas ao longo de 20 anos: portugueses, espanhóis, franceses, suiços, polacos, checos, holandeses... Outras aventuras, para outros posts, mais adiante...
Antes dos 50 anos Bana era já pai de uma família numerosa...
Aqui, com 6 dos 8 filhos, por alturas de um Carnaval...
22 de setembro de 1999. Volto a encontrar-me com o Bana, no Coliseu de Lisboa, num evento que intitulou de “50 anos de canções”. Na Praia, tinha eu 24 anos e ele 37. Agora, a relação era de 54 para 67. Mais que um simples espetáculo, uma vivência intensa e única. Cantando Caminho de S. Tomé, Bana já tinha entretanto ido ver, rever e entender as rossas, com as suas comunidades cabo-verdianas de segunda e terceira gerações, e nelas a distância e a nostalgia de quem deixou o berço, pobre mas amado; depois, Nossa Senhora de Fátima, uma morna encomendada a B. Leza para consolar uma menina desenganada pela medicina, mas que recuperou, quem sabe, por milagre, após Bana lha ter cantado; Lena, um grito que lhe saía das entranhas, quiçá por lhe fazer reviver alguma paixão fugitiva; Amor... Areia de Salamansa... Sodade de B. Leza (certamente muito viva, ele que o carregou na fase em que o poeta perdeu a mobilidade...)... Xandinha... E outras, sem mostrar cansaço. A expressão do rosto, marcado pela idade, mas transparecendo dignidade e sentimento, a mão direita trémula, segurando um lenço branco com que limpava o suor e alguma lágrima furtiva, a voz, ainda segura e expressiva, a naturalidade com que passou a enfrentar um público que não só apreciava a arte e o sentimento com que cantava, mas que o amava sem barreiras, que ele soube derrubar no decurso dos seus longos anos... O momento zen do espetáculo terá sido aquele em que contracenou com a expressiva Maria João interpretando Ondas Sagradas do Tejo, e em que inteligentemente, tendo em conta a plateia, cedeu o crioulo à portuguesa e assumiu o português com mestria, culminando em um abraço sentido, pleno de autenticidade e de universalidade, antes de passar às coladeiras, que puseram a plateia a dançar, e a sentir em fusão psicossomática que “despôs de sabe, morre é ca nada!”...
Bana convidou Maria João para cantar "Ondas Sagradas do Tejo"
Um espetáculo disponível em gravação: (youtube.com/watch?v=5FvCMDzWfp4), de visionamento obrigatório para quem quer que aprecie a música cabo-verdiana (e quem não aprecia?...), em que a língua crioula e a sua música sobem ao mais alto na sua vocação, aliás histórica, de laço de união entre povos...
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