8. Rádio Clube de Cabo Verde, parte II – Músicas e poemas

 

 (publicado inicialmente em 8 de junho de 2021)  

 Há períodos da nossa vida que são particularmente ricos e fecundos. Prometi voltar neste blogue ao tema da minha passagem pelo Rádio Clube de Cabo Verde, um desses períodos privilegiados da minha vida, e eis-me aqui para sublinhar com mais detalhe duas das vertentes que durante aquele ano (1971/2) mereceram da minha parte especial cuidado: a música e a poesia.

    No que toca à música, um pilar sempre presente na programação de uma Rádio, procurei em primeiro lugar suprir paulatinamente o déficit de conhecimento e apreciação da música erudita (clássicos, grandes orquestras, jazz...) de que me dei conta no ensino da disciplina aos jovens nas Escolas em que a lecionei. Dois programas foram dedicados predominantemente a satisfazer esse objetivo: “Música para gravar” e “Diamante sonoro”. As orquestras de James Last, Paul Mauriat, Mancini, Frank Pourcel, Glen Miller, Ray Conniff, Gershwin, entre outras, marcaram presença assídua nas minhas programações, bem como cantores extraordinários como Nat King Cole, Louis Armstrong, Harry Belafonte, Bob Dylan, Ella Fitzgerald, Mahalia Jackson, Ray Charles, Gilbert Bécaud, entre outros.

 

    Nat King Cole

               

    Quanto à canção cabo-verdiana, o alargemento sucessivo da programação, de catorze horas semanais para mais de cinquenta, ampliou substancialmente a sua difusão, antes limitada às “Lembranças pela Rádio”, passando a ocupar boa parte dos 3 períodos de emissão. Não havia ainda muito tempo que a discografia cabo-verdiana tinha arrancado, primeiro com os registos da Rádio Barlavento e depois com a gravação dos primeiros 45 rotações em Portugal, em Dakar, em Paris e na Holanda, começando já a aparecer discos de 33 rotações, como foi o excelente “Sodade” do Humbertona, que não me cansei de passar... As mornas calaram profundamente na minha sensibilidade emocional e musical, quer pela forte marca de autenticidade vivencial dos temas e das melodias, quer pelo ritmo, pautado pela falsa monotonia do cavaquinho, que as violas se encarregavam de desdobrar em bordões e andamentos diversos, e o violino de emergir em solos pungentes, como que tentando arrancar dos escaninhos da alma da morna o que ela transporta de mais profundo e secreto. Já as coladeiras foram para mim um género totalmente original, revelando, em contraponto à morna, a alegria de viver do cabo-verdiano, que cultiva o convívio e a festa haja o que houver, com aquele ritmo que apela à dança e a alimenta, juntando aos do cavaquinho e das violas o som festival do clarinete ou do saxofone. 

    Além do Bana, que predominava, da Titina ou da Voz de Cabo Verde, que depontavam, continuávamos a passar os discos de Fernando Queijas, Marino Silva, Arminda Sousa...

    O funaná já tinha algumas décadas no interior de Santiago, filho improvável da concertina e dos ferrinhos, trazidos de Portugal para divulgação das cantigas populares portuguesas e para fazer as vezes do órgão nas igrejas que que dele não dispunham, mas ainda não tinha chegado à discografia, tal como o batuque e a tabanca, de que pude entretanto presenciar ao vivo algumas exibições, que permaneciam por enquanto ainda na esfera da tradição popular.

                                                     

                        Concertina hexagonal


    As canções de intervenção, que no início dos anos 70 alimentavam a ânsia de mudanças em Portugal, estiveram também muito presentes na programação desse período (José Mário Branco, Zeca Afonso, José Jorge Letria, Manuel Freire, Padre Fanhais, José Cheta e outros).

    O acento tónico do cancioneiro da altura era no entanmto posto, em especial pela juventude de então, na canção brasileira (sobretudo Roberto Carlos e Nelson Ned, e em menor escala Jorge Ben, Erasmo Carlos, Chico Buarque, Milton Nascimento, Wilson Simonal, Caetano Veloso...), assim como nas cúmbias e merengues.

 

                                                                                    Roberto Carlos, capa do LP de 1971

Por outro lado, as bandas pop e rock que foram surgindo nos anos 60 e continuavam a despontar nesse início dos 70 pelo mundo, em particular nos países  anglo-saxónicos (Inglaterra, Estados Unidos, Austrália...) foram também conquistando terreno nas preferências dos ouvintes do Rádio Clube, sobretudo quando, em finais de 1971, abriram as Galerias Praia, com vasta oferta discográfica para o tempo.

    Para não falar dos numerosos discos de 33 rotações que regularmente eram oferecidos pela Emissora Nacional e por uma Organização Cultural holandesa...

 Deixo de seguida uma listagem, com links para audiovisualização, de algumas das peças, nacionais e internacionais, que me lembro de ter programado.   

 

A – Mornas e Coladeiras

 

 

                            Humbertona

 

B – Cancioneiro internacional

 

 

Bee Gees em 1969

 

 

Aphrodite’s Child

 




 

 

POESIA

    Foi muito através da poesia que fiz passar as preocupações sociais e filosóficas que mais me sensibilizavam, e cuja expressão achava fazer parte do cargo de programador que desempenhava. Todos os dias abria o Programa da Manhã, às 6:30 com um “poema para o dia que surge”, um mini-poema que era gravado na véspera ao final do dia pelo Coutinho. Deixo aqui alguns exemplos:


              1. “Se te levantas,

todos os dias,

para fazer algo mais

que antes não existia,

estás a construir o futuro.

Este poema é para ti,

porque para ti

surge mais um dia... "


2. Se os dias surgirem
e tu não cresceres,
não culpes o sol.
Pertence a ti
ir gerando,
por dentro,
o astro do querer...” 


3. “Se a terra-mãe não tivesse a força da vida,
a folha não cresceria,
nem o caule,
ou a raíz.
Se em ti houver a seiva do querer,
aparecerão,
no cimo da tua vida,
os frutos dum amanhã diferente”.

 

    

    Já no “Momento de Poesia”, dedicado prioritariamente a poetas consagrados, intervim também com alguns poemas mais estruturados, nos quais me apraz rever as preocupações genuínas de que estava imbuído aos 27 anos, e que ainda procuro cultivar.... Deixo aqui um, que publiquei também no nº 7 de A Voz Paroquial:

 “Na poeira seca e dura da mãe-terra

onde a única esperança da semente

é uma gota de água que a fecunde,

pés gretados,

troncos curvos pelo peso,

levam, oprimidos, a cruz dura,

cruz de chumbo,

da semente da vida,

que para crescer quer água e não a tem.

É a cruz da fome,

da doença,

do desprezo

que, em torturante soma,

esmagadora,

no dorso já cansado de uma gente

vai calando, uma a uma,

as esperanças de um rebento,

sempre novas,

sempre mortas...

Mas,

como o rizoma que, oculto, paciente,

aguarda a fecundidade,

primavera a primavera,

o coração do pobre,

humilde e confiante,

persistente, feliz quási,

vai vivendo na esperança,

grande como a gota de água,

de que surjam, belos,

da poeira seca e dura desta terra,

os rebentos,

as flores e os frutos do progresso”.


Comentários

  1. Olá: Gostei muito dessas recordações da Rádio Clube de Cabo Verde. Descrevem um período do qual, não existe qualquer testemunho... Na verdade, caro Sr. Armando Ferreira, fiquei contente por descobrir um colega da rádio e da música. Eu sou jornalista, comecei na Rádio Barlavento em S. Vicente, depois da Independências continuei na rádio até hoje estar reformado. Agora, dedico o meu tempo à pesquisa musical e da história da rádio em Cabo Verde. Depois de um livro sobre a Rádio Barlavento, estou agora a escrever sobre as Rádio Clube! Em boa hora encontrei este testemunho. Preciso de dados para uma nota biográfica sua, que constará com outras no final do livro. Gostaria de entrar em contacto consigo, mas neste blogue não existe email. Olhe o meu email é goncalvescarlosfilipe@gmail.com
    Desejos de Saúde e um forte abraço

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