10 - Uma Década na Bélgica , Parte II
DEZ ANOS, CINCO MORADAS EM
BRUXELAS
Bruxelas era
de há muito, nos anos 70 do século XX, uma cidade particularmente cosmopolita, dada a sua centralidade na Bélgica e
na Europa. E o cosmopolitismo era desde logo visível ao nível nacional, uma vez
que as 3 regiões (Flandres, Valónia e Bruxelas) e as 4 comunidades (contando com
a Comunidade Germanófona, a leste) do país estavam refletidas na população da Cidade,
ela própria uma dessas três regiões e uma dessas 4 comunidades. Um puzzle
marcadamente diferenciado, desde logo na vertente linguística. A par do francês
e do flamengo, o brabanção, ou ‘bruxellois’, um dialeto de base germânica com vasta
inclusão de terminologia francófona, refletia particularmente o ADN dos bruxeleses de gema; um
linguajar único, modulado e colorido, resultado do cruzamento prolongado de
populações, atividades e culturas diversas ao longo de séculos, espelhando um
misto de personalidade intrincada e de tolerância pragmática, aberta a
novidades mas ciosa da tradição, como tão bem pudemos comprovar, por exemplo
nas nossas regulares visitas ao Marché aux Puces, rue Blaes, quarteirão das
Marolles... Foi lá que comprei, entre outras coisas, um disco do Jeff
Kasak (pseudónimo do escritor e humorista Jean d’Osta, nascido na Comuna de
Ixelles) que ainda hoje permanece como excelente desopilador, não só para mim e
para a Guiomar, como também para o David e a Isabel (também eles nascidos em
Ixelles).
(https://www.youtube.com/watch?v=AfwRonjfXCE)
(https://www.youtube.com/watch?v=MK-brr1CXzY)
Fazendo jus à excelente
mobilidade habitacional proporcionada pela cidade de Bruxelas, e acompanhando o
crescimento da família, duas das nossas moradas, depois do teto de acolhimento
inicial do Luís, foram precisamente em Ixelles (primeiro Rue Godecharle e pouco depois,
em inícios de 1974, Rue Armand Campenhout – quando estava para nascer o David). Com a
chegada da cunhada Ester mudámo-nos em 1977 para Saint Gilles (Rue de la
Filature, onde fizemos amizade, entre outros, com um vizinho idoso muito amável e bem disposto,
mr. Gardinal, e com o Bibi, um alsaciano que explorava ali perto uma loja de tintas em que o Luís se abastecia para as suas bricolages) e finalmente, quando estava para nascer a Isabel, em 1979, mudámo-nos para Forest, av. Jupiter, onde
permanecemos até ao regresso a Lisboa, em julho de 1983.
Ø (i) Abundavam
os apartamentos a alugar, e bastava dar uma volta pela zona para a qual nos
aprouvesse mudar, e rapidamente encontrávamos.
Ø (ii) A
disponibilidade de um apartamento era assinalada por um cartaz de um modelo
convencional com a menção À LOUER / TE HUUR (o bilinguismo era obrigatório) colado em um vidro de uma janela,
ostentando o telefone a contactar. Cumulativamente, um jornal que era
distribuido gratuitamente pelas caixas de correio de toda a cidade, de nome
VLAN, continha toda uma panóplia de anúncios de vendas e aluguer, com uma
súmula de informação mais detalhada, incluindo características, preço,
contactos...
Ø (iv) Os
abastecimentos em alimentação eram feitos quase sempre em lojas de uma cadeia de
supermercados de nome SARMA (acrónimo de Société Anonyme de Revente d’articles
de Masse). Além de produtos alimentares, muito bem apresentados, o SARMA
vendia muitos outros artigos (discos, equipamentos diversos...). Frequentámos
longamente a loja da Chaussée d’Ixelles, mas íamos também à da Av. Louise, ao Sarma
LUX, uma grande superfície com abundante e variada oferta, ocupando vários e
extensos andares.
Ø (vi) Outras
lojas que ficaram a fazer parte das nossas memórias de Bruxelas foram a C&A, a Innovation, Vanden Borre (eletrodomésticos), o Shopping Center de Woluwe (o primeiro de Bruxelas - 1969), o City 2
(o segundo Centro Comercial da capital belga - 1976), Mother Care (roupa de bébé), a
Carpetland (tapetes, em Drogenbos – o David e a Isabel exultavam com o tobogan
que mergulhava numa piscina de bolas multicolores), a Maison Dorée e a Dujardin, onde a Guiomar comprava tecidos para fazer algumas das roupas do David e da Isabel, ou ainda a Bavasto, uma loja de artesanato oriental...
(vii) Para mobília íamos a Alsemberg, ao Vastiau Godeau, onde havia grande quantidade e variedade de móveis de boa madeira (caju, cerejeira, carvalho, castanho...), ou a ao Reinhardt, na Flandres, também com excelentes escolhas.
Ø (ix) Aos fins
de semana frequentávamos a piscina de Longchamp ou a de Saint Gilles, ou, à
falta de praia por perto, íamos estender-nos, no verão, na relva do Bois de la
Cambre. Ou ainda, em alternativa, íamos passear a um dos muitos parques e bosques
próximos de Bruxelas (Tervuren, Forêt de Soignes, Genval...).
Ø (x)No apartamento da Av. Jupiter instalei, com o apoio do nosso amigo João, meu colega de trabalho na Garage Van Laken, uma grande gaiola de madeira e rede a que foram chegando pássaros diversos, desde codornizes a periquitos e pequenas aves exóticas, que comprávamos na Grand Place, ao domingo, no Marché aux Oiseaux.
Ø Ø (xi) Os transportes urbanos em Bruxelas eram excelentes, e permitiam deslocações cómodas e rápidas para todo o lado, em autocarro ou elétrico ou em um embrião de Metro de Superfície (o Metro de Bruxelas em profundidade apenas começou a circular em 1976, com a linha Roi Baudouin/Simonis, de 30 estações).
PASSEIOS
As idas a Roterdão eram
frequentes, aos fins de semana, não só as que se ligavam com ensaios de teatro,
como também as de convívios com a numerosa comunidade cabo-verdiana local,
tendo em pano de fundo, umas vezes desafios de futebol, outras a fruição da música
cabo-verdiana, sempre complementada com uma cachupada, em casa deste ou daquele
amigo (o saudoso José Fragoso era um elo de ligação sempre amistoso, aglutinador e
solícito), jogos de bisca e por vezes baile noite fora...
Mais raro eram encontros com as comunidades
cabo-verdianas de Paris e do Luxemburgo, cidades que visitámos ainda assim com
alguma regularidade, a par de Colónia. A propósito de Colónia, o regresso da Alemanha colocava-nos ao
início problemas de orientação, dado que a cidade de Liège, o ponto de
referência intermédio, se já na ida era confuso, com a designação alternativa
de Luik, quando se atravessa território flamengo, então na Alemanha gerava mesmo hesitação, uma vez que nos painéis aparecia apenas com uma terceira designação:
Lutich...
Um dos passeios mais aprazíveis, em qualquer das estações do ano, e por isso muito repetido, consistia em rumarmos a Namur (aqui também a designação de Namen atrapalhava, como de resto a de Bergen para Mons), enveredarmos pela estrada marginal do vale do Mosa, a caminho de Profondeville, Anhée e Dinant (uma cidade encantadora, além de excelente para almoçar), voltarmos a subir a Anhée, seguir o curso do afluente La Molignée, até Maredsous, lanchar uma pranchada de tartines de queijo do Convento, acompanhadas da respetiva e suculenta cerveja, e depois voltar, à tardinha, a Bruxelas, por Charleroi...
Outro passeio memorável foi o que fizemos em outubro de 1977 a Thionville, na Alsácia-Lorena, onde moravam os tios da Guiomar (Ritinha, Zézé Barbosa), com os seis adoráveis filhos (José, Solange, Júlio, Carla, Dilce e Gérard). Haveríamos de lá voltar em 82 pelo Natal, em que o regresso, antes da passagem de ano, foi feito debaixo de uma tempestada de neve, num Celica, o modelo mais desportivo da Toyota, felizmente precedidos de um camião limpa-neves em boa parte da auto-estrada A4, que acabava de ligar o Luxemburgo a Bruxelas...
Um outro, por volta de 1978, levou-nos a Leipzig, para onde se mudara a cunhada Ester. Já tínhamos o David, na altura com pouco mais de 2 anos. Acompanharam-nos o Joaquim Mendes e a Marie Laure, por sua vez com o Alexandre, também ainda pequeno. Ficou-nos gravada na memória. Logo na fronteira entre as duas Alemanhas de então, a recomendação pela Polícia de Leste de que não nos devíamos desviar da estrada principal (Frankfurt/Erfurt, e desvio para Leipzig depois de Jena). Porém, como não tínhamos garantias de que os depósitos teriam autonomia até Leipzig, arriscámos um breve desvio para Eisenach, para reabastecimento. Uma cidade que nos impressionou fortemente, tal era o aspeto antiquado de tudo: casas, ruas, autocarros, automóveis... Era como se tivéssemos sido transportados a um cenário da minha região natal de uns bons 30 anos atrás... As indicações de bombas de combustível conduziam-nos sistematicamente a estações de abastecimento apenas com mistura para motociclos, uma vez que a quase totalidade dos automóveis (Trabant – ainda havia muito poucos Lada, uma versão russa do Fiat 124), gastava esse tipo de combustível. Até que obtivemos indicação da única bomba de gasolina 'super' da cidade, para nosso alívio...
Outra memória que nos
ficou desta viagem foi o aspeto vetusto das construções na cidade; a Ester
havia de nos explicar que, sendo as casas propriedade do Estado, os utentes
apenas se preocupavam com o interior das habitações... Cereja no topo do bolo,
ao regressar, a Polícia fez sair toda a gente, vasculhou o pequeno Toyota 1000
e, não satisfeita, ordenou-me que desmontasse o assento de trás (desconfiaria
de que transportava algum fugitivo? Ou era mesmo só para chatear?... Nunca
saberei...). Mas nem tudo foi negativo neste passeio: fomos a Berlim (leste),
onde a Alexander Platz impresionava pela sua imponência, cronometrada pelo
imponente relógio mundial, que marcava as horas de cerca de 150 cidades ao
redor da Terra, e sobremaneira pela Torre de Televisão, que se elevava a 365
metros de altura, e foi erigida como símbolo da tecnologia aeroespacial russa
dos anos 60 do século passado. Subia-se de elevador à esfera “sputnik”, onde se
podia comer em um restaurante giratório, com um alcance visual de 42 km, 360º.
O contraste entre Berlim-Leste, uma verdadeira montra de modernidade, e as
restantes cidades da Alemanha de Leste naquela altura era notório, como nos
fora dado ver comparativamente em Eisenach e em Leipzig.
Mas o passeio que me ficou mais gravado na memória, ainda a Guiomar não tinha chegado à Bélgica, foi uma ida à praia, a Knoke, no verão de 1973... Fomos eu e o Moisés num sábado à tarde. O plano era pedirmos boleia, pelo que fomos de transportes públicos até à Basilique, e postámo-nos na berma do acesso à Autoestrada de Ostende (E40). Passado algum tempo de polegares esticados, acolheu o nosso pedido o simpático condutor de um descapotável vermelho. Não ia para Knoke, mas ia para Philipinne, na Holanda. Aceitámos de bom grado, na esperança de conseguirmos uma emenda de Philipinne para Knoke, atendendo a que não havia quaisquer barreiras ou formalidades na fronteira e certamente haveria gente a caminho da praia... Mas o sol estava a por-se quando chegámos, e o movimento a caminho do oeste já não fluía, tanto mais que a estrada era agora secundária... Conformados, acabámos por nos sentar numa praça, na esplanada de um restaurante, aparentemente em vias de fechar, resignados a dormitar por ali. Já noite dentro, chegaram dois polícias, certamente alertados pelo pessoal do restaurante, um de idade madura e outro jovem, inquirindo-nos porque estávamos ali àquela hora. Explicámos a nossa aventura, com a perspetiva de que tolerassem a nossa presença prolongada naquelas cadeiras. Estávamos em pleno verão e a temperatura era amena, e ao alvorecer havíamos de arranjar boleia. Qual não foi o nosso espanto quando o Polícia sénior nos convidou a pernoitar em casa dele... Tinha uma garagem enorme com alguns carros espaçosos, de que os bancos de trás de dois deles serviriam de cama por uma noite. Dormimos descansadamente. Fomos acordados de manhã cedo por uma filha dele, que vinha à casa de banho, anexa à garagem, e que começou por se assustar com a nossa presença ali (dada a hora tardia a que chegámos, o pai não a tinha avisado). Mas explicámos-lhe o que se passara na véspera, e passados uns minutos voltou e convidou-nos para o pequeno almoço. Era uma família extremamente simpática, e para cúmulo da sorte, de músicos, pelo que a curta refeição foi particularmente agradável, com um diálogo animado à volta do violino (a moça era violinista e eu também) e das bandas que estavam na moda por esses tempos, um tema do domínio do Moisés. E lá seguimos, confortados, para Knoke... Bons e longinquos tempos aqueles, em que a confiança entre estranhos se construía com naturalidade e calorosa solidariedade!...
CONVÍVIOS EM FAMÍLIA
Desterrados, e embora protegidos pelo acolhimento que a Bélgica nos proporcionava, em condições de liberdade e dignidade que eram um verdadeiro privilégio, de que temos de ficar eternamente gratos, o facto é que a distância natural entre a idiossincasia e a cultura belgas, mais próximas das dos povos do norte da Europa, e as nossas, latino-africanas-sulamericanas, nos impelia a procurar conviver uns com os outros, pelo menos aos fins de semana... Para além dos convívios em Lovaina e dos passeios conjuntos, que descrevi atrás, houve relações de proximidade que nos marcaram particularmente, quer a nível individual, casos do Leocádio, do Moisés, dos irmãos Fragoso, já referidos, quer entre famílias, de que é mister destacar algumas.
Desde logo, as dos tios Luiz e Joaquim, que nos visitavam e que visitávamos com frequência, acompanhando mutuamente o desenvolvimento das respetivas famílias, com as crianças a nascerem e a crescerem, os sucessos na constituição das famílias e das carreiras, ou mesmo apoiando-nos, em eventuais contrariedades...
O Leocádio veio a casar com a Sara, com quem teve 3 filhos, atualmente todos formados e independentes. Foram morar para a a Avenue Clays, em Schaerbeeck. Enquanto estivemos em Bruxelas trocámos visitas, e já depois disso mantemos contacto regular e amistoso.
O Luiz Mendes casou com a Ann, pouco depois de termos chegado à Bélgica. Com ela constituiu família e construiu vivenda em Begijnendijk, na Flandres, uma casa que ainda hoje é lugar de convívio entre amigos (em 2009 juntámo-nos lá em grande número, festejando um aniversário do Luís). Chegaram a Aida e depois as gémeas (Lizbeth e Caroline). Fomo-nos encontrando em Lovaina, a meio caminho entre as nossas moradas, e ainda assim fomos algumas vezes a a sua casa, onde inclusivamente joguei a bisca mais longa da minha vida, no verão de 1983, desde o final da tarde de uma sexta-feira até ao mei-dia de sábado, sem interrupção... Um record que ficou para a história do grupo...
Já o Joaquim Mendes, que morava em Lovaina, acabou por vir morar para a Chaussée de Louvain em Bruxelas, o que facilitou os nossos encontros, sempre frequentes.
Primeiro em Lovaina, depois em Woluwe, O Gastão Madeira e a Georgía, com as quatro filhas adoráveis (Elisabeth, Titina, Despina e Natalie), tornaram-se amigos muito chegados, e o convívio entre nós e as nossas crianças tornou-se regular e muito animado, por vezes cheio de criatividade.
FESTA DE DESPEDIDA
Antes de regressarmos a Portugal, em julho de 1983, fomos agraciados com uma festa de despedida, no jardim da "Villa" do Charles, na Naamsesteenweg, em Lovaina. Uma grelhada inesquecível, com o Sátiro e o Pierre aos comandos do assador, e de que gravei algumas cenas com uma câmara VHS que acabara de comprar, um filme que mantemos religiosamente e visionamos regularmente. Um gesto que nos encheu a alma e que para nós simbolizou um ponto alto no espírito de família que se forjou entre todos aqueles amigos e amigas naquele período em "terra longe"...
https://www.youtube.com/watch?v=yse4XlYraHQ
Recordar é viver!
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