9 - Uma Década na Bélgica
NOTA PRÉVIA: a maioria das fotos, mormente as individuais, são de muito baixa qualidade. Achei no entanto importante disponibilizar a quem leia este depoimento (certamente meus amigos e amigos entre si), os rostos, mesmo que desfocados, que tínhamos naquela época de recordações de um tempo em que forjámos, mais ainda que carreiras, uma amizade indefetível...
Felizmente, a Cabo Verde nunca
chegou a guerrilha que grassou em outros países em luta pela independência,
incluindo na vizinha Guiné, em Angola e em Moçambique nos anos 60 e nos 70 do século passado, até
ao 25 de abril de 1974, altura em que o Movimento das Forças Armadas (MFA) logrou cessar
as hostilidades.
Mas até lá os mancebos de
nacionalidade portuguesa, quer fossem da Metrópole quer fossem das Províncias
Ultramarinas, não se livravam de serem chamados a combater, de um ou outro dos lados
dos afrontamentos, a menos que quisessem e pudessem mudar-se para países de refúgio...
Fui chamado à inspeção em 1972 e
devia apresentar-me em Mafra para a instrução militar. A minha opção foi no
entanto a de me furtar à tropa nessas circunstâncias, à semelhança de numerosos
jovens portugueses por esses tempos... Na qualidade de colaborador do Rádio
Clube de Cabo Verde preparei a minha ida ao Luxemburgo, onde em 7 de abril de
1973 ia decorrer o Festival Eurovisão da Canção. Consegui o necessário visto no
passaporte, e foi assim que cheguei, não ao Luxemburgo, mas a Bruxelas, de
comboio, alguns dias antes dessa data.
O Luís Lacerda Cabral, que me tinha precedido de cinco meses, acolheu-me no apartamento que alugava no rés do chão do número 7 da rua Coppens, perto da Grand Place, no coração antigo da cidade de Bruxelas, entre o Petit Sablon e o Grand Sablon, e entre o Palácio da Justiça e o Palácio Real, ocupado na altura pelo rei Balduíno e pela Raínha Fabíola.
Uma visita ao Alto Comissário da ONU para os Refugiados abriu-me caminho a tratar de toda a documentação civil (Permis de Séjour, Permis de Travail, Permis de Conduire), pelo que fiquei de imediato enquadrado na vida social e económica do país de acolhimento. Com efeito, em face das resoluções da ONU condenando o regime português no que tocava às guerras coloniais, um refratário ao serviço militar (a minha condição por esses tempos) obtinha facilmente o estatuto de refugiado, que por sua vez dava acesso a integração imediata na vida económica, social e académica locais, incluindo mesmo uma bolsa de estudos. Foi o que se passou comigo, com uma rapidez e eficácia que me surpreenderam pela positiva. Habituado à pesada burocracia da Administração Pública portuguesa, a agilidade com que a congénere belga atuava foi para mim uma lufada de ar fresco, demonstrativa do que eram os benefícios da liberdade em democracia...
A Economia conhecia por esses
tempos um período dourado na Europa, pelo que encontrei rapidamente colocação
como operário de armazém na Toyota em Diegem, perto do aeroporto de Zaventem,
onde dei início ao meu primeiro emprego na Bélgica, no dia 11 de abril (1973). E não
fiquei desempregado um único dia nos 10 anos que lá passei a partir daí.
Assim como eu seguira as pisadas do Luís Lacerda Cabral ao escolher a Bélgica como refúgio, assim também alguns amigos me seguiram: caso do Moisés Alves Baptista Pereira, irmão mais novo do João Baptista Pereira, grande amigo de Lém Ferreira; caso também do Leocádio Ramos da Silva, outro amigo chegado, ex-Seminário de S. José, que conheceu, ele, as agruras da fuga “a salto”, pelo norte de Portugal, pois já prestava serviço militar em Mafra, e por isso desertou, atravessando a Espanha, a caminho de Paris e Lyon, e depois Bruxelas; caso ainda do José Fragoso, logo a seguir; os três em 1973.
Fui conhecendo a pouco e pouco,
no período em que vivemos em Bruxelas (1973-1983) outros cabo-verdianos, primeiro
em Bruxelas, depois em Lovaina, Roterdão, Luxemburgo, Thionville (na Alsácia),
Paris, e mesmo em Hamburgo...
Foi em uma das idas a Lovaina que
conhecemos os tios da Guiomar, Joaquim e Luiz, já formados em
engenharia e a trabalhar, o Joaquim Mendes (Fidjit) no Hospital St Luc
(electrotecnia) em Woluwe, e o Luiz Mendes na Tyco Electronics, uma
multinacional em Kessel-Lo, perto de Lovaina.
Alguns dos cabo-verdianos que
conhecemos encontravam-se já formados e no ativo, casos do Francisco Fragoso,
médico, irmão do José Fragoso, que chegou ao Hospital St. Pierre em finais dos
anos 60; ou do Zó (Jorge Edoardo Pereira Barbosa), funcionário superior
na UCL (Universidade Católica de Lovaina), ligado ao Programa Erasmus.
Desde a década de 60 do
século passado que um grupo viera de S. Vicente (Luís e Gastão Madeira, Luiz e
Joaquim Mendes, José Pedro Chantre, José Oliveira Silva – Djessa -, Corsino, Humberto Bettencourt, Aguinaldo Rocha (Náná...), ao qual se
foram seguindo outros, quer vindos de S. Vicente quer da Praia.
De modo geral todos confluíamos a
Lovaina, quanto mais não fosse, aos fins de semana, e ali convivíamos num
ambiente que reproduzia, mutatis mutandis, as boas memórias de Cabo
Verde, referência comum, mesmo para os poucos portugueses da Metrópole que por
lá andavam (o Torrado, o Jorge...) em convivência com a comunidade
cabo-verdiana e nunca tinham ido a Cabo Verde.
A comunidade estudantil cabo-verdiana na Bélgica era relativamente numerosa nesses já longinquos anos 70 do século passado. Retenho de memória, além dos nomes já citados, os do Aires, do Pancho (Mário Spencer Lopes dos Santos), bancário na Société Générale de Banque (SGB), da Milú Querido, do Félix, do Carlos Oliveira (Tchalé), do Adão Rocha, do Joaquim Torrado, do Germano Brito (Mamano), do Manuel Roberto (Manelito), do Tony Marques, do Álvaro (Vava), do Paulo (Palinho), do Gustavo Araújo, dos irmãos Ramos (Eugénio e Luís), dos irmãos St. Aubyn (Catcha e Memei), do Valdemiro (Miro), já meu conhecido do Rádio Clube de Cabo Verde, do Alfredo (Fefa), do Sátiro, da Maria, do Charles (marido da Maria), do Lizardo, da Sofia, da São, do Pedro (marido da São), dos irmãos Mascarenhas Monteiro (Manuel e António - Tony), Colette, Marie Laure, entre outros, cujas fotos inluo a seguir... e havia certamente alguns mais, cujos nomes a esta distância temporal não me ocorrem...
Apesar de o fluxo mais intenso de
chegadas de estudantes cabo-verdianos a Lovaina remontar a meados dos anos 60
do século passado, só uma década mais tarde, precisamente em 1974, apareceria
uma tentativa de constituição de uma associação de estudantes cabo-verdianos na
Bélgica.
De uma primeira reunião, em que
terão participado, entre outros, o Leocádio Ramos, o Humberto Bettencourt, o
Adão Rocha, o Arnaldo Delgado (Negoce) e o Aguinaldo Rocha, havida em Lovaina, saiu uma Direção provisória, que
não durou mais que uma ou duas semanas, devido a discordância quanto aos
estatutos e ao programa a adotar, pois havia quem quisesse dar à Associação um
cunho político, mas a maioria dos cabo-verdianos então na Bélgica não pretendia
ir por essa via.
De uma segunda reunião, realizada
na residência do Sátiro, na rua Frederik Lintsstraat, na
qual também participei, saiu nova Direção, da qual fiz parte, cujo programa e
constituição formal ficaram em aberto, mas cujas traves-mestras consistiam em
garantir atividade lúdica, desportiva e cultural. O Presidente desta Associação
Cabo-Verdiana foi o Sátiro Pires, que de resto continuou a sê-lo em permanência, informalmente,
ao ponto de ser tratado, ao longo dos quase 50 anos entretanto decorridos, de
PRESIDENTE pelos antigos de Lovaina...
A atividade da Associação consistiu, assim, em organizar festas, almoços, jantares, exposições, sessões culturais, competições desportivas, campeonatos de bisca, homenagens...
EXPOSIÇÕES E ESPETÁCULOS
Uma vez ou outra programaram-se
exposições de pintura, em geral protagonizadas pelo Mamano, nessa época muito
ativo na produção de quadros (guardo dois, um deles é um retrato do David aos 3
ou 4 anos, e outro retrata um pescador da Boa Vista - a sua terra natal -
reparando o seu bote sobre aquela areia muito branca com um fundo daquele mar sereno...).
O grupo de teatro “Os Badios”
veio até uma vez atuar a Lovaina, com casa cheia na Associação de Estudantes
Flamengos. Essa atuação foi objeto de um artigo do Mito no semanário Voz di
Povo.
Certa vez, em pleno inverno, no
início dos anos 80, com uma temperatura ambiente próxima dos 20º Celsius
negativos, com um nevão fino como farinha, fomos ver em Bruxelas o espetáculo
de bailado do Maurice Béjart, que corria no Théatre Royal de la Monnaie, pelo
Ballet du XXème Siècle, e que interpretava nessa temporada o Fausto de Gounod.
Memorável.
Praticamente
todos os sábados praticávamos os desportos prediletos.
Pelas três da tarde, futebol de
11 no SportKot (Campus Universitário), em Lovaina. As equipas eram escolhidas
por dois “capitães de equipa”, tal como se fazia nas escolas ou na praia: cada
um deles ia escolhendo, dos melhores para os menos bons, atá completar os 11 de
cada lado; os restantes eram escolhidos como suplentes. Enquanto jogávamos, os
que não tinham pendor para jogar ficavam nos limites do retângulo a dar apoio,
enquanto as nossas compenheiras e as crianças iam ver as montras das lojas ou
os parques...
Pelas seis da tarde, era a bisca
no t'Stuck, o bar universitário, convenientemente regada por uns copos de Stella
Artois, Piedboeuf ou Jupiler (as cervejas mais leves e correntes), ou Gueuse,
Duvel, Leffe, Chimay, Trappiste, Maredsous, com teor alcoólico de 4 a 8 graus,
já com capacidade para fazer tresler os menos resistentes, alguns preferindo mesmo
a inofensiva Kriekensap (sumo de cereja), essa sim, maliciosamente treslida (ou
tresdita), fora do alcance de compreensão dos barmen, em geral flamengos...
De vez em quando organizava-se um
campeonato de bisca, que se jogava par-contra-par, de 4 ou de 9, à escolha de
quem dava; em geral preferia-se a de 9, mais exigente e imprevista. Os pares
perdedores eram eliminados ao final de 4 jogos, e os contendores apurados para
a volta seguinte eram sorteados, e assim por diante até se apurar o par
campeão. Um campeonato podia durar duas tardes.
Ainda guardo a medalha de campeão
de 1983, ano em que regressámos para Lisboa, e em que venci de parceria com o Zó.
Uma das facetas comuns a quem
deixava o berço familiar para se formar no estrangeiro e orientar um percurso
de vida, era a necessidade de trabalhar, a par de estudar. Mesmo quando se
recebia algum dinheiro da família ou se tinha uma bolsa de estudos, quase todos
os estudantes procuravam un job que lhes arredondasse o fim do mês e
garantisse o aluguer do quarto, a alimentação, o vestuário e as poucas
diversões de convívio para que lhes sobrava tempo.
Limpeza, serviço em restaurantes
e bares, trabalhos sazonais na agricultura ou mesmo na indústria em tempo de
férias, em substituição temporária de operários ou empregados de escritório, eram outras tantas
oportunidades a não desperdiçar para ultrapassar o mais rápido e melhor
possível aqueles anos de preparação para uma vida outra. Dependendo da
exigência de conhecimentos e da dureza dos trabalhos propostos, a remuneração
no início dos anos 70 orçava entre os 60 e os 80 francos à hora (10FB = 0.25€),
ou seja, 1.5 e 2 euros respetivamente, em dinheiro atual. Uma ninharia, mas que
há 50 anos representava no final do mês, mesmo na Bélgica, um bom respaldo às
necessidades financeiras, por um part-time, a rondar os 800 a 1000
francos belgas no final do mês....
Velhos tempos, de um Armando diferente, jovem revolucionário (barbudo)! E pelos vistos futebolista, que, seria boa aquisição para o futuro Benfica do treinador alemão Schmith.
ResponderEliminarO tempora, o mora!...
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