12 - Tanha - Conto
Nota prévia: No final do século passado escrevi alguns contos retratando a minha visão de algumas ilhas de Cabo Verde, que ia conhecendo em maior profundidade, ao ritmo em que as ia percorrendo e travava conhecimento com as respetivas populações e estruturas turísticas então existentes. Conversei também com diversas personalidades em cada uma delas, procurando inteirar-me de pormenores da respetiva história, caso de autarcas, de artistas e de alguns amigos que tinha ou fui fazendo.
Quem ler estes textos, publicados na altura no efémero jornal "Aliança", haverá de constatar que eles abordam três períodos: (i)o passado, de algum modo procurando retratar geografias e vivências de relatos recolhidos localmente; (ii)o que na altura era o presente, com referência a personagens reais, mesmo se os nomes não coincidem; (iii)e o que se perfilava então como futuro desejável, num prisma de quem como eu desenvolvia um projeto de operação turística, dando de permeio largas a alguma imaginação...
A ILHA DAS DUNAS
“Nesta ilha, à semelhança de outras longínquas, como as da Polinésia ou as que ficaram a setentrião da Taprobana, não se limitou o Criador a elevar uma porção do elemento sólido sobrepondo-o ao líquido, ou a suscitar uma erupção do fogo das entranhas da terra; elevou uma extensa superfície, da qual bordejou a parte emersa das marés com uma fímbria de extensas praias de areia fina e resplandecente, qual grinalda colocada sobre os cabelos de uma virgem dada em casamento, que prolongou em longo manto cintilante sob as águas tépidas e cristalinas de esmeralda, nas quais pudessem banhar-se as sereias, deslizar as tartarugas centenares, ziguezaguear peixes de todas as cores e tamanhos, marchar as colunas de crustáceas lagostas e crescer todas as plantas marinhas da sua criação, à vista de corais ondulantes e multicolores.
No interior deste círculo, expostas aos rigores dos elementos, colocou algumas colinas delimitando duas extensas planícies, que descem em caprichosos requebros para o mar, uma para oeste, outra para sul, até se resolverem em extensas bancadas semeadas de abundantes pedras de vários tamanhos, que, na sua bondade, pudessem vir a servir à construção dos abrigos característicos dos futuros homo turisticus, que sabia gregários, agrupando-se em levas sucessivas segundo a alternância das luas, em sólidas cabanas lineares e frescas, quais guerreiros descansando de duras refregas, ao pé da água, esmeralda e fresca”.
Ao ler esta curta passagem do “Livro de Maravilha que Nhor Dês fazê”, legado de famíla escrito em curioso estilo mitológico por um antepassado recuado que se assumira como profeta, Nha Tanha, por detrás das rugas dos seus oitenta e sete anos, a que o longo canhoto de barro, uma peça da Escola de Olaria do Rabil, conferia uma pose de esfinge secular perscrutando o mar além, só traída pelos anéis de fumo claro e fragrante e pelo brilho cintilante dos olhos semi-ocultados por detrás das pálpebras encarquilhadas, sentia-se trespassada por um frémito da emoção de quem vivera um século de um privilégio só dado a semi-deuses, a quem fora permitido recuperar o paraíso perdido.
Quão longe ia a freima dos seus pais, penando para abrir o poço da horta com a mesma determinação de quem procura um oásis no deserto.
Quão longe aquela afronta, iníqua e mesquinha, de vizinhos desconhecidos que, roídos de inveja, deceparam a milagrosa tamareira que à beira dele crescera e cujos grados frutos se tornaram na cobiça de toda a ilha.
Quão longe a carestia de verdura, reduzida a algumas tamareiras esparsas, algumas raras acácias, alguns pés de tarafe crescidos no leito das ribeiras secas, simples caminhos de enxurradas que logo se esvaíam no mar.
Quão longe as longas horas no dorso do minúsculo burrico para carregar longínquos ramos verdes das acácias de ninguém, lá para os lados do Curral Velho, para parco alimento das cabras às quais pouco mais restava, antes das “aságua”, que pedras, para levar umas gotas de leite às tetas minguadas!
De Passo Conde à praia de Canto, as margens da Ribeira de Scriber eram então teatro de afanosas sementeiras, e os meninos nadavam na Ribeira de Calhau, entre a luxuriante verdura das margens e o grasnar das rãs, enquanto os progenitores labutavam de sol a sol. Cultivava-se a ervilha, diversas castas de feijão, o milho, melancia, melão, “tudo enquanto”...
Aqui e ali, compondo o vale, coqueiros, tamareiras, amendoeiras, calabaceiras, ucanheiras, papaieiras, mangueiras, tamarindos, doavam às povoações do “norte” o fresco mimo dos seus frutos.
À tardinha, postados em estratégicos pontos do regadio, os aldeões descansavam um pouco do trabalho e vigiavam o “tapum”, fechando todas as cancelas, para que os burros bravos, cujas orelhas fendiam no cimo das colinas o céu avermelhado, à espera do lusco fusco para tentar uma incursão nos tenros petiscos do vale, não lograssem os seus intentos.
Em João Galego pontificava Ti Chalau, homem íntegro e respeitado por todos, discípulo do inolvidável padre Porfírio, homem de muitos filhos, mas que se esmerava mais ainda em educá-los que em criá-los, de tal sorte que hoje ainda se distinguem as gerações da sua descendência até aos netos e aos bisnetos.
Do outro lado do tapum viviam as cabras, e trabalhava um outro povo, o dos pastores. A carne, as peles e o queijo eram as riquezas que desenvolviam e entesouravam.
Em casa do Sr. Luís Neves, judeu pequenino que viera de Santo Antão e desenvolvera a recuperação de muitos terrenos baldios para a agricultura, tendo assim amealhado uma fortuna entre as mais importantes do norte, sobrepunham-se, encostadas ao muro do armazém, tábuas e tábuas de cones de queijo de cabra, armazenados e envelhecidos de ano para ano. Era vê-lo subir a uma cadeira, depois a uma mesa, e ainda a outra cadeira sobreposta à mesa para escolher um dos queijos mais velhos quando recebia uma visita de circunstância. Colocava-o sobre um meio tronco estrategicamente montado no quintal e, com alguns golpes de catana, reduzia-o a fatias regulares, duras e secas, pondo a nu aquele crivo característico de pequeninos buracos, que ajudavam a trincá-las, e que se chupavam como castanhas piladas.
Ti Chalau geria com mão de ferro os destinos da comunidade, sabendo com a outra distribuir a justiça e a misericórdia.
O respeito pelo próximo, em especial os velhos, a separação do território agrícola do território de pastoreio, separados pelo sagrado “tapum”, cujo estado de conservação era a medida da paz social, eram duas das máximas que guiavam o fluir da vida do povo do norte.
O prevaricador que atravessasse o tapum em local indevido ou deixasse aberta uma cancela, permitindo a passagem das cabras, dos burros bravos ou de outro gado, era constrangido a construir com caniço uns tantos metros da preciosa cerca, conforme a gravidade da falta.
O mesmo acontecia a quem faltava ao respeito ao próximo, não cedia o lugar a um velho, e assim por diante.
Quando o tapum se encontrava em estado irrepreensível, e havendo algum acto a castigar, então o condenado teria que cumprir uma noite de cadeia, uma pequena construção isolada e sem porta a que era convidado a dirigir-se, pelos próprios meios, sem necessidade de guarda ou escolta, provendo com um farnel à sua própria alimentação. Pela manhã, punição cumprida, recuperava o seu burro à porta do amigo ou familiar de quem o deixara para que o alimentassem, e dirigia-se à loja do Ti Chalau para declarar cumprida a pena, riscando-a então o ancião do seu livro de multas.
Assim fluía a roda do ano, numa sequência em que as recordações se foram avolumando, até que Tanha se tornou uma moçoila namoradeira e depois casadoira, e foi viver para Salrei, para a casa duma tia abastada, Nha Plonca. A capital da ilha medrava à sombra do porto, alimentada pelas mercadorias de fábrica, cobiça de todo o povo. Traziam-nas os veleiros e os vapores da Praia, do Sal e de S. Vicente, que largavam de regresso com o que a ilha criava: cabras, queijos, melancias, potes, telha e vasos do Rabil...
Salrei - Vista aérea com requalificação da Praça Santa Isabel
Numa zona bem típica da capital, confinada pela rua do Rego, o Largo da Cruz e a Avenida dos Pescadores, a casa de Nha Plonca era uma daquelas mansões que irradiavam por Salrei uma autoridade discreta, tecida nas lides que na ilha eram incumbência das mulheres.
Para além das tarefas caseiras, pertencia-lhes assumir os trabalhos mais duros, não só aqueles a que a tradição as prendia, como lavar a roupa ou carregar as latas de água, mas também transportar à cabeça todo o tipo de mercadorias, mesmo no cais.
Nos tempos em que o Sr. David Benoliel pontificava sobre toda a actividade portuária da ilha, desde Derrubado ao Canto e do Curral Velho a Chaves, muitos e muitos milhares de alqueires de cal pesaram nas cabeças das mulheres da Boavista, nas barrigas que Nhô Naia, em cima do seu cavalo, ia contando até perfazerem a tonelagem dos veleiros, palhabotes e vapores, enquanto elas, arregaçando as saias até às coxas, se encostavam aos botes que retomavam, vezes sem conta, a inevitável naveta de portos sem molhe.
E, como os sacos frequentemente se descosiam nestas infindáveis idas e vindas, Nha Compa, sogra de Nhô Naia, armada de agulha e linha, demandava regularmente, a pé, já que não gostava de montar, cada um destes portos, num peregrinar que, a acreditar na voz corrente, foi um autêntico seguro de vida, pois acredita-se que foi graças a estas marchas que resistiu quase um século às agruras dos múltiplos caminhos e atalhos da ilha. Não havia saco em toda a Boavista que não tivesse sido por ela reparado.
Foi assim que Tanha, na frescura dos seus 22 anos, entrou no circuito destas mulheres-abono de família...
Manhã cedo, mal rompia a aurora, já tinha mugido as duas cabras no quintal, varrido a soleira da porta, buscado a lata de água lá no alto da vila, tinha-se lavado daquela forma parca que a poupança exige, uma caneca ou duas gotejadas pelo rosto, braços, pernas e sovacos.
Tomava o seu café, que embranquecia com o leite que mugira, e que acompanhava com a incontornável linguiça e o ovo estrelado posto na véspera por uma das galinhas que esgravatavam o quintal. Deixava por sua vez preparado o café de Nha Plonca, em tudo semelhante ao seu, e que cobria com um pano branco, protegendo-o das moscas.
Era então que estava pronta para descer pelo beco de Santa Bárbara até ao mar, espraiava os olhos pelo ilhéu, de onde o sol se levantava por detrás do farol, e estugava o passo, esguia e determinada, para o cais, onde se empilhavam, lado a lado, peles, cal, purgueira, chacina, peixe seco, telha, potes e outras mercadorias, à espera de serem embarcadas em botes à vela para um dos navios que se revezavam ao largo, lá para as bandas de Chaves: o Boavista, o Salrei, o Milai, veleiros que se aproximavam mais do pequeno porto; o Arlete, um palhabote que exibia a majestade dos seus dois mastros; ou os vapores 28 de Maio, Miraterra, Santo Antão, com maior capacidade de carga, mas que obrigavam a navetas mais demoradas por serem mais longe os seus ancoradouros.
Jovem e esbelta, destacando-se do lote de mulheres que trabalhavam no cais, Tanha era mirada e remirada, no manejar expedito dos lotes que levantava do chão e depunha no bote, descendo e subindo a escadinha que lhe dava acesso, pelos rapazes que, ociosos e lascivos, se iam revezando nos banquinhos da esplanada ali ao pé, atentos a qualquer suplemento de nesga que, ao vergar-se, a saia da rapariga revelava das pernas roliças.
A dureza da actividade no cais não se reflectia nos rostos destas mulheres, sempre prontas a sorrir e a gracejar, sempre que algum dos moços, do bote ou da esplanada, traduzia o brio que a presença feminina lhes insinuava, em algum piropo mais atrevido, não lhes ficando elas atrás em ousadia.
À tardinha, como se o cais não lhe pesasse, Tanha voltava a casa, alimentava as cabras e os gatos, antes de lanchar ela própria, já na companhia de Nha Plonca, com quem trocava dois dedos de conversa sobre as novidades que ouvira, à hora do almoço, partilhado com as outras mulheres no murete junto à esplanada, à sombra de uma das poucas acácias que ali cresciam.
Ao pôr do sol, lata de restos de comida na mão, subia ao alto da vila e descia depois ao chiqueiro, onde, entre o farol e a praia de Cabral, o porco de Nha Plonca, no quadrado de quatro paredes de lata que, encabeçadas por folhas de tamareira, demarcavam o seu território, na planta daquele subúrbio animal, esperava pacientemente a sua ração diária, para que a matança, em Novembro, o achasse bem medrado, assaz gordo para garantir uma boa reserva de torresmos para o inverno.
Quando voltava a casa, não sem se ter atardado à porta da sua amiga Belinha, com quem não dispensava um bom quarto de hora de conversa ao lusco-fusco, que se entre-ouvia brejeira, no seu tom sumido entrecortado de risinhos malandros de jovens namoradeiras, Tanha, ainda antes de garantir o seu último trabalho diário, o jantar, empunhava a pá, encostada a um dos muros do quintal, e retirava a areia que o vento empilhara durante o dia nas traseiras, comprometendo a abertura da janela.
Terminado o jantar, chegava o Djodje. Nha Plonca lavava a loiça, dando um tempo ao namoro, que vigiava com o rabo do olho, os dois sentados na soleira da porta. Às dez, um aviso discreto da dona dava por terminado o enleio, e o rapaz descia em passo lento ao bar Rosalita tomar dois quinze de grogo, convivendo com os companheiros de pesca, que acompanhava de seguida ao cais, de onde partiam para a faina nocturna, ali mesmo, entre a vila e o ilhéu, ou, quando o mar estava mais manso, na costa norte, entre a Ponta do Sol e Ponta Antónia, de onde voltariam ao amanhecer, o lastro do bote guarnecido de garoupa, bidion, bica de rocha, e, em noites de mais sorte, algum esmoregal, djeu ou serra.
Pela festa do S. João, Tanha voltava ao norte da sua juventude, onde tinha uma semana para matar saudades, da família, das hortas, da praia de Canto, de Morro Negro, Porto Ferreira, Odjo de Mar, das amigas... de tanta coisa que mantinha guardada no fundo da alma, dos seus anos de juventude!
Na noite de 23 de Junho, depois de saltar as fogueiras que se elevavam na noite, todos os rapazes da aldeia faziam questão de com ela dançar colá Son Djon, cujos contornos eróticos não feriam susceptibilidades, neste meio tolerante mas disciplinado; no fim de contas, o gesto copulativo desta dança não era mais que um ritual folclórico e liberatório, espevitado mas casto.
Mais inocentes eram as danças nas outras festas da ilha, que Tanha frequentava quando podia, mas com menor regularidade: no Rabil, Santa Cruz e Pedrona em Maio, e S. Roque em Agosto; na Povoação Velha, Santo António em Junho e Senhora da Conceição em Dezembro.
Em Salrei a festa do ano era Santa Isabel, em 4 de Julho. Organizavam-se bailes de candeeiro, ao som do violão, da rabeca e do cavaquinho, jorrava o grogo, que tolhia, altas horas da madrugada, os dedos e a voz dos músicos, fenecendo assim a festa e recolhendo toda a gente a casa, com passo incerto. No baile de calçado, mais formal e organizado em geral na Pousada, as coisas acabavam por não ser muito diferentes, apesar de o calçado e a roupa de festa seleccionarem os convidados.
Quando não chegavam barcos, não faltava por isso o trabalho a Tanha. A estrada do norte, que havia de ligar Rabil a Cabeço de Tarafes passando por João Galego e Fundo de Figueiras, ocupava mão de obra farta, e pela cabeça de Tanha passaram milhares dos paralelos de pesado basalto, numa onda que ocupou por aquela altura a quase generalidade da população do país, saída do trauma da grande fome de 47 com a preocupação aguda de sobreviver, tendo-se tornado nos anos sessenta e setenta numa instituição em todo o arquipélago um tipo de trabalho que o engenho popular tão bem batizou de “pagá cabeça”, e que, consistindo em tarefas como esta de construir estradas, mas também em outro tipo de ocupações de utilidade mais incerta, como juntar pedras dispersas em muretes ou escavar socalcos para a retenção das águas das chuvas, ainda mais incertas...
O importante era que aqueles poucos escudos de cada dia pagassem o milho para a cachupa e mantivessem o povo vivo.
A alternativa veio com a emigração.
Quando o Djodje partiu para a Holanda, já Tanha ostentava uma barriguinha interessante, que havia de parir o primeiro dos seis rebentos, quatro meninas e dois rapazes que, até ao dealbar da independência, o casal conceberia, com a regularidade impressionante das leis da natureza, um por ano, sempre na Primavera, frutos das sementes lançadas nas sempre esperadas férias de verão do Djodje, que assim ia embalando, no seu regresso em Julho, o pimpolho da primavera, partindo de novo, no fim de Agosto, por mais 10 meses, para apanhar o barco em Roterdão.
A cada regresso à Europa, curtindo a saudade da mulher e da prole crescente, lá enviava uma gorda transferência para o BNU, que haveria de chegar, semanas mais tarde, às mãos de Tanha, permitindo-lhe assim deixar de “pagá cabeça” com as cargas que sobre ela arrojava; passou a viver na sua própria casa, junto ao largo da escola, ocupando-se dos filhos, que sobressaíam pelo asseio e pelo porte com os habitantes da vila. Arranjou até tempo para prosseguir os estudos que não pudera concluir na juventude, com a ajuda de D. Mizé, regressada a Salrei para gozar a reforma da sua carreira de professora no Mindelo, e depois na Praia.
Desde então, como tudo andou depressa! O passeio marítimo do Estoril, sob as copas frondosas das acácias rubras, com a iluminação feérica tornando incandescentes as umbelas de flores e realçando o verde mimoso das folhas esparsas; os numerosos hotéis de luxo, invariavelmente envolvidos da vegetação que as técnicas de rega importadas das Canárias tinham tornado possíveis: tapetes viçosos de relva ornados de belas árvores, arbustos e canteiros de flores, desde coqueiros a palmeiras, acácias de flor amarela ou vermelha, tamarindos, calabaceiras, buganvílias, primaveras, jacarandas... O que um simples gotejar da água de minúsculos tubos, dessalinizada, conseguiu!...
Embora a noite tivesse caído há muito, pelos olhos de Tanha repassava cada pormenor desta marginal encantada: até Chaves, as imponentes dunas, bordadas de tamareiras acompanhando o amplo serpentear da estrada, e logo o mar, reflectindo as inúmeras luzes dos candeeiros, de um modelo bem congeminado para não colidir com o equilíbrio natural da paisagem; o aeroporto internacional Honório Brito, à esquerda, com as suas duas pistas cruzadas e a bela aerogare toda de pedra e vidro, como uma catedral dedicada ao espaço; de novo, após a alta chaminé da antiga cerâmica, uma enfiada de hotéis resplandecentes, neste lugar idílico votado ao turismo; mais dunas, tamareiras e luzes até à Ponta Morro de Areia, onde a estrada abandona por momentos a costa para melhor encarar a esplendorosa praia da Varandinha, com a sua bela gruta natural voltada ao mar; à esquerda, e separando-nos da Povoação Velha e da Rocha Estancha, um mini-ecosistema de dunas, plantas xerófilas, aves e outros pequenos animais, religiosamente conservado, à semelhança de tantos outros, pela autoridade que na ilha tutela a preservação da natureza.
Passada a baía de S. Roque, na Ponta de Chebote, está instalado o Museu Oceanográfico, regularmente visitado por cientistas nacionais e estrangeiros, em especial pelo sucesso obtido na reprodução da vida das tartarugas, exibindo espécimens desde o ovo a idades para cima dos 200 anos.
Os vinte quilómetros seguintes são uma sábia combinação de hotéis, lagos artificiais e terreno ajardinado, que fizeram de Santa Mónica um dos recantos mais procurados para o gozo de férias. Em Espanha, Portugal, Itália, Bélgica, Alemanha, Dinamarca e muitos outros países não só da Europa como da América e mesmo da África e da Ásia, dezenas de milhares de pessoas programam as suas férias para esta zona, numa confirmação do nome com que há décadas foi baptizada. Mas nem por isso a praia aparenta excesso de frequentadores, graças aos muitos quilómetros por que se estende.
Depois da sua infância no norte agrícola e da sua juventude na capital, há bastantes anos que Tanha elegera definitivamente Curral Velho como sua terra, mesmo antes da construção da via rápida que no fim da primeira década do milénio passou a ligar a capital do sul a Salrei.
Tanto mais que o Djodge regressara há muito daquela vida de embarcadiço, para se dedicar à nova indústria que florescia na terra: o turismo. Com as poupanças que lhe restaram da casa e de dar escola aos filhos, mandou vir da América um barco, de 31 pés, motor de 360 polegadas, radar, piloto automático, enfim, um verdadeiro barco de pesca desportiva, fundeou-o no limite das praias em Ervatão e passou a dedicar à pesca os seus dias, retirando bons proveitos da paixão desportiva dos turistas-pescadores que já não logram, como antigamente, lançar a cana e retirar um peixe, de tão abundante que era nestas águas então pouco exploradas.
O enquadramento no turismo estendera-se também a mais três dos filhos de Tanha e Djodge: Gaby, o mais velho, que cursara educação física em Cuba, acabou por se especializar em mergulho e montar uma escola no Cabo de Santa Maria, no norte, aproveitando a carcaça do barco que ali encalhara há décadas; dedica-se de preferência à exploração de barcos naufragados, muito numerosos à volta da Boavista. Tujinha e Mizé, que haviam cursado relações internacionais em Portugal, acabaram por dedicar-se à profissão de guias turísticas, e percorrem agora, a bordo das incontornáveis Hi-Ace e Hi-Lux que cruzam vezes sem conta a ilha, os diversos circuitos que a dão a conhecer: no norte, do Cabo De Santa Maria, com visita à universidade Porfírio Pereira, a Baforeira, Espingueira, à vista do ilhéu de Derrubado, passagem para o outro lado da Ponta Antónia, e visita às três povoações tradicionais do norte, sendo os pontos fortes deste circuito o Museu da Agricultura, em João Galego, com destaque para a tâmara e para a indústria tradicional do queijo, bem conservada nesta região, culminando com uma visita guiada à reserva natural do Ilhéu dos Pássaros, a bordo de overcrafts fundeados na baía Gata. O circuito de leste retoma as três aldeias tradicionais, e privilegia o complexo de piscinas de Odjo de Mar, construído à volta desta piscina natural, agora regularizada através de um afluxo artificial, e cercada de restaurantes que se esmeram nas especialidades culinárias nacionais, especialmente a “botchada”, um prato típico da ilha, cuja base é o sangue do cabrito cozinhado no seu próprio estômago. Este circuito de leste aproveita a respectiva marginal, que percorre a costa de Ervatão a Ponta Antónia e que alberga a mancha florestal mais densa da ilha, com incidência nas encostas dos morros sobranceiros ao mar, desde o Pico da Estancha ao Pico do Calhau. Os ilhéus, o alcantilado da costa, a Praia das Baleias, onde podem ser observados esqueletos de cetácios trazidos à costa pelas marés, o farol do Morro Negro, o Porto Ferreira, são outros tantos atractivos desta área preservada, onde não se pode construir até às aldeias históricas, ao ponto de terem sido largadas aqui diversas espécies cinegéticas, em especial algumas aves e roedores. O circuito sul atravessa a grande planície central que, graças ao sistema de rega gota-a-gota, se tornou num verdejante espaço agrícola, do Rabil ao Curral Velho, abastecendo de frescos toda a Boavista, e sobejando ainda para as necessidades dos hotéis da vizinha ilha do Sal, e percorre depois a zona de praias servida pela marginal sul/oeste.
Apesar de o aeroporto internacional, no Rabil, apresentar boas potencialidades de crescimento, as câmaras de Curral Velho e João Galego reivindicam a construção de um segundo aeroporto, a primeira invocando a grande densidade de hotéis no sul, e a segunda o interesse industrial e agrícola, mas também turístico da região nordeste.
Sentada na cadeira de baloiço da varanda, mirando sem nunca se saciar o mar turqueza, por entre os anéis de fumo do seu cachimbo, Tanha é realmente uma mulher muito feliz, ao considerar o caminho que trilhou na sua vida já longa, e, ilusão que lha aumenta, aqueles por onde a imaginação a consegue levar. E jura, na frescura dos seus 87 anos, que Deus lhe dará saúde para lá chegar!... (1)
(1) Sendo o objectivo destes escritos transportar o leitor(a) a uma atmosfera de vivência cabo-verdiana, tal não significa que o desenvolvimento destas “estórias” se cole à realidade com todo o rigor; se isso acontece no essencial da trajectória passada, no presente artigo extrapola-se, à laia de exortação, para um futuro próximo a ocorrência de um surto de progresso que, não sendo inverosímil, carece ainda, em grande parte, de realização.
PS: Não posso terminar este conto sem uma referência a um Homem excecional, natural de João Galego, de seu nome Joaquim Mendes Neves (mais conhecido por Fidjite), que me municiou com informação preciosa sobre o que era a Boa Vista na sua meninice, em meados do século XX, que é meu tio por afinidade, e a quem deixo aqui um enorme abraço...
Por não continuou a escrever contos, diria até contos mais extensos, romances. Será que perdemos um romancista e ganhamos, já agora, o quê?
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