13 - A Ilha da Claridade - Conto

   Nota prévia: No final do século passado escrevi alguns contos retratando a minha visão de algumas ilhas de Cabo Verde, que ia conhecendo em maior profundidade, ao ritmo em que as ia percorrendo e travava conhecimento com as respetivas populações e estruturas turísticas então existentes. Conversei também com diversas personalidades em cada uma delas, procurando inteirar-me de pormenores da respetiva história, caso de autarcas, de artistas e de alguns amigos que tinha ou fui fazendo.

Quem ler estes textos, publicados na altura no efémero jornal "Aliança", haverá de constatar que eles abordam três períodos: (i)o passado, de algum modo procurando retratar geografias e vivências de relatos recolhidos localmente; (ii)o que na altura era o presente, com referência a personagens reais, mesmo se os nomes não coincidem; (iii)e o que se perfilava então como futuro desejável, num prisma de quem como eu desenvolvia um projeto de operação turística, dando de permeio largas a alguma imaginação... 

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 No Hotel Espadarte, ainda o sol emprestava os seus primeiros raios à areia ouro-antracite da praia da Luz, e já D. Emília areava a celha com que na véspera ministrara os banhos de limo aos clientes que tinham procurado esta sauna, tradicional do Tarrafal de S. Nicolau.

Dragoeiro em S. Nicolau

     Aprendera D. Emília de sua saudosa mãe, Nha Djinha, esta arte, que esteve prestes a perder-se, não fosse ela tê-la herdado, juntamente com Nha Marília, também ela instruída por Nha Djinha, e também por Nha Ana Bia, todas nascidas e criadas no Tarrafal, ainda quando a vila praticamente não existia.

     Mas existia esta areia tão particular, que nem é preta nem branca, e reluz ao sol come se nela se tivessem misturado milhões e milhões de finos grãos de ouro. Que não era ouro, ela sabia desde cachopa, que o ouvira da boca do senhor mais importante que conheceu na sua vida já longa, o Dr. Mateus,  na Ribeira Brava, há quantos anos! Tratava-se sim de umas substâncias de nomes lindos, e retinha a ressonância de um deles com “tutano”, e que, não sendo ouro, eram certamente preciosas, tal era o efeito milagroso sobre as maleitas de que padeciam os seus clientes: reumatismo, artrites, artroses e outros sofrimentos de ossos e tendões que, ao fim de alguns dias, deixavam os doentes de tal modo aliviados que lhes restituíam os movimentos até então tolhidos e lhes iluminavam os rostos de há muito tensos de sofrimento.

     Era esta mudança milagrosa no ânimo das pessoas que recorriam às suas mezinhas que lhe tinha dado ânimo a lutar pelo ressurgimento destes banhos, agora monitorizados por gente formada. Já não na sua casa, mas num hotel que se tornara no orgulho da vila, atraindo turistas e pescadores desportivos, mas também, numa percentagem significativa, gente de diversos países que acorriam a S. Nicolau alertados pela fama destes tratamentos.

     Agora tudo é mais cómodo e limpo, embora se mantenha o ritual da tradição dos ancestrais banhos de limo e areia: do mesmo modo senta-se o paciente num mocho dentro da celha, pés assentes num estrado de madeira, do lado de fora. A principal diferença está agora na cobertura, em que uma espécie de redoma de plástico transparente, com uns furos a meio, para que o paciente não atafegue, substitui os tradicionais cobertores, que se iam mudando, à medida que se ensopavam de vapor.

    De resto, as mesmas algas, que no Tarrafal chamam limos, fervidas, mergulhadas na água da ferva, enchendo a celha até meio, e exalando aqueles vapores abundantes de marezia que fazem o cliente transpirar até aos limites.

     Mas D. Emília não se limitou a trazer para o Hotel Espadarte a terapia dos banhos de limo. Na praia, a poucos metros, um grupo de moças devidamente industriadas ministram a uma dezena de clientes banhos de areia, estes muito singelos, consistindo em cobrir com ela, rica em titânio e iodo, as partes do corpo dos clientes (que envergam uma espécie de fato-macaco branco) sujeitas a incómodos ósseos ou de tendões, a qual doseiam, renovando-a frequentemente,  por forma a transmitir um máximo de calor, que penetra através da roupa, de modo a que não sejam ultrapassados os limites do suportável.

     Outro grupo de moças, alguns metros além, proporcionam a um pequeno grupo banhos de pocinha, que, como o nome sugere, consistem em mergulhar nas poças de água que a descida da maré deixa no areal, sobreaquecendo a água ali retida.

     No porto, algumas dezenas de barcos de pesca desportiva, a maioria dos quais pertencentes ao Sr. Tonecas, que de há muito tempo fomenta esta actividade desportiva na ilha, aparelham para demandar o mar largo, onde, 4 por cada embarcação, os pescadores vão desafiar os blue marlin, trazendo-os ao engodo do anzol, para uma luta que os apaixona ao ponto de guardarem muitas vezes o apetite para o sossego da noite no hotel, mirando vaidosos as fotografias do belo exemplar capturado, suspenso no pórtico dos troféus, implantado na areia qual monumento. Não fora o mar do Tarrafal um dos mais ricos do mundo neste garboso peixe, proporcionando a cada pescador que ali se dirige despiques certos e apaixonantes.

Mapa de S. Nicolau

     Na orla da baía, a bela avenida marginal, que culmina no cais de embarque, frisa um conjunto de restaurantes e comércios variados, apenas interrompidos pelo Polivalente e pela vetusta fábrica de atum, fervilhando de actividade durante o dia. À tardinha, a marginal acolhe, até altas horas da noite, habitantes, turistas e pescadores, passeando ou sentando-se nos inúmeros bancos sob o arvoredo ou nas esplanadas de que rescende o cheiro a pinchos de peixe fresco, num convívio agradável que restitui ao Tarrafal a placidez de infindas conversas de outros tempos.

     Foi num destes bancos que D. Emília veio sentar-se, com o Sr. Ramires, um portugês de Castro Verde que um reumático teimoso para aqui impelira, após diversos tratamentos mal sucedidos, sem que a perrice malvada dos joelhos o abandonasse, seduzido por relatos miraculosos de amigos que já cá tinham vindo. Sentia-se agora bem melhor, realmente, e isso levava-o a prolongar cá fora a noite e o convívio com D. Emília, que o encantava com tantas histórias que sabia da ilha.

    Do Ti António Julinho, de quem dizia que conhecia os ossos todos do corpo, dos maiores aos mais pequenos, sendo capaz, na sua humilde casa do Canto da Fajã ou deslocando-se a qualquer ponto da ilha, de trazer alívio e conserto aos que deslocaram um osso, ou mesmo àqueles a quem sobreveio uma dor muscular sem explicação aparente, tendo ido mesmo por vezes a S. Vicente, aonde a sua fama se estendera.

    De Nhô André crioulo e Nhô Pióne, espécie de heróis populares que sempre venciam com valentia de mosqueteiros os inimigos que se lhes deparavam, protegendo os fracos contra gatunos, criminosos e personagens enigmáticos da noite.

    Dos cadetes portugueses que no início dos anos 30 desembarcaram por engano a S. Nicolau e, depois de acamparem logo ali, no Tarrafal, acabaram por ocupar o antigo liceu na Ribeira Brava, deixando em S. Nicolau um número importante de filhos, hoje espalhados por diversas ilhas, sobretudo S. Vicente.

    Dos baptizados  e das festas de guardá-cabeça, em que se espantavam as bruxas com barulho, durante toda a noite do sexto para o sétimo dia, tocava-se gaita e rabeca, e bebia-se grogue até as pálpebras cederem, despertando de novo com uma canja antes do cantar do galo, pois não podia dexar-se cair o silêncio até que raiasse a aurora.

    Das grandes festas da Pascoela na Fajã, em que se organizavam corridas de cavalos e se exercitava a perícia dos cavaleiros, que deviam enfiar paus em argolas, em velocidade, e jogos de cepá gól cabeça, de que saía vencedor quem conseguisse, de olhos vendados, cortar mais cabeças dos galos previamente enterrados até ao pescoço.

    Do boneco Zé Pacófia, também conhecido por Chico Pascoela, uma espécie de Zé Pereira que deambulava na festa da Fajã.

    Das danças do seu tempo de moça, que iam desde a valsa à trançinha, ao raspa, ao strimbol, à mazurka, à contradança (com mandamentos em francês). Lembrava-se de que na povoação de Covoada se dançavam os “xotis”, uma modalidade sem paralelo, e que há muitos anos não tem oportunidade de presenciar.

     Ao contar todas estas estórias, D. Emília emocionava-se, sobretudo quando se lembrava das amizades antigas que cultivara à custa de muito andar e trabalhar, no tempo em que ajudava às culturas na Fajã ou na Ribeira das Pratas, não havendo nessa altura as estradas que agora há.

    Com ela se emocionou também o Sr. Ramires, e daí recolheram para dormir, que no dia seguinte o Sr. Ramires destinara deslocar-se à Ribeira Brava, para falar com o Sr. António Alves, homem culto e dedicado à ilha, agora reformado, e da boca de quem queria inteirar-se em pormenor de um aspecto que sabia ter marcado a ilha de S. Nicolau: o nascimento do ensino secundário em Cabo Verde, em meados do século XIX.

     Manhã cedo, antes que o sol abafasse a atmosfera quente do Tarrafal, partiu o Sr. Ramires a caminho da Vila numa das Hi-Ace que todas as manhãs zarpam de junto ao cais.

     Seguindo a estrada antiga, para ir recolhendo os passageiros de Ribeira Funda e da Fajã de Baixo, o autocarro depressa atingiu o miradouro do Cachaço, de onde se conseguem avistar a Água das Patas, o Campinho e a Cruzeta, no ponto em que se pode subir ao Monte Gordo, e onde a frescura da montanha com a visão do vale agrícola ao fundo constitui um bálsamo, para o corpo e para o espírito.

    No percurso da estrada dominado pelo pico da Ponta Espechim, que ladeia o mar sem contudo o ver, o Sr. Ramires surpreendeu-se com a quantidade de dragoeiros que, naquele empertigamento ufano de cálice ancestaral, se espraiam pela encosta em número que nunca pensara ser possível, sabendo, pelo que lera desta espécie em vias de extinção, que apenas alguns exemplares restavam, dispersos por algumas das ilhas conhecidas por Macaronésia, nas quais se integram as de Cabo Verde, para além das Canárias, Madeira e Açores. Ficou a saber que em S. Nicolau existem ainda mais de cem exemplares desta recordação historico-botânica.

    Após duas horas de viagem, constantemente entrecortada pelas entradas e saídas de passageiros, a carreira chegou enfim à Ribeira Brava, e o Sr. Ramires não esperou nada para dirigir-se à mercearia do Sr. António Alves, que o esperava, convidando-o logo a subir à sala, onde alinhara em cima da mesinha vários livros e revistas, todos com diversas marcas, assinalando textos que ilustravam de várias formas a história da ilha, de tal modo que o Sr. Ramires, que telefonara de véspera a dar conta da sua curiosidade sobre alguns aspectos da história e da cultura de S. Nicolau, quase não precisou de o interrogar para se inteirar de uma soma abundante de conhecimentos relativos a personagens, instituições, datas, tradições da ilha.

     Que S. Nicolau foi uma das primeiras a ser descoberta, logo em 1461, embora só no séc. XVII haja notícia da primeira povoação em Porto da Lapa.

    Que no mesmo séc. XVII tiveram os primeiros habitantes de fugir aos piratas, disseminando-se pelo interior, e fundando a Ribeira Brava, vindo a construir, já no séc. XVIII, e pelo mesmo motivo, a Fortaleza sobranceira ao Porto da Preguiça.

    Que as primeiras plantações de café em Cabo Verde surgiram aqui, ainda no mesmo séc. XVIII, cedendo depois o lugar à cana-do-açúcar, à urzela, à purgueira e ao algodão.

    Mas também que o séc. XX haveria de trazer a S. Nicolau, como às restantes ilhas, a desolação, a fome e a mortandade, dos anos 20 aos anos 40, provocando, a partir dos 50, um surto de emigração antes desconhecido nesta terra.

    O tom de voz do Sr. Alves animou-se porém quando, abrindo um grosso volume, numa das marcas previamente intercaladas, passou a falar da história do seminário da Ribeira Brava.

Seminário-Liceu - Ribeira Brava

    Foi buscar o declínio da Cidade Velha, em Santiago, provocada pela anexação dos Filipes e pelos sucessivos saques dos corsários na segunda metade do séc. XVI como causa remota da futura assunção por S. Nicolau de um papel de intelectualidade para o país, dois séculos mais tarde. Com efeito, tendo-se gerado um vazio, dado que deixou de haver padres em Cabo Verde, quedando-se os bispos nomeados para a Diocese de Cabo Verde aconchegados ao conforto da Metrópole, a acção cultural portuguesa deixou de se fazer sentir durante muitas e muitas décadas, até na nova capital, a Praia.

    O sobressalto deu-se em 1866, com a chegada a S. Nicolau, em Setembro, de 3 cónegos, 3 padres e 5 seminaristas, todos oriundos do Seminário de Sernache do Bonjardim.

    Instalaram na Ribeira Brava um estabelecimento de ensino, que passou a formar não só padres como também candidatos à Administração Pública, pagando os primeiros 9 reis, e os segundos 18 reis... Os alunos do Secundário perfaziam 16 cadeiras, acrescentando a estas os candidatos ao sacerdócio outras 19, durante mais 3 anos.

    Em 1892, por anexação da Escola Superior da Praia, este estabelecimento de ensino adquiriu o estatuto de Seminário-Liceu, distinguindo-se neste período alguns professores míticos, dos quais se destaca o famoso Cónego Bouças, Prefeito, mas que garantia ao mesmo tempo o ensino de disciplinas importantes, como o latim e a geografia.

    Em 1917 a República ditou o encerramento do Seminário-Liceu, que viria a reabrir ainda em 1923 sob a designação de Instituto, para fechar em definitivo em 1931, altura em que passou a servir de albergue a um grupo de deportados chegados da Metrópole.

    O Sr. Alves, que vive intensamente, como se fosse de hoje, a história do Seminário-Liceu da Ribeira Brava, deixou escapar um sentido suspiro, para concluir: Baltazar Lopes da Silva, o filho mais representativo de S. Nicolau, a par do médico e escritor João Augusto Martins, que tornou possível a implantação do ensino secundário na ilha, através de benemerências diversas, foram, juntamente com a ilha que os viu nascer,  vítimas injustas do que depois veio a suceder, com a passagem de testemunho para o Liceu Gil Eanes no Mindelo. Daí para cá, S. Nicolau é uma ilha votada pelos poderes ao esquecimento, até que um sobressalto, talvez pela banda do Turismo, quem sabe, nos venha restituir o orgulho perdido!

     A vontade do Sr. Ramires estava satisfeita quanto ao papel de S. Nicolau no despoletar da intelectualidade cabo-verdiana, de que tomara consciência através de alguns números da revista Claridade a que acedera pela mão de um amigo cabo-verdiano em Lisboa. Desde então, com efeito, aguçara-se-lhe a curiosidade de perceber o enquadramento em que aquele movimento literário e social nasceu, tendo como motor mais visível a personalidade rica de Baltazar Lopes da Silva, que viria a expressar todo o seu pensamento de coboverdianidade através de obras importantes como Chiquinho e O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, e sobretudo através da sua longa actuação pedagógica no Liceu de S. Vicente.

Baltazar Lopes da Silva

     Mas o Sr. Ramires traria da Stancha* e da casa do Sr. António Alves uma ideia completa do que foi S. Nicolau ao longo dos últimos séculos, pois o seu interlocutor, na ânsia que sempre o acompanha de preservar junto de quem o visita a memória do legado da ilha, levou-o a visitar os edifícios mais representativos da história da ilha, na vila, e convidou-o de seguida para um almoço que mandara cuidadosamente preparar para que fosse, ele também, representativo da gastronomia local, e cujo prato forte foi um modje de capóde, que é uma espécie de ensopado de borrego, guarnecido de pedacinhos de mandioca e batata doce.

     De volta à sua casa, após o doce de papaia verde com queijo de cabra e do café, o Sr. Alves não quis deixar partir de volta ao Tarrafal o Sr. Ramires sem o industriar sobre aspectos marcantes da história do folclore e da cultura sãonicolaenses.

     O relato, sempre empenhado, das tradições de namoro e casamento na ilha foi o que mais impressionou o Sr. Ramires, pela sua verdadeira peculiaridade: aquele despoletar dos amores por uma pedrinha que o rapaz, com o coração a arfar, atira na direcção da moça amada, na esperança de que a recolha ao bolso, abrindo-lhe assim a possibilidade de escrever em carta o que lhe vai na alma; e, caso o fogo do amor se ateie entre os dois, a troca do “sinal de crença”, traduzido em objecto de valor, cabendo então à moça manifestar ao rapaz o tesouro da sua virgindade, oferecendo-lhe uma flor fechada, ou, se devaneios passados lha levaram, manifestar o seu acanhamento na entrega de uma flor já aberta...

    Passada esta delicada simbologia, e a manter-se a chama da paixão, falará a moça com a mãe, comunicando-lhe o interesse do rapaz; será a vez de a mãe obter o beneplácito do pai, o qual, juntando-se ao da mãe, autoriza a moça a comunicar, com o coração aos pulos, a novidade a três pessoas de confiança do futuro namorado, as quais, munidas de uma vasilha de bom grogo, se dirigem então a casa da moça, para, em nome do apaixonado, pedirem aos pais da moça a sua mão para ele.

    É então que, num gesto de ingenuidade simulada, os pais chamam a moça, para lhe perguntar se foi ela que permitiu o pedido. Na afirmativa, bebe-se o grogo para selar o noivado, que deverá durar cerca de um ano.

     Se o noivado abrir aos dois amorosos os corações, chegará a altura de casarem.

    Uma semana antes da data aprazada para o enleio final, começa a faina da importante festa: pila-se o milho, prepara-se o xerém, para encher as tripas do capóde, confeccionam-se as estrelinhas de papel; o mordomo recepciona as “bandejas” dos convidados (borregos - capóde - com flores nos chifres, galinhas com fitas ao pescoço, bolos, etc.); a boquera prepara o told (leito matrimonial), tendo o cuidado de estender um lençol branco.

    A festa é de arromba, são colocadas as estrelinhas nos ombros dos convidados, a cerimónia religiosa e a boda libertam em todos os convivas alegria transbordante. Mas a cerimónia não acaba, restando para o amanhecer o maior suspense; se se fizer ouvir o estralejar de foguetes, anunciando a virgindade da noiva, ao mesmo tempo que a boquera sai em corrida exibindo o lençol manchado de sangue, a mãe irrompe em “genuínos” soluços de alegria, o pai ordena uma rodada de grogo a todos os convivas e a festa atinge o seu ponto de órgão, remetendo o casal ao dia-a-dia, que todos desejarão feliz, não sem que, num simbolismo de promissão, os padrinhos organizem a sua primeira refeição, dita de “armá caldera”, que constitui uma espécie de um voto à capacidade de auto-sustento dos recém-casados, debaixo do apoio protector dos padrinhos e dos pais.

     Se, pelo contrário, se fizer ouvir o silêncio ao amanhecer, aparecendo o recém-casado de calça arregaçada até ao joelho, então a boquera terá de exercer os seus dons conciliatórios para garantir a compreensão do marido e fazer esquecer as infidelidades pre-conjugais. Escusado será dizer que quase sempre consegue ser convincente, a menos que... a moça se tivesse “enganado” na flor que ofereceu há um ano atrás!

     Foram ainda trazidas à conversa peripécias várias ligadas às festas de guardá minin cabeça, costume a que o Sr. Ramires já ouvira D. Emília referir-se, bem como uma forte tradição de teatro popular que sempre animou as festas em S. Nicolau, em especial por altura do Entrudo.

     Fazia-se tarde, e o Sr. Ramires lá apanhou de novo o autocarro de carreira, remoendo um vago sentimento de desconforto, à medida que enrolava de volta o caminho, sinuoso, da manhã.

    Porque é que não se enraizaram nesta ilha as pujantes tradições espiritual e cultural presentes no movimento Claridade, e de que a paixão do Sr. António Alves é um testemunho vivo?

    Que pena não ter havido condições para preencher o espaço intelectual criado durante décadas, quando S. Nicolau exportou para S. Vicente o seu módulo de ensino, tendo com ele partido os seus próprios frutos!

    Se ao relativo progresso material, de que as curtas mas belas auto-estradas, que já ligam o aeroporto ao Tarrafal, pela costa sul, e à Ribeira Brava, em linha quase recta, aquele impulso de intelectualidade tivesse tido sustento, quão belo não seria encontrar agora em S. Nicolau uma atmosfera universitária, da qual jorrassem para as outras ilhas de Cabo Verde correntes de pensamento, arte e cultura mais vigorosas, dando asas mais fortes à apetência que os cabo-verdianos tanto manifestam pela cultura e pelas artes!

     Com estes pensamentos foi o Sr. Ramires chegando ao Hotel, já noite cerrada.


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