13 - A Ilha da Claridade - Conto
Nota prévia: No final do século passado escrevi alguns contos retratando a minha visão de algumas ilhas de Cabo Verde, que ia conhecendo em maior profundidade, ao ritmo em que as ia percorrendo e travava conhecimento com as respetivas populações e estruturas turísticas então existentes. Conversei também com diversas personalidades em cada uma delas, procurando inteirar-me de pormenores da respetiva história, caso de autarcas, de artistas e de alguns amigos que tinha ou fui fazendo.
Quem ler estes textos, publicados na altura no efémero jornal "Aliança", haverá de constatar que eles abordam três períodos: (i)o passado, de algum modo procurando retratar geografias e vivências de relatos recolhidos localmente; (ii)o que na altura era o presente, com referência a personagens reais, mesmo se os nomes não coincidem; (iii)e o que se perfilava então como futuro desejável, num prisma de quem como eu desenvolvia um projeto de operação turística, dando de permeio largas a alguma imaginação...
De resto, as mesmas algas, que no Tarrafal chamam
limos, fervidas, mergulhadas na água da ferva, enchendo a celha até meio, e
exalando aqueles vapores abundantes de marezia que fazem o cliente transpirar
até aos limites.
Do Ti António Julinho, de quem dizia que conhecia os
ossos todos do corpo, dos maiores aos mais pequenos, sendo capaz, na sua
humilde casa do Canto da Fajã ou deslocando-se a qualquer ponto da ilha, de
trazer alívio e conserto aos que deslocaram um osso, ou mesmo àqueles a quem
sobreveio uma dor muscular sem explicação aparente, tendo ido mesmo por vezes a
S. Vicente, aonde a sua fama se estendera.
De Nhô André crioulo e Nhô Pióne, espécie de heróis
populares que sempre venciam com valentia de mosqueteiros os inimigos que se
lhes deparavam, protegendo os fracos contra gatunos, criminosos e personagens
enigmáticos da noite.
Dos cadetes portugueses que no início dos anos 30
desembarcaram por engano a S. Nicolau e, depois de acamparem logo ali, no
Tarrafal, acabaram por ocupar o antigo liceu na Ribeira Brava, deixando em S.
Nicolau um número importante de filhos, hoje espalhados por diversas ilhas,
sobretudo S. Vicente.
Dos baptizados
e das festas de guardá-cabeça,
em que se espantavam as bruxas com barulho, durante toda a noite do sexto para o
sétimo dia, tocava-se gaita e rabeca, e bebia-se grogue até as pálpebras
cederem, despertando de novo com uma canja antes do cantar do galo, pois não
podia dexar-se cair o silêncio até que raiasse a aurora.
Das grandes festas da Pascoela na Fajã, em que se
organizavam corridas de cavalos e se exercitava a perícia dos cavaleiros, que
deviam enfiar paus em argolas, em velocidade, e jogos de cepá gól cabeça, de que saía vencedor quem conseguisse, de olhos
vendados, cortar mais cabeças dos galos previamente enterrados até ao pescoço.
Do boneco Zé Pacófia, também conhecido por Chico
Pascoela, uma espécie de Zé Pereira que deambulava na festa da Fajã.
Das danças do seu tempo de moça, que iam desde a
valsa à trançinha, ao raspa, ao strimbol, à mazurka, à contradança (com
mandamentos em francês). Lembrava-se de que na povoação de Covoada se dançavam
os “xotis”, uma modalidade sem paralelo, e que há muitos anos não tem
oportunidade de presenciar.
Com ela se emocionou também o Sr. Ramires, e daí
recolheram para dormir, que no dia seguinte o Sr. Ramires destinara deslocar-se
à Ribeira Brava, para falar com o Sr. António Alves, homem culto e dedicado à
ilha, agora reformado, e da boca de quem queria inteirar-se em pormenor de um
aspecto que sabia ter marcado a ilha de S. Nicolau: o nascimento do ensino
secundário em Cabo Verde, em meados do século XIX.
No percurso da estrada dominado pelo pico da Ponta
Espechim, que ladeia o mar sem contudo o ver, o Sr. Ramires surpreendeu-se com
a quantidade de dragoeiros que, naquele empertigamento ufano de cálice
ancestaral, se espraiam pela encosta em número que nunca pensara ser possível,
sabendo, pelo que lera desta espécie em vias de extinção, que apenas alguns
exemplares restavam, dispersos por algumas das ilhas conhecidas por
Macaronésia, nas quais se integram as de Cabo Verde, para além das Canárias,
Madeira e Açores. Ficou a saber que em S. Nicolau existem ainda mais de cem
exemplares desta recordação historico-botânica.
Após duas horas de viagem, constantemente
entrecortada pelas entradas e saídas de passageiros, a carreira chegou enfim à
Ribeira Brava, e o Sr. Ramires não esperou nada para dirigir-se à mercearia do
Sr. António Alves, que o esperava, convidando-o logo a subir à sala, onde alinhara
em cima da mesinha vários livros e revistas, todos com diversas marcas,
assinalando textos que ilustravam de várias formas a história da ilha, de tal
modo que o Sr. Ramires, que telefonara de véspera a dar conta da sua
curiosidade sobre alguns aspectos da história e da cultura de S. Nicolau, quase
não precisou de o interrogar para se inteirar de uma soma abundante de
conhecimentos relativos a personagens, instituições, datas, tradições da ilha.
Que no mesmo séc. XVII tiveram os primeiros
habitantes de fugir aos piratas, disseminando-se pelo interior, e fundando a
Ribeira Brava, vindo a construir, já no séc. XVIII, e pelo mesmo motivo, a
Fortaleza sobranceira ao Porto da Preguiça.
Que as primeiras plantações de café em Cabo Verde
surgiram aqui, ainda no mesmo séc. XVIII, cedendo depois o lugar à
cana-do-açúcar, à urzela, à purgueira e ao algodão.
Mas também que o séc. XX haveria de trazer a S.
Nicolau, como às restantes ilhas, a desolação, a fome e a mortandade, dos anos
20 aos anos 40, provocando, a partir dos 50, um surto de emigração antes
desconhecido nesta terra.
O tom de voz do Sr. Alves animou-se porém quando,
abrindo um grosso volume, numa das marcas previamente intercaladas, passou a
falar da história do seminário da Ribeira Brava.
O sobressalto deu-se em 1866, com a chegada a S.
Nicolau, em Setembro, de 3 cónegos, 3 padres e 5 seminaristas, todos oriundos
do Seminário de Sernache do Bonjardim.
Instalaram na Ribeira Brava um estabelecimento de
ensino, que passou a formar não só padres como também candidatos à
Administração Pública, pagando os primeiros 9 reis, e os segundos 18 reis... Os
alunos do Secundário perfaziam 16 cadeiras, acrescentando a estas os candidatos
ao sacerdócio outras 19, durante mais 3 anos.
Em 1892, por anexação da Escola Superior da Praia,
este estabelecimento de ensino adquiriu o estatuto de Seminário-Liceu,
distinguindo-se neste período alguns professores míticos, dos quais se destaca
o famoso Cónego Bouças, Prefeito, mas que garantia ao mesmo tempo o ensino de
disciplinas importantes, como o latim e a geografia.
Em 1917 a República ditou o encerramento do
Seminário-Liceu, que viria a reabrir ainda em 1923 sob a designação de
Instituto, para fechar em definitivo em 1931, altura em que passou a servir de
albergue a um grupo de deportados chegados da Metrópole.
O Sr. Alves, que vive intensamente, como se fosse de
hoje, a história do Seminário-Liceu da Ribeira Brava, deixou escapar um sentido
suspiro, para concluir: Baltazar Lopes da Silva, o filho mais representativo de
S. Nicolau, a par do médico e escritor João Augusto Martins, que tornou
possível a implantação do ensino secundário na ilha, através de benemerências
diversas, foram, juntamente com a ilha que os viu nascer, vítimas injustas do que depois veio a
suceder, com a passagem de testemunho para o Liceu Gil Eanes no Mindelo. Daí
para cá, S. Nicolau é uma ilha votada pelos poderes ao esquecimento, até que um
sobressalto, talvez pela banda do Turismo, quem sabe, nos venha restituir o
orgulho perdido!
Passada
esta delicada simbologia, e a manter-se a chama da paixão, falará a moça com a
mãe, comunicando-lhe o interesse do rapaz; será a vez de a mãe obter o
beneplácito do pai, o qual, juntando-se ao da mãe, autoriza a moça a comunicar,
com o coração aos pulos, a novidade a três pessoas de confiança do futuro
namorado, as quais, munidas de uma vasilha de bom grogo, se dirigem então a
casa da moça, para, em nome do apaixonado, pedirem aos pais da moça a sua mão
para ele.
É
então que, num gesto de ingenuidade simulada, os pais chamam a moça, para lhe
perguntar se foi ela que permitiu o pedido. Na afirmativa, bebe-se o grogo para
selar o noivado, que deverá durar cerca de um ano.
Uma
semana antes da data aprazada para o enleio final, começa a faina da importante
festa: pila-se o milho, prepara-se o xerém, para encher as tripas do capóde, confeccionam-se as estrelinhas
de papel; o mordomo recepciona as “bandejas” dos convidados (borregos - capóde - com flores nos chifres,
galinhas com fitas ao pescoço, bolos, etc.); a boquera prepara o told (leito
matrimonial), tendo o cuidado de estender um lençol branco.
A festa é de arromba, são colocadas as estrelinhas nos ombros dos convidados, a cerimónia religiosa e a boda libertam em todos os convivas alegria transbordante. Mas a cerimónia não acaba, restando para o amanhecer o maior suspense; se se fizer ouvir o estralejar de foguetes, anunciando a virgindade da noiva, ao mesmo tempo que a boquera sai em corrida exibindo o lençol manchado de sangue, a mãe irrompe em “genuínos” soluços de alegria, o pai ordena uma rodada de grogo a todos os convivas e a festa atinge o seu ponto de órgão, remetendo o casal ao dia-a-dia, que todos desejarão feliz, não sem que, num simbolismo de promissão, os padrinhos organizem a sua primeira refeição, dita de “armá caldera”, que constitui uma espécie de um voto à capacidade de auto-sustento dos recém-casados, debaixo do apoio protector dos padrinhos e dos pais.
Porque
é que não se enraizaram nesta ilha as pujantes tradições espiritual e cultural
presentes no movimento Claridade, e de que a paixão do Sr. António Alves é um
testemunho vivo?
Que
pena não ter havido condições para preencher o espaço intelectual criado
durante décadas, quando S. Nicolau exportou para S. Vicente o seu módulo de
ensino, tendo com ele partido os seus próprios frutos!
Se
ao relativo progresso material, de que as curtas mas belas auto-estradas, que
já ligam o aeroporto ao Tarrafal, pela costa sul, e à Ribeira Brava, em linha
quase recta, aquele impulso de intelectualidade tivesse tido sustento, quão
belo não seria encontrar agora em S. Nicolau uma atmosfera universitária, da
qual jorrassem para as outras ilhas de Cabo Verde correntes de pensamento, arte
e cultura mais vigorosas, dando asas mais fortes à apetência que os
cabo-verdianos tanto manifestam pela cultura e pelas artes!
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