14 - Nhu Pantchôl - na Ilha das Montanhas - Conto

 Nota prévia: No final do século passado escrevi alguns contos retratando a minha visão de algumas ilhas de Cabo Verde, que ia conhecendo em maior profundidade, ao ritmo em que as ia percorrendo e travava conhecimento com as respetivas populações e estruturas turísticas então existentes. Conversei também com diversas personalidades em cada uma delas, procurando inteirar-me de pormenores da respetiva história, caso de autarcas, de artistas e de alguns amigos que tinha ou fui fazendo.

Quem ler estes textos, publicados na altura no efémero jornal "Aliança" (em ortografia pré-AO), haverá de constatar que eles abordam três períodos: (i)o passado, de algum modo procurando retratar geografias e vivências de relatos recolhidos localmente; (ii)o que na altura era o presente, com referência a personagens reais, mesmo se os nomes não coincidem; (iii)e o que se perfilava então como futuro desejável, num prisma de quem como eu desenvolvia um projeto de operação turística, dando de permeio largas a alguma imaginação... 

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Mapa de Santo Antão

    Quando, em 1917, mestre Fernando Wahnon, eminente advogado de Santo Antão, toma posse da Junta Administrativa do Paul, simbolizava todo um passado da ilha mais montanhosa de Cabo Verde.

    O Paul, cujo nome traduz, ele próprio, a fecundidade da terra, e se situa à boca da respectiva ribeira, encostada ao mar agreste, fora o símbolo de refregas entre povoações muito próximas, nas quais se tinha centrado até então a vida da ilha: Santa Cruz, que adoptou o nome de Ribeira Grande em 1732, quando Santo Antão ascendeu a Concelho; e a vila Maria Pia, agora Ponta do Sol, que em 1885 chamou a si a sede deste concelho.

    Para trás ficavam importantes motins, dos quais os mais famosos tiveram lugar entre 1886 e 1894, quando os habitantes de Santo Crucifixo, ajudados pelos de S. Pedro e S. João Baptista, por um lado, e os de Paul por outro, carregaram burros com armas artesanais e se envolveram em rixas, o que despoletou a atenção da coroa em Portugal, que logo enviou tropas para Ponta do Sol, para pôr fim à sublevação.

    Carvoeiros, que haveria de tornar-se Porto Novo, completaria em 1912 o quadro administrativo da ilha, que passara desde 1875 a albergar a Comarca de Barlavento, criada em S. Nicolau em 1851.

    A esta vida política movimentada de Santo Antão não será certamente estranho o seu povoamento, que interveio logo após a descoberta, por Diogo Afonso, em 1462, por oriundos do Minho, do Alentejo e do Algarve, e depois de Itália, França, Espanha, com destaque para uma presença notória de judeus.

     Mas foram os escravos que trouxeram à ilha, como a todo o Cabo Verde, a pimenta do viver africano, mais ligado à natureza e ao mito, que, entretecido com a tradição dos europeus, foi gerando a crioulidade, com toda a sua riqueza humana, traduzida em fala, música, tradição, dança, côr, arte, outros tantos esteios da cultura que cimenta a nação cabo-verdiana, tão dispersa mas tão enraizada.

     Foi nesta calda que cresceu Nhu Pantchôl, ali mesmo na Boca de Ambas as Ribeiras, pelos idos de 1918.

    Natural da Garça, onde se desenvolveu nas lides agrícolas, em especial da cana, o seu espírito fora burilado à medida da profundidade da Ribeira, mas os voos do albatroz fendendo os ares das altas montanhas foram-lhe gerando uma vontade insaciável de largar dali um dia, em busca do mar e das alturas.

    Quando, já moço, calcorreava o leito da ribeira da Garça a caminho de Maria Pia ou Santa Cruz, não eram as festas que mais o moviam, mas sim o mar. De Fajã Grande a Chã de Igreja, apertado entre o Lombo Carneiro, a oeste, e o Tope de Cima, a leste, estugava o passo, sentindo o espírito voar até Cruzinha da Garça, onde, logo chegado, se precipitava nas ondas, como se as amasse profundamente.

    Estas festas foram para ele ocasião de conviver com gente de outras ribeiras e outras montanhas da ilha, e foi mesmo numa festa de Santa Cruz, aos seus 17 anos, que conheceu Bibica, vinda lá dos confins de Lombo do Pico, entre uma coladeira e uma contradança, no terraço frente  à igreja.

    Dos 17 aos 22, sempre que podia, de burro ou a pé, e enveredando ora por Cruzinha e Fontaínhas, ora por Horta da Garça e Boca de Ambas as Ribeiras, Pantchôl ia a Santa Cruz encontar-se com Bibica. Não havia mês que falhasse a este longo namoro. Chegou mesmo a galgar a montanha, quando os pais de Bibica cortavam nas suas peregrinações à capital, da Ribeira Grande à Ribeirinha Curta, para depois alcançar o Lombo do Pico, ao fim de dois dias de cavalgada. Os progenitores de Bibica começaram a apreciar o apego deste mocetão à filha, e, passados 3 anos de namoro assíduo e apaixonado, dispuseram-se a visitar a sua casa na Garça, e assim se foi preparando a boda, festejada à boa maneira crioula, entre grogo, cabrito, cachupa, xerém, licores e bolos os mais variados, precisamente na festa de Santa Cruz de 1940.

     Foram viver para Cuculí, onde os pais de Panchôl possuíam um naco de terra fértil, cultivando aí cana e hortaliças e mantendo meia dúzia de cabras.

     Agora a dois passos do mar e das principais povoações da ilha, o casal firmou-se no trabalho e começou a orientar a sua actividade para o pequeno comércio dos mercados que se animavam, em especial aos sábados e domingos, em Santa Cruz.

    As cheias de Agosto e Outubro traziam os aluviões, que eram pacientemente transferidos para uns metros acima, e aí acolhiam as sementes da mandioca, da mancarra, dos diversos feijões e outros legumes que, a partir de Novembro, numa primeira colheita, eram vendidos à população da capital e arredores. Nos melhores anos, conseguiam mesmo duas colheitas.

    A cana era porém a cultura que mais se embebia na tradição da ilha, em especial após o seu corte, nas lides do trapiche, desde a “penagem”, que permitia refazer a cobertura da casa; à verificação dos cilindros, do estado da almanjarra, a que os bois eram atrelados para fazer rodar os cilindros, e que devia ser talhada em “tamarinheira”; do “cubre”, que conduz a calda à celha, que deve também ser regularmente limpo; tal como os barris, que guardarão durante alguns dias essa calda para fermentar, antes de ser despejada no alambique, a peça mais nobre de todo o sistema, exigindo especiais cuidados, à saída de cuja serpentina é resfriado o vapor, ao passar dentro da água fresca que corre no “coxe”, canal em madeira por sua vez suportado por um tronco bifurcado de figueira, saindo então o esperado grogue, bem quentinho, após uma primeira leva de “gonorreia”, muito graduada e destinada a uso medicinal, e antes do “rapé”, quando o líquido desce a um teor de 20 graus ou menos e que, por isso, será de novo despejado na calda, para nova destilação.

Cana de açúcar em flor

    A magia do trapiche, rodando, rodando, ao som de cantigas de aboiar, em especial o famoso “colá boi”, lúgubre e sofrido, como se fosse um preito de dor que se houvesse transferido do antigo escravo para os animais, forçados a um trabalho aturado e sem refrigério à volta da cana prensada e sorvendo o pó do terreiro, numa espécie de liturgia em que o “colador di boi” dá o mote, os abastecedores de cana, sentados num banco rude, postado em face dos cilindros trituradores, não arredam pé, apenas interrompendo o movimento uniforme dos braços para sorver um trago de grogue de quando em vez, e todo aquele povo que carrega a cana, despeja as celhas ou os cilindros, ou substitui as vazilhas à saída do alambique, eis o próprio ex-libris de Santo Antão.

Trapiche movido a bois

     Numa ilha acidentada como Santo Antão, o isolamento é grande, arreigando as pessoas à pouca terra arável que lhes sobra dos montes escarpados e das ribeiras varridas pelas cheias, fazendo jus à sentença do poeta: “Si ca tem tchuba, morrê di sede; si tchuba bem, morrê fogode”...

     Por isso, Bibica e Pantchôl, ano após ano, cultivaram a terra que lhes coube em sorte, de sol a sol, sem esmorecer na determinação férrea de acrescentar algo ao futuro dos seus filhos, que foram nascendo com a regular naturalidade dos ciclos da vida: primeiro o Tonho, no ano seguinte Jubinha, depois Titina, e finalmente Djoca.

     Num quadro de vida tão enraizado na terra, a natureza encarregava-se de premiar o rude trabalho da lavoura com deliciosas prendas que iam trazendo as estações: na primavera, as cores e os cheiros das flores enchiam de encanto a alma do povo.  A alegria era visível nos olhos brilhantes das crianças, que encaravam com prazer os horários carregados para a sua idade, entre a escola, quantas vezes a horas de caminho, e o campo, onde a sua ajuda era indispensável e preciosa.

     A perspectiva das festas de Junho embalava os corações, sedentos de convívio com as gentes das outras ribeiras e das outras montanhas.

     Ninguém faltava ao Santo António, no Paul, nem ao S. Pedro e S. Paulo, na Chã da Garça. Muitos iam mesmo ao S. João em Porto Novo, transpondo a pé todo aquele caminho até à Corda, depois à Cova, para descer a montanha seca até ao canal.

     Boa parte dos namoros nasciam à sombra da procissão do “Santo casamenteiro” e eram depois firmados nos bailes, que aproximavam os corpos e as almas, forjando a paixão que, não raras vezes, desembocava em casamento, no ano seguinte.

     A coladeira, a morna, mas também a valsa, a mazurca, a contradança e até o landum alternavam os movimentos ondulantes dos jovens, dos menos jovens e até das crianças, tudo ao som do violino, da viola e bico, do cavaquinho e do tambor.

     Os terreiros de Santa Cruz e do Paul, borrifados com regularidade para evitar o pó, eram palco de uma algazarra animada, dia e noite, por ocasião destas festas.

     O bom grogue escorria, e as histórias também. Os mais novos eram confrontados com os medos do “gongon”, da “canelinha”, do “bjon”, da “cachorrona”. Os mais velhos exorcizavam na festa os medos das feiticeiras, cultivados nas noites escuras dos vales, onde avolumavam o temor das reuniões desses seres temíveis no Curral de Ruça, onde só nhu Miguel Benedito era capaz de intervir, cortando-lhes o rabo com o seu famoso compasso.

     No verão, as novidades cresciam, e as regas eram a azáfama do dia-a-dia. Santo Antão tem o privilégio de ouvir nas encostas, sob o sol escaldante do verão, o marulhar das levas, conduzindo a água aos milheirais, aos canaviais e às hortas, saudado pelo canto alegre das mulheres, na monda e na sacha.

     A manga rescende a terbentina e povoa de rosados brincos a copa da mãe; as papaias, agrupadas em cachos verde-alaranjados circundam em vagas sucessivas o tronco esguio e nu da papaieira, encimados pelo guarda-sol das largas folhas protectoras.

     Em baixo, crescem o milho, o feijão, a mandioca, e tantos outros legumes e hortaliças, numa homenagem sempre renovada ao sol, à água, à terra, e ao trabalho dos camponeses.

     Não tardará a colheita, a mais sólida e profunda alegria de quem trabalha, coroação do esforço constante, renovação de uma promessa da natureza, salário do suor vertido sobre a terra.

     As festas de Nossa Senhora do Livramento (Ponta do Sol, 23 de Setembro), da Senhora da Piedade (Janela, 15 de Outubro) e de Santo André (Ribeira da Cruz, 29 de Novembro) fecham o ciclo anual das festas populares de Santo Antão.

    Para a família de nhu Pantchôl de Cuculí, como para qualquer outra família de Santo Antão, estas festas foram, ao longo do tempo, o fermento de uma cultura única e rica, em que se misturam as diversas origens do povo da ilha.

     Agora, reformado, na sua bela vivenda da Passagem, sobranceira ao novo Complexo Turístico recém-inaugurado, Nhu Pantchôl observa o vale verdejante, salpicado de tons encarnados e violeta, das acácias rubras e das jacarandás que ladeiam a nova estrada, que liga a Cova ao Paul.

    Confortavelmente instalado num cómodo canapé de vime, saboreando um delicioso grogue envelhecido num pequeno pipo que há mais de 30 anos vem alimentando até que a sua côr se tornou negra, adivinhava o mar, por entre os recortes da ribeira, e dava por si invadido pela mesma emoção infantil que o oceano em si despertava em criança. A ilha tinha mudado como da noite para o dia, mas eram ainda o mar, o cheiro matricial da terra revolvida para a sementeira, a chuva, o verdejar das hortas na primavera, o crescimento dos frutos nas árvores, o voo dos pássaros, o nascer e o pôr-do-sol, o marulhar das águas nas levadas, o odor inebriante da cana prensada, como o da manga madura, que lhe afinavam a alma, devolvendo-lhe a paz e a harmonia.

     Já não havia danças de terreiro, nem os jovens partiam à conquista dos amores nas romarias, com piropos, piscadelas e poemas, entre poeiras e suor; os meninos não tinham tempo para histórias dos avós; e nem a gente grande se dava mais ao antigo prazer de conversar, gracejar, contar histórias e rir com gosto após um dia de trabalho bem puxado.

     Agora as discotecas tinham-se substituído aos terreiros e às sombras das árvores, com as moças penduradas ao pescoço dos rapazes, curto-circuitando aquele ciclo de tempo e espaço que romanceava e emprestava profundidade aos namoros de antanho, alimentados mais de morna que de cúmbia, mais de olhar e fala que de toque e linguada, mais de desejo que de consumo. As crianças preferiam a companhia dos jogos de computador, entre os zunidos de bichos arrepiantes e o colorido luminoso e estonteante de cenários irreais. E os adultos pareciam ter descarrilado do que antigamente era a vida a sério, de mãos dadas com a natureza, que, a troco de um trabalho aturado, pagava em frutos, hortaliça, cana, enfim, em tudo o que se precisava para viver e que dera sentido à labuta dos seus já longos anos.

     Agora não. Via os seus filhos sair de casa e entrar, para voltar a sair, para voltar a entrar, mas as preocupações que tinham eram diáfanas, quase incompreensíveis. Pagara-lhes estudos para que não levassem a vida dura que a terra lhe havia imposto, mas o conforto que daí resultou era comparável a uma decepção subreptícia, inexplicável.

     O Tonho, que virara um homem alto, esguio, um pouco ensimesmado mas simpático e dedicado à família, era agora caixeiro num dos Bancos que foram invadindo a ilha, desde que o turismo foi trazendo hotéis, restaurantes e comércio. Para Nhu Pantchôl, que só duas ou três vezes entrara num Banco, até porque o Tonho lhe tratava das minúcias financeiras, era difícil de entender o emaranhado de papéis e procedimentos que as transacções do dinheiro implicavam, ele que sempre entendera a economia à luz de um conceito bem concreto, em que os frutos, os legumes, o mercado, o comprador e o vendedor eram os elementos bem explícitos do governo da sua casa e da dos outros. Quando o filho lhe falava de juros, letras, acções, e de outras ferramentas com que geria as suas economias, Nhu Panchôl não queria saber e ia sentar-se no seu canapé a ver o vale, a sentir o mar e a repôr as ideias no lugar.

     Jubinha, já mãe, e a quem a linda cabeleira anelada, caindo graciosamente sobre os ombros parecia dar legitimidade ao “nominho”, enveredara pelo secretariado, e trabalhava com um dos muitos engenheiros que na ilha agora se dedicavam às mais variadas actividades. Já a do Chico era a da aquacultura. Vivia em Ponta do Sol, onde tinham sido instaladas dezenas de gaiolas, no mar, do lado do portinho antigo, mas Nhu Panchôl nunca entendeu muito bem que a sua filha, tal como o Chico, passassem o seu tempo encafuados num Escritório. É certo que o peixe que lhe traziam regularmente, por vezes lagosta, era saboroso e talvez mais fresco que o que antes comprava à chegada dos botes. Mas para ele o ambiente de trabalho de um escritório era malsão. E a ideia de um neto sem casamento, fosse embora o Djoquinha uma criança encantadora, aumentava nele aquela impressão crescente de que este mundo novo que fora aparecendo, embora com muito mais comodidades, trazia com ele um misterioso desencanto.

     Titina é o orgulho secreto dos pais. Estudara no Brasil, formara-se distintamente em medicina na universidade de Natal, e começara agora uma promissora carreira no Hospital João Augusto Martins na Ribeira Grande. Antes de se preocupar em se casar, já está a construir uma vivenda maravilhosa em Alto Mira, beneficiando da magnífica estrada que agora liga este topo soberbo a Ribeira das Patas e Porto Novo, por um lado, e, por outro, à costa oeste, que apelidam de “norte”, pelo vale da Ribeira. Nhu Panchôl e Bibica já decidiram dedicar uma parcela das suas economias de velhice para, quando terminar a obra, dar-lhe uma ajudinha para mobilar; Titina passará a morar na serra, percorrendo todos os dias uma meia hora de estrada, podendo escolher entre a marginal, pela Janela e Porto Novo, e a montanha, pela nova via rápida de Ribeira Grande a Lagoa e Ribeira da Cruz, uma das maiores obras da CVC, cujo percurso obrigou à construção de 12 pontes!

Alto Mira

     Djoca, o codé, optou pela via do Turismo. Depois de ter concluído o bacharelato na Escola de Hotelaria e Turismo do Sal, e estagiado no Crioula, em Santa Maria, e, depois, no Fragata, em Santa Mónica, mercê das boas capacidades demonstradas conquistou uma bolsa do Ministério do Turismo e licenciou-se em Portugal, na Universidade de Aveiro, em Gestão de Empresas Turísticas; ocupa agora, apesar dos seus 28 anos, o posto de Director de Food & Beverage do melhor Hotel de Santo Antão, o Tope de Coroa, na Ponta do Sol.

     O Tope de Coroa, 4 estrelas superior, 80 quartos e suites de apreciável qualidade, restaurante panorâmico no 6º andar, sala de seminários, encostado à montanha e sobranceiro ao aeroporto, ao porto e à capital, observando o oceano a perder de vista e o vaivém regular das aeronaves, é o símbolo perfeito da evolução de que beneficiou Santo Antão desde 2000.

     Na viragem do século, Santo Antão era tão só uma ilha apreciada pelos turistas, que passavam pela Ribeira Grande, Ponta do Sol, Paul, Janela, Porto Novo, mas que se limitavam a conhecer por alto a sua morfologia, salvo raras excepções, designadamente as de alguns franceses e alemães que se dedicavam às caminhadas, palmilhando montes e vales e dormindo em casas de habitantes locais, por trilhos que se foram tornando muito conhecidos e apreciados; exemplos destes trilhos, que ainda agora fazem de Santo Antão um dos destinos mais procurados em especial pelos europeus que buscam o contacto directo com a natureza são o que vai da Cova à Ribeira Grande, passando por Rabo Curto, Lombo de Beatriz, Xôxô, Marradouro, Fajã de Domingas Bento, atingindo depois o mar pelo vale da Ribeira da Torre; ou o que liga a Cruzinha da Garça a Fontaínhas, de falésia em falésia, sempre junto ao mar, a oeste de Ponta do Sol, por Boca do Mocho, Ponta de Lacacão, Ponta do Lajedo Largo, Pedra Estância, Formiguinhas e Corvo; ou ainda o que, de Tope de Coroa (que deu o nome ao Hotel do nosso Djoca) vai até ao Morrinho de Égua, pelo Morro de Covãozinho, Chão de Cidrão, Morro de Beira, Morro de Erva Doce e Monte Chão Queimado; e tantos outros, que Santo Antão é uma ilha extensa, majestosamente acidentada e senhora dos mais inesperados contrastes.

     À semelhança do Hotel Tope de Coroa, as primeiras décadas do século viram crescer o aeroporto, antes uma pequena pista de porta-aviões, e que agora conquistou ao mar mais de um quilómetro, abrigando no flanco sul o novo porto, uma estrutura que, por sua vez, veio potenciar um surto de construção e obras públicas antes impensável; assim como a já vasta rede de estradas, em que a Grande Circular, unindo Ponta do Sol ao Paul, à Janela, a Porto Novo, e depois ao Tarrafal e a Ribeira da Cruz, que se liga por sua vez à Ribeira Grande pelo interior, através da Lagoa, se destaca por ter aberto inúmeras portas ao futuro da segunda maior ilha de Cabo Verde, falando-se mesmo em completar agora a volta à ilha, num troço que ligará Ribeira da Cruz a Chã da Igreja e a Ponta do Sol, uma obra de engenharia complexa, com vários túneis e pontes, para vencer o alcantilado do terreno.

    Mas são as escolas que mais têm dinamizado o progresso de Santo Antão, fixando na ilha milhares de jovens que antes saíam para S. Vicente, Sal, e mesmo para Portugal, Holanda, Itália, Cuba, Brasil, Estados Unidos, ou até para alguns países mais longínquos, na Ásia e no Pacífico. Para além da proliferação de escolas do ensino básico e secundário, as joias da cultura e da ciência na ilha são agora a reputada Escola Superior de Agronomia, na Ribeirinha do Jorge, a que afluem alunos de todo o país, e a Escola de Ciências do Espaço (em cooperação com um Departamento Científico da Comunidade Europeia), em Lagoa.

     Já há muito a ilha mais verde do arquipélago de Cabo Verde, os técnicos de Ribeirinha do Jorge conseguiram nos últimos anos o “milagre” da florestação de quase toda a vertente sul da ilha, desde Chã do Norte à Ponta de Peça, e da Cova e Pico da Cruz a Porto Novo, graças à conjugação de duas tecnologias há muito em desenvolvimento: o aproveitamento da energia eólica para extracção e dessalinização da água, e a rega gota-a-gota.

     Conhecido pela sua proverbial persistência no recomeço cíclico de sementeiras de futuro incerto, parece que o flagelado povo de Cabo Verde, cuja História vai a caminho de 6 séculos de existência, começa a ter em Santo Antão a prova de que a seca, o isolamento e a emigração não são uma fatalidade...

 * Sendo o objectivo destes escritos transportar o (a) leitor(a) a uma atmosfera de vivência cabo-verdiana, tal não significa que o desenvolvimento destas “estórias” se cole com rigor à realidade, designadamente quando se traduz em escrita uma certa expectativa de um surto de progresso que se deseja e, não sendo inverosímil, carece ainda, em grande parte, de realização a que, mais passo menos passo, se aspira.

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