15 - Rufino, o improvável nobre cavaleiro - conto

NOTA PRÉVIA: Chamaria a este texto um "conto-implante", na medida em que, sendo escrito no intuito de introduzir o visitante na realidade histórica, geográfica, sociológica e ambiental desta ilha tão especial, serve-se da imaginação no que toca à inserção da personagem principal num contexto real, desenhando perspetivas um tanto criativas para o futuro, mas respeitando o quadro em que a ilha do Fogo se desenvolveu ao longo de mais de cinco séculos... Por isso, é oportuno aduzir aqui a máxima de que "qualquer semelhança com pessoas e factos reais contemporâneos será eventualmente pura coincidência"...

Dizem os entendidos em vulcanologia que em tempos ignotos o imponente vulcão da Ilha do Fogo se elevava a uma altitude de 3.500 metros, e que o topo era um cone pontiagudo expelindo fumos e chamas pela respetiva cheminé.

Quando, acabados de ancorar na baía a que deram o nome de Ribeira Grande, no sul da ilha que chamaram de São Jacobo (Tiago), a 1 de maio de 1460, Diogo Gomes e António Da Noli não viram a oeste nem fumo nem fogo. Mas aquele cone imponente de ponta decepada emergindo das nuvens, bem para além da distância de um tiro de canhão, sem que enxergassem a base que lhe dava sustento, imersa em neblina, aguçou neles a curiosidade de procurarem observar mais de perto o que seria esse quinto território de um arquipélago até ali desconhecido, o qual logo trataram de denominar de São Filipe, por ser também o dia deste santo, de par com São Jacobo.…


 Os protofoguenses

Satisfeita a curiosidade, a volta que depois deram à ilha revelou uma acessibilidade difícil, e só anos mais tarde seriam já os primeiros povoadores, enviados de Portugal por D. Fernando, entretanto constituído seu proprietário pelo rei D. Afonso V, seu irmão, a aportarem à extensa praia de areia negra no seu extremo mais ocidental, e a galgarem o rochedo fronteiro para ali estabelecerem o primeiro núcleo de residentes, a que depois se juntou um contingente de escravos, resgatados nos rios da Guiné, mas já ladinos[1], por terem entretanto estagiado na Ribeira Grande de São Jacobo, onde estiveram entre os protagonistas mais precoces na rápida formação da linguagem crioula, fruto do contacto existencial entre reinóis e guineenses, em especial dos mais novos que ali iam nascendo, crescendo e convivendo, sem preconceitos nem entraves, como é próprio das crianças, frontais, perspicazes e criativas; por outro lado, com duas ou mais comunidades tão díspares em presença, gerou-se naquela nação nova que ali despontava uma novíssima atmosfera cultural, à época pressionada por uma pulsão cristianizadora empolgada, mercê em especial da incumbência papal denominada de Padroado Português[2], garantida mormente pelos soldados-missionários da Ordem de Cristo, e por isso  a “ladinização” incluía, a par da introdução da língua portuguesa como veículo de entendimento e cimento cultural, o batismo na respetiva fé, o que implicava a catequização e a introdução nos preceitos, mandamentos e rituais da liturgia e dos sacramentos católicos.

Durante 50 anos o afluxo de protofoguenses foi crescendo, mas não perdurou registo conhecido de detalhes mais precisos deste processo naquele período, em grande parte porque o grosso dos documentos da época viria a ser destruído, primeiro pelo incêndio do Tombo Velho da Ribeira Grande, ateado em 1585 pelo famigerado corsário Francis Drake, ao serviço da Coroa inglesa, e depois, em 1712, a biblioteca do paço episcopal, agregada à Sé Catedral, pereceria em novo incêndio, desta vez ateado pelo corsário francês Jacques Cassard, ao serviço do rei Louis XIV de França.

O que se sabe é que boa parte da ilha, mormente entre as quotas de 400 e 700 metros de altitude, e a leste da localidade agora conhecida por Achada Furna, por sua vez a sudoeste da grande cratera, circundando a ilha até Feijoal e Mosteiros, a nordeste, na vertente oposta do vulcão, deu provas de grande fertilidade, pelo que por aí se foi expandindo a população e trabalhando a terra com resultados surpreendentes, conseguindo duas colheitas de algodão por ano, café, uvas, maçãs, marmelos, purgueira, gado caprino e cavalar, queijo, peles: mais que o suficiente para atrair novos colonos e novas levas de escravos, ao ponto de o século XVI ter despontado na ilha com uma população de milhares, laboriosa e organizada, embora oscilante, ao sabor das lavas e tremores ribombados periodicamente pela temível caldeira, ou das secas severas, que cerceavam o cultivo de alimentos. O número de residentes na ilha foi crescendo ainda assim, e regista-se que chegou a 13.000 em meados do século XVIII, mas desceu a 5.700 a seguir à seca severa de 1773-75, recuperando depois até ao início do século XIX, crescendo até 16.000 no início do segundo quartel deste século, mas voltando a descer para 6.000 com a fome do início dos anos 30, num sobe-e-desce que só após a grande fome dos anos 40 do século XX haveria de se regularizar, com medidas coloniais mais assertivas, e depois com a independência…

 

A Governança

No que toca à governança da ilha, se durante os séculos XVI e XVII os soberanos de Lisboa foram nomeando para o Fogo sucessivos capitães-mores da linhagem do Conde de Penela, João de Menezes e Vasconcelos, coadjuvados por um almocharife[3], um escrivão, um alcaide de mar[4], um fiel de peso[5], um meirinho de Correição[6], um alcaide da ilha, um tabelião[7] e um escrivão dos órfãos[8], já D. João IV, que reinou na primeira metade do século XVII, chamou de novo a si e a Lisboa a propriedade e o governo da ilha, que entretanto, na segunda metade do mesmo século, passaria para as mãos da Companhia Geral de Comércio de Grão-Pará e Maranhão, de triste memória, com estabelecimentos em S. Filipe e Mosteiros.

O regime camarário vigente na Metrópole, que de há muito estava solidamente implantado em Santiago, só no século XIX acabou por vingar na Ilha do Fogo, quando um conjunto de famílias nobiliárquicas ou burguesas oriundas do reino, quer da Metrópole quer da Madeira, ostentando nomes como Vasconcelos (este já então bem conhecido na ilha), ou Medeiros, Barbosa, Roiz, Nosolini, Macedo, Martins, Monteiro, Medina, Carreira, Sacramento, Fonseca, Vicente, Pires, Rodrigues, entre vários outros, aparecem a multiplicar a construção de sobrados em S. Filipe e nos Mosteiros, a partir dos quais governam as culturas agrícolas e pecuárias, o comércio e, claro, a política local.

Edifício da Câmara Municipal de S. Filipe

Por essa altura Chã das Caldeiras era ainda observada com distância e temor, sentimento alimentado pela memória das sucessivas erupções cíclicas, entre as quais a de 1500, na qual terá ocorrido ainda o afundamento de alguns montes à volta do cone-cheminé principal, ou a de 1680, acompanhada de fortes terramotos, apavorando de tal modo as populações que boa parte fugiu para a Ilha Brava.

Só em 1826 é que um primeiro residente, um foragido espanhol de nome José Bairado Luzido, ousou escalar pela primeira vez o Pico e aí observar a cratera central, onde deu conta da existência de alguns minerais eventualmente com interesse comercial, caso do enxofre, da “escontra” ou “salitre” (sulfato de sódio), da “caparosa” (vitríolo) e da pedra hume. Recolheu mesmo, em umas segunda e terceira escaladas, estas já patrocinadas pelo Administrador do Concelho, à data João Gomes Barbosa, descendo à cratera com a ajuda de cordas, amostras desses produtos, de seguida enviadas ao Capitão-Geral recém-empossado na Praia, João da Mata Chapuzet, que por sua vez as remeteu para análise ao Diretor do Laboratório da Escola Politécnica de Lisboa, Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, acabando porém por não ser encarada a hipótese da respetiva comercialização, por a relação custo/benefício não compensar.

 

Pico Grande do Fogo

Condimentos para uma metamorfose social

No dealbar do século XIX os horizontes da Ilha do Fogo apresentavam-se, neste quadro híbrido, prenhes de promessas, mas também de desafios. Por um lado, o controverso Manuel António Martins aparece no arquipélago como exemplo acabado de oportunismo, que faz balancear ao sabor dos ventos, de interesses próprios e retaliações, a economia e a política de Cabo Verde, entre o liberalismo pedrista e o absolutismo miguelista, ancorado numa posição económica privilegiada construída mormente com a exploração do sal nas ilhas de leste, que lhe valeu o epíteto de “senhor das ilhas” e, em 1834, o cargo supremo de Capitão-Geral[9], cujo exercício fazia lembrar um pouco o do temível e malogrado capitão-mor da Ribeira Grande, António de Barros Bezerra de Oliveira, um século atrás.

Em 1835, com a Câmara Municipal já solidamente estabelecida em S. Filipe, dominada pelos Medina & Vasconcelos, ressalta já o despique que se acentuará nas décadas a seguir entre os estratos sociais, contenda de que é exemplo uma troca de ordens e contraordens entre a Câmara, a Administração da Praia e o Bispado, quando os edis José Joaquim Vieira de Vasconcelos, José do Sacramento Monteiro, Joaquim Inácio da Silveira, José dos Reis Pires e Manuel Caetano Franco Sousa, se queixam em missiva ao Capitão-Geral, de que “quatro confrarias de pretos intituladas Reinados, em certas alturas do ano saíam de S. Filipe a espalhar a desordem, pediam esmola em todas as casas e cobravam duzentos reis em cada uma em que entravam para rezar o terço”… E conseguiram, embora a retardamento, dois anos volvidos, a ordem de dissolução dessas confrarias, mas o Governador do Bispado, António Carlos de Araújo Gomes, que rececionou o documento, fez ouvidos de mercador, alegou que a Confraria de Nossa Senhora já havia partido de S. Filipe para o interior à data em que recebeu a notificação, e aproveitou entretanto para enaltecer, discordando das autoridades civis, a importância das confrarias, que de resto eram responsáveis por garantir as coletas que promoviam anualmente o principal sustento da paróquia de S. Filipe. E o certo é que as Confrarias e Reinados, em número superior a dez, continuaram a funcionar regularmente, saindo pelos Reis, em princípios de janeiro, de S. Filipe, compostas por três homens honrados cada, um chefe, um portador da bandeira e um tamboreiro, de visita a todos os povoados da ilha, durante 40 dias, que evocavam a permanência de Jesus no deserto, e de volta traziam as oferendas que entregavam na igreja de S. Filipe, subtraídas as despesas de custo…

Nhô Armand di França (Armand, comte de Mont Rond)

Por outro lado, desembarca no Fogo um personagem que viria a marcar a ilha, o aventureiro francês Armand, mítico e prolífico Conde de Mont Rond, mais precisamente François Louis Armand Fourcheut De Mont Rond, chegado a S. Vicente em 1860 e aportado em 1872 a Ribêra Djeu, com a sua primeira companheira Domitília e a primeira filha, Jacinta, com 3 anos; agricultor em Atalaia, exportador de vinho clarete e de café para o Reino, construtor de estradas, fontes e cisternas, dispensador de cuidados médicos, grande sedutor e patriarca de uma extensa descendência, fruto de amores que consolidou com as sete jovens mães dos seus numerosos filhos, e, ao que parece, dotando cada uma com um sobrado, em S. Filipe, Mosteiros, Genebra, Baluarte e Achada Maurício, descendência  que proliferou pelas encostas e fez mais tarde, a partir de 1917, de Chã das Caldeiras um éden de gente exótica, olhos claros, cabelo louro e crespo, tez cúprea, fazendo jus à vocação da nação cabo-verdiana para a crioulidade.

Um outro pilar genealógico de relevo que subsistia na ilha, a par dos recém-chegados nobres da Metrópole, era a estirpe igualmente nobre dos Távoras, introduzida inopinadamente em meados do século anterior por Marcelino José, cognominado localmente de Nhô Capiton, foragido do despotismo iluminado do terrível Marquês de Pombal, afilhado e protegido de D. Maria I, que o fizera embarcar às escondidas de Sebastião José de Carvalho e Melo com a identificação pseudónima de Henriques, com escolta para o Brasil, mas ele e a sua comitiva acabaram por ficar-se pela ilha do vulcão por ali ter encalhado, nos baixios de Rui Pereira, defronte da Ribeirinha, à vista de Santo António e S. Lourenço, o navio em que seguiam, vindo ele a acabar por exercer nas ilhas do Fogo e Brava as altas funções de capitão-mor, enquanto o seu protetor, João Cláudio Mendes Rosado, ficaria à frente das delegações da Companhia Grão Pará em S. Filipe e nos Mosteiros. Em memória do naufrágio, do qual todos os ocupantes do navio foram salvos, estes náufragos muito especiais mandaram construir no local sobranceiro à praia, em frente aos baixios, uma capela dedicada a Nossa Senhora da Luz, que mais tarde originou uma das sete Bandeiras festivas da ilha, celebrada no início de setembro, a par das de S. Sebastião (20 de janeiro em S. Filipe), S. Filipe (1 de maio, em S. Filipe), Queimada (no Guincho, a 6 de maio), S. João (24 de junho em S. Filipe), S. Pedro (29 de junho em S. Filipe), e Nossa Senhora do Socorro (13 de outubro na Ponta de N. Sra. do Socorro, à vista do Monte Genebra).

 

Rainha D. Maria I de Portugal

A aurora

Foi também no decorrer deste século XIX que o relógio da História foi soando as badaladas da alvorada a caminho da progressiva libertação oficial dos escravos no Ocidente, abrindo-lhes finalmente a aurora da liberdade e da dignidade até então negadas, com profundas consequências no ordenamento social das populações e, como corolário, com a abertura do poder económico e político a uma nova geração de “brancos da terra”, uma expressão inovadora que vincava a particularidade do processo de miscigenação em Cabo Verde: era “branco da terra”, independentemente do tom da pele, quem vencesse na vida, amealhando conhecimento, relacionamentos, honra, bens e dinheiro. Apesar de a estratificação social, muito vincada no Fogo, se ter prolongado até tarde, uma onda crescente de cidadãos crioulos, que iam marcando presença nos andares térreos dos sobrados, foi desempenhando responsabilidades acrescidas no comércio e nos ofícios, como a de mordomos ou de feitores, e mesmo ocupando cargos na administração pública.

O médico e escritor Henrique Teixeira de Sousa haveria, já em meados do século XX, de retratar a progressiva transformação da sociedade oitocentista e novecentista do Fogo, na sua obra-mestra "Ilhéu de Contenda" e num trabalho publicado na revista Claridade em 1958 ("Sobrados, Lojas e Funcos"), numa estratificação lapidar em quatro camadas, dominada por uma minoria de brancos, morados nos andares de cima dos sobrados, que construíam em duplicado, em S. Filipe ou nos Mosteiros e no interior agrícola; secundados por mulatos, mestiços filhos de pai branco e mãe mulata ou negra; ou mulatos de segunda geração, filhos de pai e mãe mulatos, uns e outros ocupando-se de diversos ofícios ou mesmo de missões de gestão, alguns deles morando no rés-do-chão das próprias casas dos terratenentes; e finalmente o povo predominantemente negro, agrário, tarefeiro e pescador.  

Henrique Teixeira de Sousa

Mas este ordenamento estava longe de ser estático, e no seio do povo foi despontando a ambição natural de superação e ascensão social, bem traduzida num refrão que se foi insinuando e espalhando desde o século XVI nos funcos e nos povoados, e que rezava assim:

            Branco ta morâ na sobrado,

Mulato ta morâ na loja,

Nêgo ta morâ na funco,

Santcho[10] ta morâ na rotcha.

Ta bem um dia,

Nhô Trasco Lambasco,

rosto frangido, rabo cumprido, ta corrê co nêgo di funco,

Mulato co branco di sobrado,

Branco ta bá rotcha, el ta tombâ…

Na caminho di América

É neste período do entardecer do mesmo século XIX e nestas circunstâncias únicas que começa a desenhar-se a história de Rufino Henriques.

O seu avô, Diogo Henriques, benjamim de Nhô Capiton, acabara de falecer, em 1884, deixando viúva D. Ester, com 3 filhos menores, na sua herdade de Curral d’Ochô, a umas duas léguas de S. Filipe, onde a cultura do café e da vinha, antes produtiva, tinha caído a pique com os três anos de seca, de 1863 a 1866, e demorava a recuperar, decorridas que eram já quase duas décadas, tanto mais que em 1883 sobreviera nova seca, que se prolongaria até 1886, obrigando o seu pai, Rodolfo Henriques, filho primogénito de Diogo, ainda pouco mais que um adolescente, a embarcar em um dos veleiros que à época demandavam regularmente S. Filipe, onde procediam à trasfega do óleo extraído dos cetáceos arpoados em alto-mar pelos baleeiros americanos, para um veleiro que seguia direto a caminho da América. Rodolfo chegou a Pawtucket, Rohde Island, perto do Natal de 1887, onde foi acolhido por uma tia materna, que entretanto enviuvara e trabalhava em Providence numa fábrica de têxteis, onde imediatamente ele foi também admitido como operário, em ambiente quase familiar, pois Matilde, a tia, encaminhava quem ia chegando de Cabo Verde para a fábrica, disponibilizando, além disso, a sua casa espaçosa para convívios que aos domingos, após a missa na igreja de S. João Baptista, na Quincy Av., recriavam quanto possível o ambiente aconchegado da pátria-longe, entre mornas, cachupa, djagacida[11] e caldos de peixe, tão próxima que ela vivia do mar e do porto de chegada dos veleiros que faziam naveta para Cabo Verde.

Escuna "ERNESTINA", construída em 1893

Não faltaram na América apoio e calor humano a Rodolfo, que por ali teria ficado, não fora a saudade que lhe ia progressivamente tomando conta da alma, da sua Djarfogo, dos familiares e amigos escapados à fome, mas sobretudo de Jacinta, uma bela crioula, como ele, que deixara já rapariga, em Genebra, um povoado fundado por Montrond, em memória da bela cidade suiça de Genève,  e com quem trocava, no período da colheita do café, olhares cúmplices do terreiro para a varanda do sobrado que nhu Armand di França (assim foi cognominado Armand em Atalaia) construíra para a primeira das suas mulheres pouco antes da sua partida para a América, olhares esses que tinham logrado encontrar correspondência por parte da Jacinta, da varanda para o terreiro, quando ele transportava carradas de uvas em dornas para o lagar da D. Domitília, por altura das últimas vindimas nos vinhedos de Lapa Cavalo, nesse cada vez mais nostálgico ano de 87; olhares tão comprometidos, que atingiram em cheio a sua sensibilidade a despertar para a volúpia, desencadeando uma paixão que o ia possuindo, preenchendo cada vez mais os seus pensamentos e desejos, alimentados por mensagens em cartas calorosas que trocavam amiúde, ao ponto de ele nem sequer reparar nas investidas das jovens namoradeiras suas colegas de trabalho em Providence.

Regresso de Rodolfo

Foi assim que Rodolfo decidiu regressar, na primavera de 1898, já com 25 anos e um pé de meia, a Maria Chaves, para onde se tinham mudado entretanto a mãe Emília e as duas irmãs, ambas mais novas que ele, um reencontro que se prolongou entre abraços, lágrimas de alegria e relatos sentidos das mudanças ocorridas naqueles 9 anos de ausência, em que a Elisabete, agora com 23 anos, casara e era já mãe de um bebé reguila, de olhos grandes e observadores, e a Carolina era uma bela moça de 19, vivaça e com ideias de singrar na vida fora da lavoura e mesmo fora da ilha, um propósito que se agudizou com os relatos da América do mano acabado de voltar, e um desígnio que se lhe foi insinuando com ligeiro perfume de terra prometida,  mau grado o tom de distanciamento subjacente às descrições de Rodolfo, próprio de quem lá passou o cerne da juventude mas de lá quis voltar, movido pela nostalgia, uma vivência que décadas mais tarde a mindelense Albertina Rodrigues haveria de interpretar com voz pungente, em versos de uma morna de outro sãovicentino, Francisco Xavier da Cruz:

Oli-me na meio di mar
Ta sigui nha distino
Na caminho di América.

É si triste dixá nha terra
Sima é triste dixá nha mãe.
Só bô bem morá na nha peito.
Dixá-m bai pa’m ca morrê.
Bai terra longe
É distino di home,
É distino sem nome
Qui nô tem qui cumpri.
Dicham sigui nha distino

Qui é distino di meu

Pa’m ba dixá nha mãe.

Só bô bem morá na nha peito.

Dicham bai, pa’m ca morrê...

Mas pouco se demorava Rodolfo em Maria Chaves, de tal modo o coração o atraía para Genebra, onde o prendia como um íman o fulgor de Jacinta, de quem mal podia despedir-se quando, após aquelas horas mais de olhar e empatia do que de conversa e razão, caindo o crepúsculo, a mãe Domitília batia ao de leve lá em cima com um manduco na barra de madeira da varanda, sinalizando a hora de regresso da filha aos aposentos.

Foram dois anos e meio de namoro, mas os horários cada vez mais espaçados e reduzidos, pois que quer Rodolfo quer Jacinta tinham de garantir os afazeres de casa e das quintas, apressaram, para gáudio de ambos, a marcação do casamento.

Jacinta e Rodolfo contraíram matrimónio na capela de Nossa Senhora do Socorro, em junho de 1901, aproveitando os festejos do S. João. Uma festa de arromba, facilitada pela retoma agora plena das colheitas e pelo número crescente de cabeças de gado, quer em Genebra quer em Maria Chaves, pese embora as perspetivas sombrias que de novo se desenhavam no horizonte. Uma boda que simbolizava, no dealbar do século XX, sem que os noivos, absorvidos pelo romantismo do namoro, disso se apercebessem, a ascensão dos crioulos e das mulheres na economia e na sociedade foguenses, uma vez que quer Domitília quer Ester, mulheres independentes, se tinham tornado terratenentes com posses de terras e sobrado, e promoviam agora a união de duas famílias burguesas com créditos firmados na ilha. Como não podia deixar de ser, marcaram presença na boda a mãe e as irmãs de Rodolfo; o pai de Jacinta, nhô Armand e a mãe Domitília; as 'tias' Jesuína, Clementina, Camila, Josefa, Antónia e Guilhermina, combossas[12] de Domitília; os edis e algumas personalidades de S. Filipe; e, naturalmente, todo o pessoal das quintas de Maria Chaves e Genebra, envergando as melhores roupas domingueiras, garantindo o serviço da receção, dos aperitivos e da mesa.

Nhuco, o berço de Rufino

Seguindo o aforismo popular segundo o qual “quem casa quer casa”, Rodolfo e Jacinta resolveram ir viver para Nhuco, onde o pai Diogo Henriques tinha adquirido em tempos uma casa de campo, há muito desocupada, por morte dos caseiros durante a fome de 1864, com uma pequena propriedade que descia do Monte até S. Lourenço, na margem direita da Ribeira de Paxangue. E foi ali que nasceram o primeiro filho, Zeferino, depois a Ricardina, que infelizmente viria a falecer com 14 meses, a Júlia, o Jorge. E foi em maio de 1911 que Jacinta deu à luz o quinto filho, Rufino, quando novas e importantes mudanças se começavam a sentir na política e na sociedade foguenses, reflexo da instauração da República na Metrópole.

Mas Nhuco, lugar de apenas três casas, era um oásis de sossego onde quase nada se passava, a não ser a faina do milho e do feijão, sem contar com as hortaliças e umas fruteiras, no campo da porta, carinhosamente amanhado por Jacinta, além das galinhas, de um ou dois porcos, e de meia dúzia de cabras, ao sabor da maior ou menor fartura dos pastos no declive do monte, onde eram mantidas, arredadas dos campos de cultivo, para ir abatendo ou vendendo quando chegasse o tempo, enquanto que Rodolfo se esmerava na produção de abundantes alqueires de milho e feijão, de que vendia em S. Filipe o que sobejava do consumo da casa, nos anos mais fartos, no final do verão, e em cuja faina era coadjuvado por alguns jornaleiros da vizinhança, que subiam de manhã cedo de Lugar Novo e de Pico Pires, trabalhavam com Rodolfo até ao meio-dia e recolhiam a casa para o almoço, ficando-se à tarde pelas próprias hortas.

Gruta de Monte Nhuco

A solidão aparente de Nhuco fomentava paradoxalmente, sobretudo nas crianças, uma atmosfera de mistério, que uma caverna no monte, mais acima, nutria de estórias mirabolantes de feiticeiras, ritos macabros de jabacouces[13] e mestres falsos, enfatizados nas descrições coloridas de Nha Cila, uma vizinha cinquentona de Aleixo Gomes, que fazia de parteira a Jacinta e vinha de vez em quando ajudá-la nas tarefas caseiras e da horta, e ao escurecer se sentava no terreiro, à luz de podogó,[14] com a meninência à volta, acomodada em pedras, perorando ela sobre o que se passava na gruta, feitiços protagonizados por cavalos e éguas, nascimento enigmático de bruxas, luzes de fachos e velas que se apagavam e deixavam às escuras e em aflição quem tentava desvendar a caverna, cabras que lá entravam e desapareciam… Ou a estória de um tal de José dos Santos, regressado da Merca, entrevado mas com dotes mágicos de curandeiro, que, de volta a Patim, exercia graciosamente poderes sobrenaturais, curando maleitas e revertendo algum mau olhado ou boca fédi a quem se socorria dos seus préstimos enigmáticos… Ou a estória da sereia Maria Condão, princesa desdenhosa; ou a dos três homens solitários e dos figos que fazem crescer cornos; ou ainda a de Aldraga Juliana e dos poderes dos três lenços mágicos…

A fixação dos olhares de Zeferino, Júlia, Jorge, Rufino e mais algumas crianças que subiam à casa de Nhuco, quando era dia de “stora stora”, no rosto expressivo e como que transcendido de Nha Cila só se desencantava quando ela, lá para as oito horas, já bem escuro, rematava a sessão do dia com a chave consagrada: “sapatinha ribêra riba, sapatinha ribêra baxo; quem qui sábi más ta conta midjôr”… Não era raro que Rufino, o mais pequeno da trupe, acordasse com pesadelos, nas noites das estórias mais intrigantes de Nha Cila… Nada que Jacinta e Rodolfo não remediassem prontamente aconchegando-o na sua cama. Escusado será dizer que a gruta de Gongon era cuidadosamente evitada, quando as crianças, e mesmo os adultos, iam tratar das cabras à encosta de Monte Nhuco…

Para quem não vivesse em S. Filipe ou nos Mosteiros, não era fácil proporcionar escola aos filhos, mas Rodolfo e Jacinta velaram para que já o Zeferino, e depois a Júlia e o Jorge frequentassem as aulas de aprender a ler, escrever e contar que o respeitável prof. Ildo Macedo, que lecionara na Escola de Santa Bárbara, na Brava, e se reformara no início do século, recolhendo-se à casa que tinha sido a dos seus pais, ali no Serrado, e que fora até um dos convidados do seu casamento, dispensava às crianças das redondezas, a troco de pequenas contribuições em géneros. Aos sete anos, Rufino começou assim a acompanhar o irmão Jorge a casa do professor, descendo pelo carreiro da calabaceira a caminho do Serrado. O professor Ildo era um homem austero e exigente, mas bondoso, e dedicava-se à meia dúzia de alunos como se continuasse afeto à Escola, aproveitando o adiantamento dos mais velhos para o coadjuvarem nas rotinas de aprendizagem inicial do abecedário, da tabuada e da caligrafia dos mais novos, sem no entanto deixar de seguir pessoalmente cada um e cada uma, que ajudava com desvelo. Funções que justificavam, com acerto, o prestigioso epíteto de que desfrutava na região, de Professor do Serrado. Chegada a hora de almoço, os que vinham de longe comiam com ele à volta de uma mesma mesa no quintal, na companhia da sua irmã Clotilde, que preparava sempre um miminho doce para completarem o que traziam de casa na lancheira. À tarde, Clotilde ensinava lavores às meninas, enquanto que os rapazes se exercitavam no desenho, na aprendizagem de rudimentos em algumas artes, e na horticultura, até às 5 horas, altura em que tomavam todos o caminho de casa, onde havia que chegar antes do anoitecer.

Tendo Rufino terminado a primária com brilhantismo, com prova final prestada em S. Filipe perante um júri vindo da Praia, o professor Ildo chamou Rodolfo, e procurou convencê-lo a enviar Rufino para S. Vicente, onde, por esse tempo, funcionava com sucesso o Liceu Nacional Infante D. Henrique, com professores formados no Seminário-Liceu de Ribeira Brava, em S. Nicolau, antes do virar do século, e mesmo com alguns vindos de propósito da Metrópole. ─ Que valia a pena, pois o garoto era inteligente, disciplinado e aplicado, argumentava.

Mas a família tinha crescido, com mais duas crianças, ainda pequenas, e além disso tinha decidido ir morar para a nova povoação de Portela, dentro da grande Caldeira, onde o clima era mais ameno no verão, e as perspetivas de voltarem ao cultivo da vinha eram prometedoras.

Adolescência na Caldeira

Assim, a adolescência de Rufino viveu-a ele na Portela com a família naquela imensa bacia entre o sopé do grande vulcão, a leste, a falésia abrupta de centenas de metros de altura da Bordeira a oeste e, contrastando com a negritude da lava que por todos os lados dominava a aldeia, a floresta cerrada e verdejante de Monte Velha, na vertente norte a descer para Mosteiros à razão de 30% de inclinação, mas prenhe de vida, onde a cultura de cafezais, milheirais e pomares sugeria a quem ali chegava que tivesse por encanto mudado de planeta.…

Monte Losna

Foram sete anos de labuta nos afazeres da terra, que a sul, no Monte Losna, coberta de uma camada de jorra negra, acolhia bons vinhedos, cobrindo vários hectares a exigirem cuidados periódicos, mormente o da poda em janeiro e fevereiro, e o da vindima em setembro e outubro, altura em que aquela paisagem, com o cone do vulcão em fundo, se revestia de tons pastel, com a folhagem até aí verde, escondendo pequenas bagas do mesmo tom, a colorir-se de vermelho, amarelo e castanho, e as uvas, em cachos gordos, de um preto-azul sedoso, a confundir-se com o chão, espalhavam pela jorra laivos de um paraíso terreal ali pintado como que por encanto, antes de as folhas caírem e de os cachos se converterem nos lagares de Bangaeira num manecon[15] digno de Baco…

No resto do ano, a faina desenrolava-se a norte, entre as ribeiras de Fonte Galinha e de S. Miguel, passado Monte Velha e abaixo do Monte Espia, nas encostas de Feijoal e Pai António, onde a família passava a viver, de maio a agosto, numa pequena casa de apoio, na altura de arar a terra, fazer a guarda das sementeiras, mondar, regar e fazer as colheitas do milho e do café, cuja torrefação era finalmente confiada à fábrica, nos Mosteiros.

Mas o Professor Ildo insistia junto de Rodolfo, sempre que ele descia à propriedade de Nhuco, para que enviasse Rufino, pelo menos para S. Filipe, aonde se haviam recolhido recentemente três preceptores acabados de voltar da Brava, onde ensinavam matemática e ciências e, como ele, se empenhavam em lançar na ilha sementes de um estabelecimento de ensino avançado, tal como os que já tinham feito história na Brava, na Praia, em S. Nicolau e no Mindelo.

No sobrado da tia Josefa

Sobrados em S. Filipe

Rodolfo acabou por ceder aos argumentos do Professor, tanto mais que os irmãos de Rufino iam crescendo e se iam arrumando na vida, os mais velhos já casados, e as crianças já crescidas. E assim Rufino desceu a S. Filipe no final do verão de 1927, quando tinha completado 16 anos, e foi morar no Alto de S. Pedro, no sobrado da tia Josefa, a tempo de se incorporar no grupo de adolescentes e jovens que diariamente afluíam lá, já que a tia cedera uma sala e um espaço-biblioteca para servirem de Escola. Era um pequeno grupo de uma dezena de rapazes e raparigas, filhos dos proprietários mais abastados da ilha, que acorria diariamente às aulas dos mestres: Januário Vicente, que lecionava história e geografia; Maria Francisca Morais, professora de francês e de língua portuguesa; e Raul Brasão, docente de matemática e ciências físicas e naturais. Os horários eram limitados, uma vez que por um lado os docentes eram reformados, com hábitos de vida mais pacatos, e aos alunos, os pais distribuíam afazeres que não podiam ser descurados. De manhã, a Escola, improvisada mas efetiva, funcionava durante três horas, das 9 ao meio-dia, com um intervalo a meio, e reabria ao escurecer, pelas 6 da tarde, até à hora de jantar, pelas oito e meia da noite. Já espigados e conscientes do privilégio que tinham em poderem estudar, os jovens eram incitados pelos Mestres a completar em casa, à tarde ou à noite, os deveres que lhes passavam…

Se para quem vinha de fora da ilha a cidade de S. Filipe se apresentava pacata e dolente, para quem, como Rufino, passara a infância no sossego de Nhuco e a adolescência na Chã, aquela urbe afigurava-se-lhe feérica e buliçosa, comparada com a Caldeira, com o céu por horizonte, ou entre as vinhas do Monte Losna e os cafezais na ladeira sobranceira aos Mosteiros, onde os ruídos pouco mais eram que o cantar dos galos na alvorada e o ladrar ocasional dos cães, fora os serões esporádicos de alguns sábados à noite em que nhô Mané di Fidjinha subia de Achada Maurício à Portela, galgando Monte Velha, e juntava o som melodioso das cordas do seu violino, que fora trazido a Atalaia por Nhô Armand, ao reco-reco e ao chocalho, manejados por dois moços de Bangaeira, que ritmavam a dança do talaia-baxo,[16] somando-se também os acordes do violão de Zeferino, que se tinha tornado um exímio executante, num todo que sugeria um misto de géneros clássicos europeus, como a valsa ou a mazurca, com influências oriundas do continente ao lado, de géneros como o lundum[17], ou a nova moda que emergia na vizinha ilha-mãe, o funaná[18]  

Violinista - Bangaeira

O dia-a-dia em S. Filipe revelava-se-lhe crepitante, cavaleiros a trote e até a galope cruzando constantemente a cidade; carros de bois e carroças puxadas por mulas, carregados, com os rodados a chiar, trazendo produtos da terra do interior para o mercado, ou bagagens e mercadorias do Fortim, quando chegavam barcos da Praia; os pregões das vendedeiras de fruta e fatiota[19]; a algazarra das crianças brincando nas praças e terreiros… E às noites de sábado e tardes de domingo, o Alto de Aguadinha enchia-se de gente em trajes domingueiros a conversar animadamente, a ouvir trechos de música clássica e das novas criações locais ou importadas, e a dançar ao ritmo de uma pequena filarmónica que ali se congregava, e desfilava, sem se cansar, marchas, mornas, talaia-baxo, rabolo, mazurcas, chorinhos

Entre toda aquela agitação, à qual de resto Rufino se habituaria depressa, o trote compassado dos cavalos na calçada e aquele porte garboso dos animais, variando a passada e a direção, ensaiando galopes, ou estacionando, consoante as diretivas transmitidas pelo cavaleiro com as rédeas e as esporas, calou profundamente na sensibilidade de Rufino, que depressa convenceu a tia Josefa a dar instruções ao Paulino, um dos melhores cavaleiros do sobrado, a fazer-lhe a vontade, preparando-o para ascender à honra da cavalaria. Na festa de S. Filipe do ano seguinte já Rufino apareceu como estribeiro[20] de Paulino nas corridas, e aos 18 anos já dominava a arte de montar, só não participando nas cavalhadas porque só quem adquirisse o estatuto de cavaleiro o podia fazer, além de que tinha de dar provas de outros atributos que exigiam tempo de tirocínio. Mas não deixou mais de se manter próximo daquele mundo restrito que em S. Filipe era reservado aos cavaleiros e ao papel que lhes era confiado nas festas das bandeiras. Enquanto não podia participar nas corridas, Rufino inscreveu-se como canizade[21] e durante três anos fez parte do grupo que tomava a bandeira da festa de S. Filipe, a 30 de abril, em casa do festeiro,[22] percorria as ruas e as casas de S. Filipe com ela, descia à praia de Boqueirão, para cumprir um rito que consistia em molhar no mar a base do pau da bandeira, guardá-la ali até perto do alvorecer e entregá-la ao festeiro no início do dia da festa (1 de maio).

De Canizade a Cavaleiro

Aos 21 anos Rufino cumpriu o desígnio que o apaixonava desde que chegara a S. Filipe: preencheu o requerimento em folha de papel azul de 25 linhas conforme os regulamentos de candidatura a cavaleiro, entregou-o na Câmara à Comissão Arbitral Orientadora das Festas de Bandeira, provou que era idóneo para a cavalaria, pois tinha comportamento comprovadamente irrepreensível, correto e respeitoso, dispunha de vestes a rigor, não se embriagava, era católico praticante. A sua candidatura foi aceite, e o respetivo registo ficou guardado na Câmara, abrindo-lhe caminho à participação como cavaleiro em todas as cavalhadas da ilha a partir de então.

Cavaleiro - Festas em S. Filipe

Por outro lado, Rufino terminara com bom aproveitamento o ciclo de aulas ministradas em S. Filipe, e ainda foi a S. Vicente em julho de 1932, na companhia do professor Januário prestar provas no Liceu Velho, onde conseguiu aprovação em todas as disciplinas, exceto em inglês, que tinha aprendido apenas em conversas com emigrantes retornados da América, faltando-lhe teoria gramatical. Mas voltou logo a S. Filipe, por um lado porque a tia Josefa lhe tinha confiado a gestão da loja, no sobrado, também porque a paixão pelos cavalos e pelas festas das bandeiras o prendiam cada vez mais, mas sobretudo pela paixão que contraíra por Laidinha, uma colega das aulas no sobrado, filha de um dos vereadores da Câmara, de seu nome Vasconcelos.

As duas décadas que se seguiram foram para Rufino Henriques ao mesmo tempo laboriosas e rotineiras, depois de casar com Adelaide Vasconcelos, de quem veio a ter 7 filhos, com o abastecimento e as vendas da loja a absorverem-lhe os dias, viagens frequentes a Genebra, onde a sogra, já idosa, tinha passado a gestão da herdade para um feitor; a Chã, onde os pais, irmãos e cunhados prosseguiam na exploração das vinhas em Monte Losna e dos cafezais e hortas no Feijoal, alternando com a herdade de Nhuco, que tinham cercado de um extenso tapum[23] e transformado em quinta pecuária; ou mesmo a Achada Maurício, onde a tia Clementina continuava a gerir os campos, após a morte do Conde.

Cafeeiro

Os meses mais animados de cada ano eram invariavelmente os de maio e junho, com a sucessão das festas das bandeiras na cidade (1 de maio, 24 e 29 de junho) e na Queimada a 6 de maio, sem contar a de Nossa Senhora do Socorro, em Genebra, no mês de outubro, e a de S. Sebastião, ainda em S. Filipe, mas em janeiro, na altura em que se constituíam as Confrarias e Reinados,[24] que partiam durante mais de um mês pelo interior de toda a ilha. Só entre 1941 e 1943, e depois em 1947 e 1948, com as últimas grandes secas, que provocaram milhares de mortos na ilha, pela fome e epidemias que desencadeou, é que não foram celebradas as bandeiras.[25] Mesmo a erupção do vulcão de junho de 1951, que destruiu algumas casas em Bangaeira, na Caldeira e em Cova Matinho, com a lava a escorrer dos montes Orlando e Rendall, acabados de se formar, não afetou a festa de S. Filipe, pois já tinha ocorrido antes…

De Cavaleiro a Festeiro

Rufino tinha 44 anos quando, no ano de 1955, decidiu tomar a bandeira de S. Filipe da mesa do júri da festa, na tarde do 1º de maio, das mãos do Presidente da Câmara, responsabilizando-se assim pela organização da Bandeira do ano seguinte, 1956. Não era para qualquer um, tendo em conta o denso historial desta festa tão marcante desde tempos imemoriais, com um peso histórico, religioso, social, artístico e emocional, que juntava a tradição veiculada pelos nobres vindos da Metrópole no século XVI, para os quais uma bandeira, fosse da Nação, da Câmara ou de um dos muitos santos populares, tinha foros de algo sagrado, transcendental, ao ritual do pilão, tornado ícone da vertente cultural africana, tudo caldeado na argamassa de simbioses, aculturações e erupções criativas que as festas das bandeiras foram agregando. Houvera mesmo um longo período, no início do século, em que a bandeira de S. Filipe permanecera ‘enterrada’ na igreja, por receio dos virtuais candidatos a festeiros de incorrerem num mau olhado que o último tinha lançado ao entregá-la, com ameaça de morte para quem ousasse ‘desenterrá-la’… E foi graças a um grupo de jovens destemidos, que se intitulou de Sete Estrelo, que em 1917 a bandeira voltou a ser ‘desenterrada’ e as festas anuais retomaram o seu curso…

Ombrear com nomes como João de Sousa Macedo, Manuel Ribeiro de Almeida, Alberto Gomes Barbosa, Pedro Gomes Barbosa, João Emílio Leite ou o próprio tio António Henriques era uma responsabilidade para a qual dispunha de um ano para se preparar. Mas Rufino tinha todas as condições para superar o desafio: dispunha do usufruto de um dos melhores sobrados de S. Filipe, transacionava na loja boa parte dos bens agrícolas e pecuários que eram produzidos nas herdades de Genebra, Monte Losna, Feijoal, Nhuco e até de Achada Maurício, dispunha de um excelente grupo de empregados, e sobretudo dominava de fio a pavio os meandros algo complexos da organização da festa, que ao longo de treze anos tinha acompanhado bem por dentro, como cavaleiro experimentado que já era, pois ganhava regularmente corridas, na velocidade e na perícia de enfiar argolas em vara ou de colher grinaldas com a cabeça, em andamento, ou mesmo na corrida das rosas, em que dois cavaleiras galopam de mãos dadas.

Nos finais de abril de 1956 tudo estava a postos: uma verdadeira colina de trinta alqueires de milho pronta a pilar no quintal; um touro alentado e luzidio de 2 anos e 4 bodes capados, trazidos de Nhuco para abater; oito rapazes prontos para o canizade; uma boa dezena de cavaleiros preparados para as cerimónias da bandeira e para as corridas; dois grupos de três coladeras[26] comandadas por Nha Idalina e Tintina de Mané di Bedja e três tamboreiros, bem ensaiados, liderados por Titchiti e Valdomiro Dias; Papa Querena, aos comandos das colexas[27]; garrafões de grogue, dois pipos de manecon da última colheita, trazidos da adega de Bangaeira, dois grandes pilões e respetivos grupos de três "cochideras"…

Cochideras

As piladeiras começaram o trabalho no dia 24 de abril, terça-feira, à tardinha, a uma semana da grande festa, e assim prosseguiram ao cair da noite dos dias seguintes, até sábado. Como manda a tradição, não estavam sozinhas no terreiro do sobrado. Coladeiras, tamboreiros e tocadores de colexa revezaram-se, e todas as noites o Largo de S. Pedro transbordou de animação, pois cá fora juntava-se o povo a ouvir os briais[28] das coladeiras, os tambores e o ritmo ternário dos pilões, que a dois perfaziam um compasso de seis por oito, num clima influído que só se gerava por ocasião das festas, e que foi crescendo ao longo da semana até atingir o transe, próximo do delírio, tanto mais que o ritual dos pilões ora coincidia ora alternava com atuações do grupo de músicos que Rufino mandara vir de Achada Maurício, os mesmos que em tempos subiam ao bar de Bangaeira, tocando e cantando com sentimento talaia-baxo, chorinho e rabolo[29], grupo esse a que se juntaram Zeferino e Jorge, os irmãos mais velhos de Rufino, que se tinham tornado nos músicos habituais dos serões da Chã no bar de Bangaeira. Mas o grande animador das festas de S. Filipe em 1956 foi Minó di Mamá, um repentista, exímio tocador de talaia-baxo, então com 39 anos, que além de executante era excelente animador, não deixando de observar, quando via que o grogue ou o vinho estavam a faltar: “paviu seco ca ta cendê”; ou lançava, à atenção dos numerosos emigrantes que vinham da América à festa: “ai Merca, ai dóla, ai mamá”, um apelo às notas verdes, que iam entrando no balaio postado à sua frente para o efeito… Até a sua mãe, “Miôda”, marcou presença na festa, juntando-se às coladeiras…  Foi nesse ano que se tornou popular o rabolo que melhor traduz a fartura gastronómica das festas de Bandeira, de que um trecho reza assim:

É quel djagacida.

Quel café cu lêti,

É gofongo midju,

É quel quêju árbu[30]

Pa bu trâ di sintchu[31].

É quel cabidela

Di sangui cabritu,

É dipôs quel cárni,

Oi, quel cárni fritu,

É quel djagacida

Cu quel modju sábi…

Canizade com pau da bandeira

No domingo, antevéspera do dia do santo, o ambiente em S. Filipe estava ao rubro para o início da grande festa. Os rapazes do canizade já enfeitaram o mastro com ramagens verdes e flores, e passeiam pelas ruas com ele, em ambiente alvoroçado e festivo, entram nas casas para conviver com as famílias, e depois o cortejo desce à praia do Boqueirão para cumprir o ritual de molhar o pé do mastro na água do mar, e volta a subir à cidade, onde a festa rija bate o clímax, e prossegue até segunda-feira de manhã. 

Depois de irem descansar, é após o almoço do dia 30 que começa uma sequência de rituais, com os cavaleiros, tamboreiros e coladeiras a deslocarem-se sucessivamente da casa de Rufino, o sobrado de D. Josefa, à Câmara Municipal, depois à Igreja, de novo ao sobrado, e pelo meio fazem ainda duas corridas, espécie de ensaio para as cavalhadas do dia seguinte. À noite é ateada a grande fogueira no adro da igreja, com ramos secos de calabaceira, dragoeiro, tamarindo e poilão trazidos de Monte Velha, ao mesmo tempo que em outros largos da vila se acendem lumnaras[32] mais pequenas que quem pode tenta saltar, como forma de esconjurar maleitas, tratando de recolher no final alguns punhados das cinzas para atirar aos cantos da casa no fito de afastar maus agouros durante o próximo ano.

Na terça-feira, o dia grande começou ao cantar do galo, com o rufar dos tambores e foguetes a estralejar. Às 8:30 as coladeiras lançavam briais “di cabalêru” que servem de voz de comando aos cavaleiros para reunirem, e irem, montados, sempre ao som dos tambores, tomar a bandeira na casa do festeiro, depois descerem à Câmara Municipal a obter nova autorização do Presidente para as corridas, acontecendo logo ali a primeira do dia; o grupo desce um pouco mais, ao local da antiga capela de S. Filipe, onde os cavaleiros recebem grinaldas de ramos verdes, e, descendo ainda mais à praia do Boqueirão, ali fazem a segunda corrida do dia, na qual os cavalos são conduzidos a molhar os cascos na água. Segue-se o pequeno-almoço de cavaleiros, tamboreiros e coladeiras, trazido em cestos pelos porta-bandeiras do interior da ilha. Depois todos subiram à Igreja Matriz para a missa, cumprindo-se diversas praxes oficiadas pelos cavaleiros, em modo de guarda de honra, e de seguida a procissão, em marcha lenta, encetada pelo respetivo brial das coladeiras, de pronto secundado por tamboreiros e cavaleiros…

Tamboreiro e Coladeira

Após uma terceira corrida, os cavaleiros foram convidados a subir ao primeiro andar do sobrado, para almoçarem com os grandes da terra, enquanto no quintal foi servido cherém com djigoti[33] aos tamboreiros, coladeiras, piladeiras, colexeiros e porta-bandeiras, e a dezenas de populares que também se apresentaram para o repasto.

De tarde, os cavaleiros foram envergar os trajes de jockey, enquanto os estribeiros ficaram de guarda aos cavalos, e, pelas quatro da tarde, sempre ao som dos briais e dos tambores, dirigiram-se de novo à Câmara a solicitar uma última vez autorização, agora para o início da grande corrida, no Alto de S. Pedro. Foram doze os cavaleiros que concorreram nesse ano, com provas de velocidade e de perícia (singulares, de mãos dadas, de grinalda a recolher de cabeça, de cestos e de outras habilidades demonstrativas de domínio da arte de cavalgar…). As competições terminaram ao escurecer, com a entrega da bandeira na mesa do júri, que a enrolou e ficou a aguardar quem se apresentasse como festeiro para 1957.

O prestígio de Rufino Henriques subiu ao mais alto com as festas de 1956, e o brilho foi tanto mais intenso quanto, paradoxalmente, ninguém levantou a bandeira nos anos que se seguiram, certamente por temor dos potenciais candidatos da inevitável comparação que o povo sempre faz entre a prestação dos festeiros de um ano para outro. Mas nem por isso Rufino procurou tirar daí dividendos pessoais; pelo contrário, foi sempre encorajando os amigos a avançarem e levantarem a bandeira na igreja, prometendo mesmo ajudar quem se decidisse a organizar a próxima festa.

Entre os quarenta e cinco e os sessenta anos a vida de Rufino prosseguiu no sobrado em S. Filipe, com a loja a fervilhar de atividade, não só mercê do incremento da produção agrícola (sobretudo as culturas de Curral d’Ochô e Maria Chaves, cuja área se foi estendendo a Lapa Cavalo e Lavrada, subindo até Miguel Gonçalves; mais acima, os vinhedos e pomares de Monte Losna; a norte, os cafezais de Feijoal; e a noroeste os milheirais de Ribeira Ilhéu e Achada Maurício; não esquecendo a herdade de Nhuco, que entretanto se tinha alargado a Aguadinha, dinamizada por Hermenigildo e os outros irmãos que Rufino deixara na casa paterna), como também com o aumento de transações com os géneros e os materiais de construção importados que chegavam regularmente à praia do Boqueirão.

Em busca das origens

Com alguma regularidade Rufino viajava à Praia, em negócios com clientes das produções que exportava e com fornecedores dos géneros e materiais que importava, e de ano a ano deslocava-se à Metrópole, para onde tinham partido as duas irmãs mais novas, Clotilde e Maria Alice, prosseguir estudos, e onde aproveitava para averiguar os sítios e os arquivos relativos às origens do seu bisavô Marcelino José, uma investigação que o levou sucessivamente a conhecer os 47 quilómetros do rio Távora, desde Trancoso à foz no Douro, entre a Régua e o Pinhão, e a consultar arquivos vários, na Torre do Tombo, em Lisboa, no Solar dos Távoras, na aldeia de Souro Pires, em Pinhel, ou nas Câmaras Municipais da Guarda, de Viseu e de Lamego. Ficou a saber que as suas raízes remontavam a Ramiro II, que fora rei de Leão no longínquo século XI, e foi descobrindo com emoção nomes da sua linhagem como Rozendo Hermingues (séc. XII), Álvaro Pires de Távora (séc. XIV), Luís Álvares de Távora (séc. XVI) ou D. Francisco de Távora (sécs. XVII/XVIII), que foi vice-rei da Índia. Não conseguiu evitar as lágrimas quando descobriu os seus trisavós, D. Francisco de Assis de Távora, Conde de Alvor, e D. Leonor, Marquesa de Távora, e percorreu-lhe um arrepio dos pés à cabeça quando leu que haviam sido mandados matar os dois por Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, valido do rei D. José I, quando tentou liquidar toda a família dos Távoras, alegando que tinham atentado contra a vida do soberano… O Marquês de Pombal, afastado de Lisboa para Santarém pela filha de D. José, D. Maria I, nunca suspeitou porém que a rainha tivesse protegido Marcelino, seu afilhado, e que a linhagem dos Távoras tivesse vingado na insuspeitada ilha do Fogo com o pseudónimo de Henriques… Afinal, Rufino era filho, neto, bisneto, trineto e mais além numa linhagem nobre, por parte do pai, e os seus filhos herdavam igualmente a condição nobre pelo lado da mãe Jacinta… Rufino perguntava-se porque é que o pai nunca tinha, que ele se lembrasse, abordado com clareza as suas origens, embora pairasse no ar da casa de Nhuco uma espécie de tabu, em referência a crueldades vividas por antepassados, mas que Rufino e os irmãos associavam vagamente às estórias de gongon[34] da gruta do monte. Talvez a explicação estivesse simplesmente no receio, por parte de Marcelino, perpetuado pelos filhos e netos, de que os horrores passados pelos Távoras naquela atmosfera de despotismo da segunda metade do século XVIII em Portugal pudesse pôr em causa o sossego da redenção que Marcelino recebera de prenda de D. Maria, e ele tivesse decidido fazer prevalecer uma espécie de voto de silêncio…


Quando acabou de deslindar as suas origens, Rufino trouxe de Souro Pires o brasão dos Távoras, e jurou – palavra de cavaleiro - que haveria de vingar os seus maiores, retomando o nome, e tornando-o perene num sobrado que ele ou a sua descendência iriam erigir, réplica do Solar dos Távoras, com o respetivo brasão à entrada, acrescentado das efígies da Ilha do Fogo e do seu cavalo predileto.


Brasão para o Solar de Nhuco

O raiar do Turismo na ilha

Nos anos oitenta do século XX começou a chegar à ilha do Fogo uma clientela até então pouco vista: os turistas. Eram sobretudo franceses, mas também italianos, portugueses, alemães e mesmo alguns nórdicos.

Rufino já não se detinha muito na loja, mas interessou-se por esta nova clientela e sempre que se apercebia da presença no Alto de S. Pedro de gente de fora metia conversa, tanto mais que dominava razoavelmente o francês, conversava o suficiente em inglês e, é claro, lidava muito bem com o português e com o crioulo. Ao ponto de passar a ser solicitado sempre que havia um grupo de visitantes, e até de personalidades individuais a quem era preciso mostrar S. Filipe ou acompanhar numa excursão a Chã das Caldeiras, aos Mosteiros ou à Ponta de Salina. Afinal tinha a vida orientada, o que mais ambicionava era que a sua ilha progredisse, e esta convivência ocasional e enriquecedora com gente de fora que se dava ao trabalho de vir ao Fogo parecia-lhe um bom investimento pessoal, embora não quisesse receber nada em troca a não ser a boa convivência e grangear novas amizades.

Alto de Aguadinha

O ponto de partida da visita a S. Filipe, que Rufino começava por informar com orgulho ter ascendido de vila a cidade quando tinha 4 anos, era sempre o Alto de Aguadinha, de onde é fácil abarcar toda a estrutura da cidade, entre as ribeiras de S. João, a sul, e da Trindade, a norte, contemplando daí o colorido das varandas, das buganvílias, das acácias rubras, e espraiar a vista no azul profundo e sonhador do mar, até à Brava… Em poucos minutos descia-se dali ao Largo da Cruz dos Passos, onde Rufino explicava que por tradição é pousado o caixão nos funerais sobre a mesa de pedra lá disposta na base da cruz para esse fim, a caminho da igreja, para repouso dos portadores e como azo a uma oração pela alma do defunto; mais alguns minutos e está-se no Alto de S. Pedro, o sítio de maior concentração de sobrados, incluindo o de Josefa e de Rufino, um espaço longo e amplo, e por isso palco central para as corridas de cavalos nas festas das diversas “bandeiras”, assunto que Rufino se comprazia particularmente em explanar, e que os visitantes apreciavam sobremaneira, tal era a minúcia e o colorido com que descrevia cada pormenor das festas tradicionais da cidade, não fora ele um dos seus já históricos atores, primeiro como canizade, depois como cavaleiro, e finalmente como festeiro. 

Praça João Paes de Vasconcelos

A dois passos, transitando da “bila riba” para a “bila baxo”, está a Praça João Paes de Vasconcelos (Governador da Província de 1882 a 1886), com o imponente edifício da Câmara Municipal no topo e o coreto ao meio, e, ali perto, o mercado, apelando a uma visita obrigatória, uma das preferidas dos turistas, que ali gostam de apreciar de perto os produtos da terra, trazidos das fazendas do interior, desde a mandioca aos diversos feijões (bongolon, sapatinha, rajado, congo, fradinho…), café em grão torrado na hora, frutas da terra (uvas, bananas, maçãs, marmelos, papaias, mangas, caju, pinha, limas, goiabas…), ervas aromáticas, coco, cana-de-açúcar e, claro, o peixe chegado fresquinho da praia do Boqueirão, ali em baixo (bidion, gaiado, bica de areia, bicuda, cavala, pelombeta, charroco, fatcho, esmoregal, façola, bonito, garoupa, luciano, badejo, moreia, corcovado, pósse – peixe voador -, enforcado, serra…).  E descendo um pouco, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, a igreja-matriz. A visita continuava para o Largo Pato Moniz, um espaço amplo com canteiros e bancos; descia-se então à Praça do Presídio, onde tinha sido erigido um pedestal com o busto do General Craveiro Lopes, Presidente da República Portuguesa, em comemoração da vista que fizera à cidade em 1955. Em frente à rampa de descida à praia, a Praça do Presídio é o miradouro por excelência da cidade de S. Filipe, em frente à ilha Brava e aos ilhéus Rombos, e de onde se observa, sem outros obstáculos de permeio, o pôr-do-sol por detrás da ilha vizinha. Mas era apenas o meio da visita à cidade, pois havia que passar ainda pelo Largo Pedro Monteiro Cardoso, pelo Largo da Cadeia Civil (construído em homenagem à rainha Carlota Joaquina, mãe de D. Pedro IV, primeiro imperador do Brasil), e pela praceta junto ao tribunal, com a rosa-dos-ventos e o padrão, todos sobranceiros à Praia Fonte Vila. E o programa da visita de Rufino terminava com a subida da rua do Hospital S. Francisco de Assis e, desde que abriu, um beberete de confraternização junto à piscina do novíssimo hotel Xaguate.

Hotel Xaguate

De volta a Nhuco

Aos 65 anos, aposentado e com a família bem encaminhada, com o país festejando efusivamente a independência, Rufino passou a alimentar três novos sonhos que dariam sentido e esperança a um futuro que ainda antevia longo e promissor.

A vida tinha-lhe confirmado à saciedade o acerto do aforismo de que “quem porfia sempre alcança” e, pese embora ter usufruído desde a juventude do solar da tia Josefa, decidiu que construiria o seu. Seria em Nhuco, lá onde nasceu, mesmo na encosta do monte, dominando os povoados que encheram a sua meninice e de onde conseguia até enxergar os baixios de Rui Pereira, responsáveis pela fixação na ilha do seu bisavô, e a capela de Nossa Senhora da Luz, que ele tinha mandado construir, e cuja bandeira ele, Rufino, se dispunha agora a fazer ressurgir. Haveria mesmo de restaurar e resgatar a própria nobreza, assumindo de novo o nome, martirizado e esquecido, dos Távoras, e colocaria bem alto, no frontispício de entrada, o respetivo brasão, cujos azimutes trouxera de Souro Pires.

Outra ideia com que foi tecendo os seus sonhos foi a de uma via rápida de circulação à ilha, que ligasse, ampla, direita e plana o bastante, com os túneis e pontes que fossem necessários, Bela Vista a Tongon, S. Lourenço, Italiano, Mira Mira, Ribeira Filipe, Baluarte; baixasse a Ribeira Ilhéu e Fajãzinha; circundasse Mosteiros por dentro; prosseguisse por Lagoa Atrás, Corvo, Achada Grande, Relva; galgasse as ribeiras secas de Fonte Pedra, Caiada, Coxa de Baleia e Nha Lena; e subisse de novo a Tinteiro, Espigão, Cova Figueira, depois Figueira Pavão, Dacabalaio, Achada Poio, Salto, Patim, Forno, Vicente Dias e de novo Bela Vista. Uma circular que deveria ser complementada com as necessárias radiais, desde logo uma de Lugar Novo a Praia Ladrão; outra de Ribeira Filipe a S. Jorge e Ponta Salina; uma terceira, ascendente, que subiria de Mosteiros a Feijoal e Bangaeira; depois, a sudeste, uma de Cova Figueira a Ponta da Fajã; a sul, uma ligação desafogada subindo de Salto a Monte Largo, a Achada Furna, Cabeça Fundão, até Portela, fechando a ligação a Bangaeira; ainda, a sudoeste, outra descendo de Patim a Genebra e Nossa Senhora do Socorro; mais além ainda outra, subindo de Vicente Dias a Coxo e Miguel Gonçalves; e finalmente, uma ligação com duas vias e separador, baixando de Bela Vista a S. Filipe. Afinal, o seu avô desbravara a rede rodoviária da ilha, e havia que merecer a condição de seu herdeiro e continuador, se não já pela sua mão e da mão de Jacinta, que fosse pela dos filhos, que entretanto tinham crescido, estudado, e estavam de peito forte preparados para continuar o caminho em novos patamares de progressão.

Cabeça Fundão

Finalmente, o terceiro sonho de Rufino, mais abrangente, sabia ele que não seria para os seus olhos contemplarem, quiçá nem para os dos filhos, talvez fosse mesmo uma utopia, pois tinha consciência de quão difícil seria quebrar barreiras, tão diversas quanto embrenhadas, desde o isolamento às forças da natureza, à burocracia, aos medos, aos preconceitos, e até às invejas, que tão amiúde travam o passo a quem quer andar…

Postado na varanda do seu sobrado em Monte Nhuco, saboreando com Jacinta postas de moreia frita regada com uma Strela bem fresca, contemplando o Atlântico, imaginando o navio que trouxera o seu bisavô a abortar a sua rota ali em frente, contra aquelas rochas de Rui Pereira, revendo o rumo traçado pela sua madrinha para o Brasil, entretanto gorado, Rufino intuiu que ele próprio, depois dos seus maiores e de todos quantos povoaram e iam enchendo a sua vida, cumpria um destino cujo futuro não conseguia abarcar, mas de que os seus filhos e todas as pessoas que criavam e desenvolviam vida na ilha haviam de tirar tanto mais proveito quanto ele fosse capaz de cumprir a sua quota parte, na mesma medida ou mais ainda de como tinha consciência de a ter cumprido até então. E percebeu que o seu papel a partir dali era uma espécie de magistério de influência, despertando nas mentes e vontades dos seus e de quem quer que o visitava em Nhuco, horizontes de criatividade e de ação suscetíveis de lograrem, ao menos a médio prazo, vencer aquelas temíveis barreiras.

Mapa-resumo da Ilha do Fogo

Sabia que a primeira condição sine qua non para haver disrupção do status quo da ilha era a acessibilidade, e daí o plano rodoviário que gizara, e que já deixara escrito, à atenção dos filhos, em especial do Miguel, acabado de se formar em engenharia. A montante, haveria que melhorar substancialmente quer o aeroporto de S. Filipe, quer a pista de Mosteiros, esta mais vocacionada para emergências, com agregação de um heliporto, devendo ser instalados outros dois, em S. Filipe e Chã das Caldeiras. O porto de Vale de Cavaleiros devia ser melhorado nas suas estruturas, incluindo uma gare marítima e um molhe para cruzeiros de médio porte. Na Salina e nos Mosteiros, achava que podiam ser construídas pequenas marinas, que atraíssem o mercado florescente de iates de recreio. E a jusante, uma rede de miradouros, como por exemplo na Falésia de N. Sra. do Socorro, em Espigão, Gudo, Mosteiros, Ponta da Salina, Cabeça Fundão ou Bordeira. Outra rede altamente transformadora seria a instalação de Centros Interpretativos, esses espaços híbridos agora na moda que em breves apresentações enquadram o visitante na zona circundante, fornecendo-lhe informação detalhada e padronizada, com particular atenção à importante vertente ambiental, e onde também se pode adquirir artesanato e literatura local, consumir uma bebida ou petiscar gastronomia regional, em algumas localidades polares como S. Filipe, Cova Figueira, Chã das Caldeiras (específico para o vulcão) ou Mosteiros, pontos esses que funcionariam ainda como pontos de partida para programas de trekking[35], por exemplo,

  • Ø  Cova Figueira /Chã /Mosteiros, um percurso para uns três dias, pernoitando em tendas ou em Alojamento Local;
  • Ø  Mosteiros /Monte de Nhu S. Filipe /Farol /Praia da Fajãzinha (1 dia);
  • Ø  Cova Figueira /Praia Grande /Baía de Alcatraz /Farol (1 dia).
  • Ø  Chã das Caldeiras /Monte Velha (Fernão Gomes).

Toda uma panóplia de excursões panorâmicas, com paragens em pequenos povoados, para dessedentação, recolha de imagens, compras e convívio seria ainda possível organizar sem grande esforço, e Rufino apontou algumas:

  • Ø  S. Filipe /S. Lourenço /Ponta Verde /Galinheiro /Ponta da Salina.
  • Ø  S. Filipe /Patim /Salto /Dacabalaio /Cova Figueira /Fonsaco /Mosteiros.
  • Ø  S. Filipe /Forno /Luzia Nunes /Monte Genebra /N. Sra. Do Socorro.
  • Ø  Dacabalaio /Alcatraz /Farol.
  • Ø  Figueira Pavão /Praia da Fajã (dia de praia).

Diversos programas temáticos deveriam também ser montados, como visitas às caves da ilha (Maria Chaves, Chã, Sodade); visita aos cafezais e respetivas unidades de torrefação; ou circuitos gastronómicos, valorizando os restaurantes que se iriam certamente instalando ao longo da via circular ou das radiais.

Poderia por outro lado ser montado um circuito marítimo, recorrendo a uma embarcação apropriada e cómoda, facultando a observação dos pontos mais significativos da costa, desde a Falésia de N. Sra. do Socorro a S. Filipe, Farol de Vale de Cavaleiros, Ponta da Salina, Morro Djeu, Praia da Fajãzinha, Mosteiros...

Uma visita guiada a S. Filipe, tal como tantas vezes Rufino já acompanhara, seria, é claro, parte indispensável de qualquer cardápio turístico, incluindo naturalmente, além dos pontos de maior interesse urbano e paisagístico, não só o Centro Interpretativo, como a Casa da Memória, a Casa das Bandeiras, o Museu do Emigrante, o Polo Universitário do Fogo…

Outros programas estruturantes preconizava Rufino, a quem a provecta idade, já transitando para o século XXI, não tolhia a imaginação nem as aspirações, entusiasmado com os vastos horizontes trazidos pelas novas tecnologias de informação e comunicação, como o de um Plano de Marketing devidamente integrado com as restantes ilhas, que desse a conhecer nos diversos meios disponíveis, físicos, sociais, em eventos nacionais e internacionais, ou digitais, tudo o que a ilha tem para partilhar com quem a queira vir conhecer de perto; o da formação adequada de guias turísticos, e de um programa de audioguiamento assistido por GPS que garantisse informação adequada, certificada e cómoda, em várias línguas, aos visitantes, desde logo no transfer de chegada, e depois nas diversas excursões disponíveis e, é claro, nos Centros de Interpretação;  o da formação de artesãos, devidamente instruídos em design criativo; a definição de novas reservas naturais, terrestes e marítimas; um Plano Integrado de Emergência para desastres naturais, tendo em conta a especificidade marcadamente vulcânica da ilha; e um plano completo de instalação de painéis toponímicos e interpretativos que fornecessem aos visitantes uma informação explícita, assertiva e clara da geografia, da história, da fauna, da flora e de outras facetas ambientais da ilha.

Parecia-lhe particularmente imperdoável que não se aproveitasse a altitude da ilha e a excelente visibilidade da Bordeira para ali se instalar um Planetário, por exemplo no Alto da Cumeeira (2.469m) ou na Bordeira de Cova Tina (2.220m).

E deixou a ideia da instalação em S. Filipe de um Museu da Emigração, que testemunhasse as experiências-limite dos que, como seu pai, tiveram que deixar a ilha sem certezas para o futuro, e que fosse também um símbolo, em contraponto, de presença da diáspora na ilha, com tudo o que ela tem como potencial de ligação entre as realidades diversas criadas pelos fluxos migratórios nos diversos tempos e para as diversas geografias, e sobretudo na geração de atratividade para o regresso à terra das gerações sucedâneas, certamente enriquecidas de valências diversas, quem sabe, capazes de concretizarem o que Rufino sonhava como vagamente utópico…



[1] aculturados

[2] Por bula de Eugénio IV de 9 de janeiro de 1442 são concedidas à Ordem de Cristo as terras a descobrir, em permuta pela respetiva evangelização

[3] Cobrador de impostos

[4] Capitão do porto

[5] O mesmo que almotacé. Fiscal de pesos e medidas

[6] Corregedor. Oficial de Justiça

[7] Notário

[8] Cargo específico para atender à orfandade

[9] Só no ano seguinte, 1835, o cargo passaria a ser denominado de Governador

[10] macaco

[11] Cozido típico da ilha do Fogo, de legumes, feijão, farinha de milho, manteiga de terra, arroz e carnes

[12] Consorte paramatrimonial

[13] Adivinhos e curandeiros gentios

[14] lampião

[15] Vinho da terra, produzido em terreno coberto de jorra vulcânica

[16] Género musical nascido em Atalaia, tocado com violino, violão, reco-reco e chocalho

[17] Música dançada antiga, originária da África Ocidental, que esteve na origem do fado português, da morna cabo-verdiana e do chorinho brasileiro, e que esteve em voga no século XVIII nestes 3 países

[18] Género musical recente gerado nas ilhas de Santiago e Fogo (Cabo Verde) a partir da concertina (gaita), acompanhada de ferrinho (ferro)

[19] Pasteis e doçaria

[20] Cuidador de cavalo

[21] Grupo de jovens que guardavam a bandeira

[22] Tomador da bandeira, organizador da festa

[23] Sebe

[24] Grupos de três romeiros que percorriam a ilha recolhendo donativos para a paróquia

[25] Também não havia festa em anos em que não se perfilava um ‘tomador’ da bandeira

[26] Mulheres que entoam cânticos rituais nas festas das Bandeiras

[27] Colexas, ou tchabetas, são baquetas percutidas nos rebordos dos pilões para marcar mudanças de ritmo dos cantares e danças.

[28] Brial é uma túnica de cavaleiro. Por efeito de catacrese, aplicou-se aqui o termo a pequenos motes cantados pelas coladeiras, servindo de indicativo a vários movimentos dos cavaleiros.

[29] Esmeril. Aqui, género musical típico da ilha do Fogo, nascido da valsa

[30] branco

[31] Fôrma de metal ou palha (milho, bananeira ou rede de coco) para apertar os queijos

[32] Fogueiras

[33] Carne de bode e cabrito

[34] Alma penada

[35] Caminhadas

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