16 - Rosas de Santa Maria
Foi neste contexto que em 1416, após a conquista de Ceuta, o grande Infante Henrique, Duque de Viseu, com apenas 22 anos, se estabeleceu à laia de eremita interrogando o horizonte enigmático do oceano, postado no sobranceiro e ventoso Promontório de Sagres, que só ao escurecer deixava para pernoitar na aldeia recatada de Raposeira, a umas vinte léguas, ao passo que montava em Lagos o estaleiro e porto das caravelas a produzir e armar nas décadas que se iam seguir, rodeado de construtores navais e navegadores, cartógrafos, astrónomos, matemáticos e físicos vindos de várias academias e cortes europeias, alguns deles judeus, como o cristão-novo Jaime de Maiorca, ou Jaime Ribes, ou Jafuda Cresques. Um período de intensa atividade académica e industrial, discreta mas frenética e eficiente, de que nasceu toda a epopeia dos descobrimentos portugueses do século XV. A estreia do imenso rol de descobertas que deu início à grande globalização renascentista foi a da ilha de Porto Santo em 1418, por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, que no ano seguinte, 1419, chegaram à Madeira, seguindo-se, ainda mais a norte e muito para oeste do famigerado Cabo Não, o Arquipélago dos Açores, primeiro por Diogo Silves, que encontrou as suas primeiras ilhas, em 1427, e depois por Gonçalo Velho Cabral, que completou a descoberta, em 1432.
Só quando Gil Eanes, em maio de
1434, ao serviço do mesmo Infante Henrique, reinava D. Duarte em Portugal,
capitaneando um barinel, pequeno navio de trinta toneladas, de um só
mastro e uma só vela redonda, e com uma pequena tripulação de apenas quinze
homens, ciente de que a zona do Cabo Bojador, conhecido até ali por Cabo do
Medo, tantos eram os navios que ali naufragavam, se prolongava longamente pelo
mar, resultado de inúmeras tempestades de areia vindas do deserto do Saará ao
longo dos tempos, navegou ao largo e, tirando proveito do pequeno calado da
embarcação, demonstrou enfim que era possível continuar para sul, e de lá
regressar, se teve a noção do pequeno-grande salto que este feito representava
para desbravar os misteriosos mundos até ali vedados aos grandes navios, um
feito prenhe de simbolismo disruptor, que o genial Fernando Pessoa eternizaria
no início do século XX com o seu eloquente poema “Mar Português”, que se inicia
assim:
“Valeu a pena?
Tudo vale a pena se a alma não é
pequena.
Quem quer passar além do Bojador
tem que passar além da dor.
Deus ao
mar o perigo e o abismo deu, mas foi nele que espelhou o céu”…
Entretanto, a sul e a oriente do Mediterrâneo,
o domínio árabe erguia-se em terra como uma barreira espessa enrijecida por
séculos de contendas sangrentas, políticas e religiosas, entre cristãos e
muçulmanos, entregues a sucessivas ondas e ressacas de cruzadas e jihades[1].
Paradoxalmente, as espessas
barreiras ideológicas, etnológicas, culturais, militares e religiosas não
impediam que uma atividade mercantil palpitante fosse alimentada por longas e
complexas rotas comerciais terrestres e marítimas que atravessavam com surpreendente
impunidade todas as fronteiras, como eram a Rota da Seda, que chegava da China,
em caravanas de cavalos e camelos, a partir da lendária Dengzhou, no Extremo
Oriente, galgando a terrível Mongólia, passando por Samarcanda no Oriente
Médio, e descarregando em Veneza, após um percurso de mais de dez mil
quilómetros por montes, vales, estepes, planícies e desertos; ou a Rota Marítima das especiarias, gerada
nos confins da Indonésia, da Malásia e da Índia, que sulcava o Índico em zambucos[2]
construídos na Costa do Malabar, no Mar Vermelho ou na ilha de Ceilão, num
trajeto oceânico que vinha até Ormuz, e que
depois, no dorso de infindáveis cáfilas de camelos, cruzavam a Arábia e o
Iraque, e chegavam a Itália, por Bizâncio; ou ainda a rota do Saará e da
Abissínia, que, ao invés da do Índico, começava por penar longamente sobre as
dunas áridas do Grande Deserto, desde os impérios recônditos dos negros, por
Tombuctu, atá ao Cairo e Tripoli, para finalizar atravessando brevemente o Mar
Tirreno a caminho de Génova.
Seda, algodão em rama ou tecido, perfumes, marfim, joalharia, carapaças de tartaruga, porcelanas, corais, goma, âmbar, pérolas, pedras preciosas, urzela[3], ouro, escravos e, sim, as ambicionadas, estimulantes, aromáticas especiarias, da pimenta à noz moscada, ao cravinho, à baunilha, gengibre, canela, açafrão, cardamomo, anis estrelado, tudo chegava a Veneza, no Adriático, e a Génova ou Pisa, no Mediterrâneo, e fluía para os consumidores europeus da época, em mercados e feiras espalhados por toda a Europa, incluindo os mais setentrionais, agregados pelo mercado comum da Liga Hansiática, quer pelos portos do Mediterrâneo e da Costa Atlântica, quer pelas grandes “estradas” que eram os rios Pó, Reno e Danúbio, a preços que, naturalmente, não podiam deixar de refletir o peso de toda a cadeia de tão imbricada logística.
Vale a pena determo-nos aqui um
pouco, num breve regresso ao futuro, a observar o que se passava por essa
altura nos quatro cantos do Mundo, por detrás dessas barreiras, em espaços até
então relativamente isolados e em grande parte desconhecidos uns dos outros,
como antecâmara para prosseguirmos na pista que nos levará àquela parte da
África então desconhecida, e ao que estava para acontecer ultrapassando o que
eram o conhecimento e a memória correntes, e em particular numas ilhas
inesperadas e inóspitas, um pouco mais a sul dos cabos interditos do Não e do
Medo, onde um processo fortuito mas único e paradigmático estava para eclodir…
Resumindo muito, nesses idos do
miolo do século XV extinguia-se na Europa a Guerra dos 100 anos, que desembocou
no consulado de Luís XI em França e no de Eduardo IV em Inglaterra, ambos os
reinos dizimados pelos prolongados confrontos, que os deixaram em estado
deplorável. No centro do velho continente vigorava o xadrez dos principados do
Sacro Império Romano-Germânico, englobando territórios tão vastos como os que
viriam a ser os da Alemanha, da Polónia, da Hungria, da Áustria e parte dos da Itália. Em
Portugal, um pequeno país periférico no extremo sudoeste da Península Ibérica,
encostado a África, emergiam os descendentes de D. João I, que falecera, numa
dinastia que passou à História com o epíteto de ínclita geração, de que
o Infante D. Henrique foi expoente, e se preparava para reinar o adolescente D.
Afonso V, após o breve reino de seu pai D. Duarte, e a quem sucederiam D. João
II, D. Manuel I e D. João III. Em Espanha, estão a chegar os Reis Católicos,
Isabel I e Fernando, patrocinadores de grandes descobertas de rotas e mundos
novos, paralelamente aos dos portugueses. Em Itália, na altura um país
espartilhado, a família dos Médici pontifica na cidade-estado de Florença e na
Santa Sé, com vários membros da família a exercerem sucessivamente o enorme
poder papal, não só espiritual como temporal, desde o território do atual
Vaticano, enquanto outras cidades-estado como Veneza, Génova ou Pisa, dominavam
as rotas do grande comércio europeu, terrestre e marítimo. Numa altura em que
estavam a chegar à Europa levas de ciganos oriundos da Índia, e em que, por
outro lado, os judeus enfrentavam na Península Ibérica o dilema de se
converterem à fé católica, sem o que eram expulsos, a caminho da Holanda, da
Turquia, de Marrocos, ou se tornavam fortes candidatos a deportações e
alistamento mais ou menos compulsivo nas guarnições dos navios que eram armados
em Lagos e na Ribeira das Naus, em Lisboa…
Em toda a Europa emerge um tempo novo, o da Renascença, protagonizado por Gutemberg, que cria a indústria tipográfica, e opera uma autêntica revolução comunicacional com a reprodução em série da Bíblia, o livro incontornável da época no mundo cristão, logo seguido de outros, abrindo de par em par o caminho da globalização do conhecimento…
Na Ásia Menor, o sultão turco
Maomé acaba de liquidar o Império Bizantino, conquistando Constantinopla e
cercando Belgrado, e consolida assim o Império Otomano no lado europeu.
Os Apaches e os Navajos dominam
os territórios de sudoeste da América do Norte, ao passo que os Aztecas
estendem o seu domínio na América Central, do Planalto Central para o sul, até
Oaxaca.
As tribos guerreiras Tupi-Guarani
dominam a região do que será o Brasil, na grande bacia do Amazonas, até à
Guiana, mas são os Incas que se expandem mais a oeste na América do Sul, sob o
comando do Sapa[4]
Pachacuti, partindo da região do Lago Titicaca até à atual Quito, a norte, e
até ao rio Maule, a sul, abrangendo os territórios dos futuros Equador, Peru e
Chile.
Na Ásia do Norte, o Império
Mongol era dominador, e dividia-se em quatro canatos[5],
dos quais o Canato da Horda Dourada era o mais importante, abrangendo grande
parte da atual Rússia europeia, Cazaquistão, Ucrânia, parte da Bielorrússia,
norte do Uzbequistão, Sibéria Ocidental e uma parte da Roménia. Enquanto a sul,
a dinastia Ming reina na China, tenta combater os mongóis e expandir-se pelo
Índico, com uma frota naval poderosa, dirigida pelo almirante muçulmano Zeng He
que atravessa a Indonésia e chega ao Mar Vermelho e à Costa Oriental Africana.
Ao passo que no Japão, reunificado após investidas ferozes dos temíveis
mongóis, vivia-se um período de fomes e de revoltas camponesas, sob o Xogunato[6]
dos Ashikaga.
Na Índia, o Sultanato de Deli, sob o governo da dinastia afegã dos Lodi, restaura o prestígio antigo, então decadente, e expande-se para oriente, em direção a Junpur e Bihar; em contrapartida, no espaço hindu as dinastias rajá-putra recuperam a independência na região do Rajastão.
Em Marrocos, os sultões e vizires
berberes oatácidas impõem-se aos também berberes merínidas, mas
uns e outros declinam quando os portugueses conquistam Ceuta, depois Alcácer
Ceguer, Arzila, Azamor, Mazagão, Safim e Mogador. Ainda na África setentrional,
mas a leste, os turco-egípcios mamelucos expandiam-se para a Núbia,
subindo o Nilo, e participavam no comércio do ouro e dos escravos com a África
subsaariana, em caravanas que contornavam o deserto, ao passo que chegavam ecos
de um reino cristão, mais a sul, na Etiópia, o do Preste João, dito das Índias,
governado neste período pelo seu décimo nono imperador, Zara Jacob…
A ilha de Arguim, na Mauritânia, o primeiro entreposto comercial dos portugueses na região atlântica recém-abordada, era então considerada o limite do mundo muçulmano em África, e dali para sul o continente africano era um puzzle de tribos e povos guerreiros intrincado, em parte ainda muçulmano, em parte animista e por vezes convivendo com um e outro cultos, de que se destacavam os songai, os julas, os mossis, os haúças, os axântis e os iorubás, que dominavam as bacias dos rios Níger e Volta, uma vasta região hoje território de um conjunto de países independentes, do Mali ao Burkina Fasu, ao Gana, ao Benin, à Nigéria, e onde se gerava boa parte do comércio de ouro e escravos a alimentar as rotas terrestres de tráfego para norte, através do Saará…
Já mais para sul no continente
africano, o que mais filtrava dos relatos de aventureiros e exploradores eram
notícias de um império mítico, alegadamente poderoso, abundante em ouro, o
Monomotapa, algures entre os rios Zambeze e Limpopo, mais tarde ocupado pela
Rodésia/Zimbabwe e por Moçambique.
De referir ainda, como nota de
rodapé, que começava a sentir-se neste período uma mutação climática
significativa, de resfriamento global, que ficou conhecida como Pequena Idade
do Gelo e se prolongaria até ao século XIX, o que faz supor que por esse tempo
o clima fosse mais ameno e propício às grandes viagens...
Eis um retrato holístico quanto
basta, na altura impossível de se esboçar e que se foi tornando inteligível,
graças à globalização acelerada promovida pelos dois países ibéricos, que,
atraindo de vários pontos da Europa de então colaboradores especializados,
dominaram diversas tecnologias de ponta, em especial a da náutica, a da
construção naval, a da cartografia, a do comércio e a do armamento pesado,
tornando possíveis num curto espaço de tempo a comunicação e as trocas
comerciais e culturais de todo o mundo com todo o mundo e eliminando a um ritmo
nunca visto até então obstáculos que à época eram tidos por intransponíveis.
É no quadro deste vasto cenário que Henrique o Navegador e os seus homens foram vencendo o mar com uma frota de caravelas, navios estudados e construídos nos estaleiros de Lagos, de tamanho médio, vinte e cinco metros de comprido e popa elevada em castelo e protegida, dois ou três mastros aparelhados de velas latinas ostentando a cruz de Cristo, com capacidade para 50 toneladas, mas muito manejáveis e capazes de navegar contra o vento ou mesmo de serem movidas a remos e de penetrar rios acima, e foram dobrando novos cabos, primeiro o Branco, por Nuno Tristão em 1441, depois o Verde, por Dinis Dias, e o Roxo ou dos Mastros, por Álvaro Fernandes, em 1445, e explorando os rios de toda aquela Costa, desde o Senegal ao de Santa Ana, na Costa da Malagueta. O ritmo de progressão tinha-se tornado imparável, e as caravelas e naus haveriam de sulcar os mares para além do Equador, a caminho das portas ainda secretas que no Atlântico sul se abririam ao Índico, vencendo o terrível Adamastor, e ao Pacífico, contornando a mítica Terra de Fogo… Não mais os velhos mitos haveriam de travar o conhecimento, vencidos que estavam pelo método científico da experimentação, mesmo que fosse preciso passar por tentativas e erros. Sopravam os ventos de uma nova era…
Navegantes de um pequeno povo de
pouco mais de um milhão de pessoas, tinham pois chegado à África Tropical, e
num primeiro momento exploravam o que chamaram “Rios da Guiné”, a orla marítima
desde o Senegal ao Volta, habitados por mais de 30 povos diferentes (Jalofos,
Barbacins, Mandingas, Fulas, Papéis, Balantas, Arriatas, Falupos, Buramos, Bijagós, Beafares, Naluns,
Bagas, Coculins, Sapes, Manes, Sossos e outros), falando línguas diferentes,
tendencialmente hostis entre si, com histórias entrecruzadas e territórios
oscilantes, mas paradoxalmente abertos a trocas comerciais mútuas, incluindo de
escravos, atitude de um exoterismo aparente, surpreendente mas pragmático, que
se estendia a quem vinha de longe, fosse por terra ou por mar. Afinal, uma
política paradoxal, mas transversal aos povos, aos espaços e aos tempos na
longa história da humanidade…
Antes de nos embrenharmos pelas
curvas sinuosas e pelos esteiros intrincados dos rios e canais, prenhes de vida
e de mistério, que haviam mantido em segredo, certamente por milénios, a vida
intensa e agitada que densas matas e mangais ocultavam, sob esse nome genérico
de Guiné, plasmando uma teia de reinos de negros em constante agitação a sul do
Grande Deserto e que, na imaginação dos recém-chegados, haveria de estar
certamente encostado, a Oriente, à Etiópia e dela acolher o Nilo, numa espécie
de corrente bífida que contemplaria, em contraponto do Mediterrâneo, também o
Atlântico, é mister espreitarmos, desde o Cabo Verde (um topónimo improvável,
só justificado pela extrema secura com que os descobridores se haviam deparado
a norte), para aquelas ilhas, dispostas em formação de voo de gansos a caminho
de terra firme, a umas centenas de milhas a oeste, em alto mar, e que dele se
preparavam para tomar o nome.
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