17 - Sanai, o Príncipe da Serra - conto
Em meados do século XV esta
região litoral estava relativamente estabilizada, e formava um xadrez de
pequenos reinos, em geral minúsculos, que funcionava como uma espécie de Estado
Federal informal, denominado N’Gabu[6],
cujos reis obedeciam e pagavam impostos ao Grande Imperador malinke[7],
o Madimansa, longínquo, mas que respeitavam e veneravam mesmo quando o não conheciam.
Os povos
do N’Gabu eram, pois, já por essa altura, maioritariamente originados pela
fixação aditiva de sucessivos invasores que foram chegando do interior em ondas
de conquista. Os vencedores iam integrando os vencidos que sobreviviam, os quais
escravizavam, mas que na geração seguinte eram de novo assimilados, pelo que as
múltiplas etnias, desde fulas (futa-fulas, fulas forros ou fulas “pretos”)
a mandingas, jalofos, tucolores, cobianas, felupes, balantas, brames
(buramos, papéis), manjacos, bijagós,
banhuns, jabundos, cassangas, saracolés, barbacins, jaloncas, banbarãs,
torancas, boencas, pajadincas, beafadas[8],
nalus, sossos, landumãs, tandas e outras, eram mais a resultante de uma
longa panmixia do que grupos étnicos estanques, e muito menos Estados com
fronteiras e leis claras e definidas.
A Razia
É na
dinâmica aparentemente caótica deste cenário que em meados dos anos cinquenta
de mil e quinhentos a nação dos Sapes, que se instalara havia quatro décadas na
Serra Leoa, entre o Rio Nuno e o Rio Mitomba, vinda da região do Futa-Jalo, a
nordeste, foi invadida pelo sul, através da Malagueta, por um exército de
Sumbas, assim conhecidos porque eram antropófagos e muito aguerridos e cruéis,
e por isso raramente encontravam resistência pela frente, preferindo os
invadidos fugir a serem caçados, mortos e comidos. Mas Abu, o rei bolão[9],
ciente disso, reuniu o seu pequeno exército e convenceu os seus homens de
quanto era melhor vencerem este inimigo do que serem vencidos por ele e na
melhor das hipóteses tornarem-se escravos, se escapassem a serem comidos. E foi
sob esta pressão que os Bolões, bem atabancados perto da Angra de Bagara Bomba,
mas habitualmente pacíficos, derrotaram o poderoso invasor e mataram o capitão,
filho da temível comandante Macarico, mulher de armas malinke. Ainda
assim, o rei e a família foram aconselhados pelos seus a fugir, aproveitando a
surpresa dos invasores, entretanto entregues às cerimónias fúnebres do chefe
caído, pois sabiam que estas invasões cíclicas dos Sumbas vinham de longe e
eram alimentadas no percurso pelos próprios vencidos, que, se escapavam à
morte, eram obrigados a engrossar o respetivo exército, que voltava sempre a
atacar, o que faria com mais ardor e raiva depois da derrota que lhe fora
infligida.
Refúgio
na Ribeira Grande
Em fuga
com toda a família, Abu dirigiu-se para o Rio dos Cárceres[10]
e entregou-se com os seus em um dos barcos que sempre rondavam pelos rios e pelas
costas em busca de comprar escravos. Era um navio armado por Vizinhos da
Ribeira Grande, e foi a esta cidade das Ilhas do Cabo Verde que toda a família
real e outros refugiados aportaram na semana seguinte, resignados a uma mudança
radical das suas vidas, em alternativa à morte certa que lhes estava destinada
por tão terríveis carniceiros, se tivessem permanecido nas terras da sua amada
Serra. Uma opção extrema que veio porém a revelar-se tanto mais acertada,
quanto se soube depois que Mabete, a irmã do capitão sumba morto, após o
funeral dele e da mãe, que falecera de desgosto, valendo-se dos ferreiros, que
tinham as oficinas no exterior da tabanca, os obrigou a manter as forjas ao rubro,
para que os soldados nelas encandescessem as azagaias, as quais, projetadas para
o interior, incendiaram o colmo da cobertura de todas as casas, obrigando os
que tinham ficado a morrer ou a entregarem-se.
Abu
permaneceu, com a esposa, ao serviço de Aires de Sequeira, vivendo na sua casa,
mesmo quando o novo senhor formalizou, anos mais tarde, a sua alforria, por não
querer afastar-se dos filhos menores que prosseguiam os seus estudos,
ministrados pelos padres franciscanos, carmelitas e jesuítas que lecionavam na
Cidade.
O aluno
distinto
Sanai,
assim se chamava o farã[11]
de Abu, dos que com ele vieram da Serra, intuiu, apesar da tenra idade, a
oportunidade que lhe foi dada, aos seis anos, mantendo-se junto dos pais em
harmonia, num ambiente urbano estruturado, pois havia quase vinte anos que a
Ribeira Grande fora elevada a Cidade, com comércio, agricultura, pescas, artes
e ofícios, exército, justiça, saúde e ensino organizados, Câmara Municipal com
a respetiva Vereação e Diocese com o respetivo Cabido, tudo ao modo da
metrópole portuguesa, e dedicou-se de alma e coração aos estudos, ao ponto de
se ter tornado, ao atingir os 17 anos, um douto preceptor, com bom domínio da
matemática, da geografia, da oratória, da música, da literatura e até do latim.
Os pais, que já na Serra Leoa utilizavam o português rudimentar, língua
comercial nos rios, encantavam-se a ouvi-lo à noite citar Bernardim Ribeiro, na
sua literatura galego-portuguesa ainda titubeante mas de cândida beleza:
“Menina e
moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a
daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho
outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali
tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito
contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou
tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande
desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser
leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito
mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que
do mal que tinha”.
Era uma
forma de Ventura, de seu novo nome de batizado, aliás Ventura de Sequeira, que
seu segundo pai lhe legara, consolar em modo feminino a sua mãe Iamá das
saudades que, mau grado a memória da horrível guerra e da deportação que
viveram, mantinha bem presentes; e também, jovem saindo da adolescência, expressar
as primeiras fragrâncias de uma paixão nascente, idealizando coitas de um amor
cavaleiro, em palavras que, não o sendo, as fazia suas, pois pareciam retratar por
um lado reminiscências da sua infância junto ao rio dos Cárceres, à sombra de
outras árvores, onde esvoaçavam outras aves e pascentava outro gado, pastoreado
por outros ‘bernardins’, mas por outro lado se ajustavam aos sentimentos que
agora nutria por uma amada que ainda desconhecia mas que os amores platónicos
de Bernardim, correspondidos à distância por Arima, a angélica fada do conto, tão
bem prefiguravam…
Ou lia-lhes o poema em verso já maduro,
saído de outras coitas, as de Camões, intitulado “Endechas a Bárbara Escrava”, contraídas
na sua juventude andante por novos continentes inexplorados, de gente até aí
dele desconhecida ou tão pouco imaginada, por uma mulher de quem todavia se
apaixonara, porque era ela diferentemente igual e inteira. Ventura de Sequeira
dedicava-o de cada vez ao pai e à mãe, com um sentimento misto de amor sentido
e correspondido, repartido entre memórias de infância e a nova ilha a que o destino
caprichosamente os trouxera:
“Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa”.
…
O
paradoxo
Vindo de
um mundo em que a miscigenação era já regra, no qual, desde há muito, gente tão
diferente como fulas, barbacins, beafares ou sapes se haviam cruzado e
conviviam sem melindre, pese embora a praga do vício de se assaltarem e se
guerrearem mutuamente, para Ventura aqueles anos de frequência de uma escola
com colegas de todos os tons de pele, filhos tanto de brancos como de mulatos,
como de negros, uns vizinhos, outros forros, outros escravos, ao mesmo tempo
que os padres os doutrinavam com particular esmero, em paralelo com os
conhecimentos académicos, sobre os grandes preceitos cristãos e filosóficos da
primazia da alma sobre o corpo, do espírito sobre a matéria, da fé em um Deus compassivo
e misericordioso, da esperança, da caridade, da igualdade, da solidariedade,
pareceram-lhe de uma naturalidade meridiana, e ao mesmo tempo traduziam-se para
ele em uma ascensão a um patamar um tanto surreal, quase mítico, de
coexistência com a verdade e a justiça, que todavia não deixava de o confrontar
com a dura realidade que não podia ignorar, pois lhe entrava pelos sentidos e lhe
beliscava a sensibilidade, uma realidade que estava longe de refletir tão
piedosos ensinamentos e propósitos. Sabia, por um lado, que as crianças e
jovens da sua igualha que não tiveram a fortuna de estudar como ele, e eram na
Ribeira Grande a maioria, desde logo as da aldeia dos Sapes, em que vieram
morar as famílias suas companheiras de fuga, mais para dentro, na zona da Horta
Velha, e muito mais as das ribeiras e montanhas do interior de Santiago, se
confrontavam com a dura realidade do trabalho forçado, quando não da fuga ou da
fome, se a monção não passasse a jeito sobre as ilhas, alternando com os secos
alísios e o importuno harmatão para fazer vingar as sementeiras, ou, pior
ainda, da deportação para as índias ocidentais. E perturbavam-no ainda mais os
ecos que chegavam da Serra e dos Rios em geral, com os barcos que regularmente
faziam o trato[12]
da Guiné, dando conta de desavenças, invasões, razias, ritos macabros que
continuavam a inibir o acesso às belas figurações espirituais, sociais e
económicas que em teoria eram veiculadas pelos padres e pareciam poder ser
aplicadas numa estrutura sociopolítica como a que apesar de tudo lhe era dado
testemunhar na Ribeira Grande.
Uma
cidade pujante
Uma
Ribeira Grande que vivia, no terceiro quartel do século XVI, o auge do seu
fulgor económico, com uma plêiade de gente de negócios das mais diversas
origens, portugueses, venezianos, espanhóis, vizinhos forros, pretos, mestiços
e brancos, que armavam navios para o trato da Guiné, importavam e exportavam
para as Índias Ocidentais e para a Europa, enquanto os terratenentes de
morgadios e capelas garantiam com trabalho local próprio mas sobretudo escravo,
nas diversas ribeiras férteis das ilhas de Santiago e nas encostas do Fogo, a
produção de víveres para as populações e para as guarnições dos navios, bem
como de algodão, panos, cavalos e outras mercadorias para o trato. Uma Cidade que
atingiu por esse tempo uma população de mais de seis mil habitantes, a maioria
escravos, pertencentes a mais de quinhentos “vizinhos”, e em que as ruas do
Bairro de S. Pedro ostentavam muitas dezenas de casas de cantaria, bem
alinhadas acima da margem direita da ribeira, onde vários edifícios públicos e
religiosos ocupavam posições privilegiadas, como a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, na rua da Carreira, a de Nossa Senhora da Conceição, antes chamada do
Espírito Santo, no topo do Beco da Majaja, perto da nascente de água límpida de
que se abasteciam os navios e a população, ou, na margem esquerda, a sede da
Câmara na rua do Calhau, o Pelourinho na Praça, ou ainda os três baluartes
litorais, o da Vigia a leste, o da Ribeira ao centro, e o de São Braz a oeste. E,
com a chegada do bispo Frei Francisco da Cruz em 1558, arrancara também a
construção da Igreja da Misericórdia, do Hospital e do Paço Episcopal, e foi
mesmo lançada a primeira pedra para a edificação da Sé Catedral, impedida no
entanto de avançar pelos próprios clérigos do Cabido, por considerarem o local
escolhido, a leste, no futuro Bairro de São Sebastião, demasiado afastado, e que
por isso teve de esperar mais de um século para ser concluída…
Casamento
Ventura
de Sequeira viveu intensamente este período de ouro da grande Cidade da Ribeira
Grande, e foi um dos vizinhos mais reputados na época, estimado por todos,
inclusive pelos bispos e capitães, que lhe confiaram missões diversas na
administração pública e como professor, em Santiago e na Guiné.
Enamorou-se
de Aja, cujo nome cristão era Raquel, uma vizinha da casa de Aires, da sua
idade, na rua da Carreira, terceira filha de uma viúva de um comerciante abastado
que viera de Nagar Aveli, na Índia, Samuel Coutinho, mas era judeu
cristão-novo, emigrado de Castelo de Vide no início do século, e viera estabelecer-se
na Ribeira Grande na década de 30, não tendo regressado, anos atrás, de uma
viagem de negócios que fizera ao Recife, ao que constou, vítima de um assalto
no Sertão brasileiro. Casou-os em 1573 o Bispo Bartolomeu Leitão, e foram morar
na rua Direita, perto do Bairro dos Sapes. Haveriam de ter seis filhos, quatro
meninas e dois rapazes, formando uma família exemplar e unida, mesmo quando
Ventura veio a mudar-se para o Continente.
Em abril
de 1577 Ventura de Sequeira recebeu um convite surpreendente vindo nada menos
que de El-Rei D. Sebastião. O jovem monarca ouvira falar da história atribulada
do rei-escravo Abu e da sua família, e Aires de Sequeira fizera-lhe chegar
subidos elogios do menino que adotara e se tornara entretanto um douto
professor das crianças e dos futuros padres da Ribeira Grande, e do desejo que
ele lhe manifestava de ir conhecer o mundo português do Oriente. Foi Manuel de
Medeiros, comandante da Nau São Pedro, uma das quatro que acabavam de chegar ao
porto para fazerem aguada, com destino a Cochim e a Malaca, que entregou a
Aires o convite, firmado pelo rei. Ventura ficou exultante e não se fez rogado.
Poder reviver o que fora a grande aventura de Vasco da Gama de há quase um
século era o mesmo que satisfazer o mais excitante dos seus anseios.
Embarcou
com uma guarnição de escravos forros que se haviam voluntariado para as viagens
ao Oriente, em troco da liberdade, como era costumeiro. Até Moçambique tudo
correu como previsto, mas tiveram um contratempo na rota para Malaca, para onde
se destinava a viagem, e a nau em que seguia perdeu-se nos baixios de Peros
Banhos, no Arquipélago das Chagas, em pleno meio do Índico, um grupo de mais de
60 ilhas agrupadas em sete atóis que Pedro de Mascarenhas cruzara na sua viagem
de 1532, desertas, embora já conhecidas dos maldivos. Mas ao invés da
contrariedade manifestada pela restante tripulação com o incidente, Ventura não
conseguiu disfarçar o entusiasmo com a oportunidade que a sorte lhe reservara
em poder desembarcar naquele atol paradisíaco e nadar naquelas águas límpidas e
nacaradas que, ao que parece, haviam inspirado Camões para descrever, nos
Cantos nono e décimo dos Lusíadas, a mítica Ilha dos Amores. Acabaram por
encurtar a viagem e seguiram para Cochim, passando ao largo de Ceilão, a
Taprobana que o mesmo Luís Vaz de Camões fixara, a par do Adamastor do Cabo das
Tormentas, convertido em Cabo da Boa Esperança, como um dos mitos europeus
derrubados pelas caravelas e naus de Portugal. De lá regressaram sem outros
incidentes, com a habitual carga de especiarias da Índia.
Mas os
tempos áureos da Ribeira Grande passaram a conhecer diversos contratempos a
partir de janeiro de 1583, com o saque das tropas de Emanuel Serradas, que em
nome do Prior do Crato se revoltava contra a geminação das coroas portuguesa e
espanhola, assumida por Filipe I, Segundo de Espanha, e, vindo da Ilha
Terceira, nos Açores, a mando do mesmo Prior do Crato, buscava apoio em Cabo
Verde, depois de já ter assaltado e saqueado a Feitoria de Arguim. Como não o
obtivesse em Santiago, as duas centenas de soldados franceses e portugueses que
integravam a sua armada roubaram tudo o que havia na Cidade, em particular nas
igrejas e edifícios públicos, incluindo canhões que guarneciam os baluartes, e
o bispo, na altura Bartolomeu Leitão, com quem Ventura trabalhava no ensino das
crianças, teve de recorrer a uma astúcia para escapar à fúria de Serradas.
Pediu-lhe que o deixasse viajar para o interior da ilha, alegadamente para buscar o apoio que o Comandante não lograra obter na Cidade. Mas o bispo só voltou
à Ribeira Grande quando Serradas desistiu e seguiu para a Ilha do Fogo, em
busca de melhor apoio, mas onde acabaria de resto por ser igualmente ludibriado
nos seus propósitos anti-filipinos.
Apesar
dos esforços de Filipe II para fortalecer as defesas, mandando construir a Fortaleza
com o seu nome, que seria concluída em 1593, ao mesmo tempo que criava um
sistema de prevenção e alerta noturnas por semáforos com tochas nos montes mais
elevados próximos da costa, entre a Praia e o Monte Facho, a nordeste da
Cidade, corsários da França, da Inglaterra e mesmo da Holanda, países que
hostilizavam a Coroa Espanhola, intensificaram os ataques à Ribeira Grande, ao
mesmo tempo que neutralizavam em grande parte o trato dos Vizinhos de Cabo
Verde nos Rios da Guiné.
Viviam-se
tempos difíceis e desencorajantes para todos os moradores da Ribeira Grande no
início dos anos noventa de quinhentos, e Ventura, que por diversas vezes
viajara nos navios que faziam a naveta para o trato dos Rios, desde o Senegal a
Angra de Bezeguiche, Ale, Joala, rio dos Barbacins, rio Gâmbia, com todos os seus
braços e estreitos, Casamansa e São Domingos, rio Grande, Bijagós, rio Nuno e
toda uma série de pequenos locais entre este último e a Serra Leoa, de onde era
natural, e conhecia como a palma da mão os portos, os povoados e as feiras em
que se trocavam panos, cavalos, algodão, cera, aguardente, açúcar, uvas, figos,
melões e alguns outros produtos por escravos, arroz, marfim, gatos de algália,
papagaios, etc., e tinha mesmo por lá permanecido em pequenos períodos como língua[13]
de tangomãos[14]
e outras vezes mesmo, mais recentemente, em missões de catequese por conta do
Bispo Carmelita Pedro Brandão, estava pronto para atender ao apelo do Continente.
Aos 52 anos de idade, tendo já falecido os pais, Ventura de Sequeira decidiu, com a anuência e mesmo encorajamento dos familiares, do Capitão Geral de Cabo Verde Soares de Melo e do Bispo de então, Pedro Brandão, voltar mesmo à Guiné, ainda não à sua Serra Leoa natal, mas à zona do rio de S. Domingos, onde, tal como na Ribeira Grande, uma aldeia de refugiados Sapes se formara, na altura da invasão dos Sumbas, quando ele próprio e a família haviam sido também eles forçados a emigrar para Cabo Verde. Esta aldeia não ficava longe de Bianga, mais tarde conhecida por Cacheu, a aldeia próxima da fortificação que os lançados tangomãos (portugueses e grumetes[15]) haviam construído por sua conta para se protegerem das investidas e abusos de que periodicamente vinham sendo vítimas por parte de alguns locais, que alegadamente se supunha que os protegiam, embora tivessem a garantia de livre trânsito por parte do rei local, de nome Chapala. Os portugueses tinham mesmo logrado obter de outro rei mais a norte, em Casamansa, chamado Masatamba, por intercessão de Francisco de Andrade, Sargento-Mor da Ilha de Santiago, que os lançados que moravam com famílias locais em Buguendo (mais tarde S. Domingos) se estabelecessem também em terrenos mais seguros, próximos da fortificação, beneficiando assim da respetiva custódia, num povoado a que deram o nome de São Filipe.
Proclamação
De
estirpe real, ainda mais enobrecida e consolidada pelos conhecimentos que
adquiriu na Ribeira Grande e firmada pelas importantes funções que exercera em
serviço da Administração Pública e da Igreja, Ventura de Sequeira foi
proclamado rei da Aldeia dos Sapes, próxima de S. Filipe. Ninguém até ali tinha
exercido com maior zelo e eficácia na região do N’Gabu um governo baseado na
paz, no cultivo das virtudes e preceitos evangélicos, na busca de conhecimento,
na prática da justiça. As crianças eram batizadas e era o próprio rei Ventura
que diariamente passava horas sob a sombra do grande poilão[16]
da aldeia a ensiná-las a ler e a escrever e a prepará-las para o batismo,
introduzindo-as nos mandamentos da lei de Deus e da Igreja, nas virtudes
cardeais que deviam cultivar, nos pecados capitais que deviam evitar, nas
bem-aventuranças por que deviam ansiar.
Já aos
jovens rapazes e raparigas adolescentes, aprendendo embora com igual entusiasmo
as letras e as contas, e mesmo a doutrina cristã, fazia-lhes confusão que
Ventura de Sequeira desaconselhasse as práticas de iniciação tradicionais, por
eles aguardadas com ansiedade, pois viam nelas a passagem para o estatuto tão
desejado da maioridade e do respeito dos velhos, também eles pouco permeáveis à
ideia de cortar com as tradições ancestrais dos seus pais e dos pais deles,
desde tempos esquecidos.
Não
tardou por isso que o Príncipe da Serra, que vivera ao longo dos últimos 40
anos sonhando transmitir aos irmãos do seu povo querido as maravilhosas boas novas
que o seu espírito sedento e generoso fora acolhendo e interiorizando com
respeito, júbilo e gratidão como um dom da sorte e de Deus, percebesse que o
caminho por ele percorrido em décadas, sob os auspícios de tutores e docentes
benevolentes e prestimosos, não podia ele esperar que fosse palmilhado pelos
seus agora súbditos e discípulos, em especial os mais antigos, em meses ou até
em anos, num meio mergulhado em superstições e mitos. E mesmo a paciência de
que se armou para conseguir os objetivos que se propunha, como rei, professor e
missionário, não foi suficiente para evitar que os velhos da aldeia o viessem a
colocar perante um dilema para ele insuportável, pois o obrigaria a conciliar
os preceitos da doutrina cristã com as terríveis tradições ancestrais que jabacouces[17]
e baloubeiras[18]
porfiavam em perpetuar, sob ameaças de sobrevirem
a toda a aldeia morfeias, doenças e pragas, veiculadas pelos finados e
vaticinadas pelos irãs e chinas[19]
da baloba[20]…
Não obstante o respeito e até a consideração reverencial com que os velhos da
comunidade lhe significavam as suas preocupações e pretensões, Ventura de
Sequeira não podia conciliar o inconciliável, e o minúsculo reino, que por um
tempo se assemelhou a um alfobre capaz de operar nas margens do Cacheu um milagre transformador
voltou a ficar entregue a superstições fatalistas de sujeição a misteriosas
forças aleatórias esotéricas ou escondidas em secretas malquerenças, vinganças
ou aproveitamento, dispondo da liberdade, da vida e dos haveres das pessoas, como eram a da
água vermelha, a do fogo, a do óleo a ferver, a da galinha degolada ou a do
ferro em brasa[21]…
O rei
tangomão
Desgostoso,
mas recusando-se a cooperar com tamanho retrocesso, que lhe molestava
penosamente a consciência, Ventura de Sequeira preferiu acolher-se por volta de
1598 à Aldeia de São Filipe, onde se dedicou por alguns anos à negociação de
contratos comerciais de vizinhos da Ribeira Grande e de empresários do Reino, que
regularmente continuavam a armar navios de trato, embora com variações, decorrentes
das cada vez mais frequentes intromissões de navios ingleses e franceses no
comércio dos Rios.
Aprofundou
mais ainda o conhecimento que já tinha da geografia, dos povos, dos usos e
costumes de cada povo, e tornou-se exímio conhecedor quer das mercadorias de
produção local, quer dos produtos para troca que provinham da Ribeira Grande, da Europa, do
Oriente e até das Índias Ocidentais, e
bem assim do curso dos preços praticados, o que fez dele, a par de um tal
Ganagoga, o português mais procurado pelos armadores, incluindo estrangeiros,
tanto mais que dava provas de qualidades de carácter raras no meio dos
negócios, como são a honestidade e a lealdade, garantes preciosos de um elevado
grau de confiabilidade para quem, ao longe, precisava de tomar decisões o mais
acertadas possível.
Quer os
sucessivos Capitães-Mores da Ribeira Grande da primeira década de 600, de
Francisco Lobo da Gama a Fernão de Mesquita de Brito ou a Francisco Correia da
Silva, quer os prelados da Diocese, do Carmelita Pedro Brandão ao seu sucessor
Luís Pereira de Miranda e ao Dominicano Sebastião de Ascensão, quer o próprio
rei Filipe II, o Pio, que ele visitou em Lisboa e de quem recebeu honras de
monarca, nutriam por Ventura de Sequeira, que consideravam sábio e santo, a
maior estima, que só não se traduziu em honrarias mais formais porque ele
próprio já as tinha, sem as ostentar, não fosse ele considerado por todos o
novo rei dos Sapes.
Entre as muitas viagens de negócios que o rei Ventura fez nos primeiros anos do século XVII, nas caravelas e naus da rota comercial atlântica, uma das suas preferidas era a do norte, em que navegavam de Cacheu à foz, dobravam o Cabo Roxo e demandavam Casamansa, chegando depois à foz do Gâmbia, por cujo curso subiam até Cansalá, a capital do N’Gabu. Era aqui que em geral se detinham por mais tempo, fazendo negócios na grande feira bissemanal, que se realizava às quartas e sextas. A ela acorriam agricultores, criadores de gado, comerciantes, populares e nobres vindos de toda a margem sul do grande rio, e mesmo da margem norte, de alcaides a jagarafes[22] e jagodins[23], e não era raro virem a esta feira os reis barbacins do Ale, a norte do rio, e do Borçalo, a sul, ou, mais raramente, o próprio Gran-Jalofo, Budumel, que descia de Lambaia, em Encalhor[24], com a sua guarda de honra. Com todos Ventura foi criando confiança e fazendo amizade.
Do
Gâmbia, os navios mercadores subiam ao delta do Salum, depois ao Ale, e
chegavam à Angra de Beziguiche[42],
uma enseada acolhedora, protegida pela ilha de Palma[43],
na qual haveriam os escravos que compraram de ser acantonados e preparados para
viajar, para Cabo Verde primeiro, mais tarde para a Europa e para a América, em
navios vindos da Ribeira Grande, de Portugal, Espanha, França, Inglaterra e
Holanda. Milhões de escravos passariam por esta ilha ao longo de quatro séculos
de história. Quase sempre esta viagem era uma oportunidade para Ventura se
encontrar com João Ferreira, um cristão novo há muito radicado na região do
Cabo Verde, o tal que era conhecido por “Ganagoga”, que na língua beafar
significa poliglota, tal era o número de idiomas que dominava, quer os locais,
quer os europeus…
Viagem ao
Mali
Em uma destas viagens aproveitou Ventura para se integrar em uma das caravanas que faziam ainda as rotas terrestres do comércio para a Europa e o Médio Oriente, e foi conhecer Tombuctu, centro nevrálgico do império malinke, de que tanto ouvira falar nos seus estudos e andanças, dando conta de como era um centro cosmopolita em que conviviam pacificamente as três religiões monoteístas, a muçulmana, a cristã e a judaica, a par das três culturas regionais, a songai, a tuaregue e a árabe. Mas a desilusão era inevitável nesta sua escapada turística, por um lado porque o tráfego comercial diminuíra a pique com o desvio do eixo do comércio para a costa e para o mar, e por outro porque o ainda há pouco poderoso império songai fora desbaratado por uma invasão do exército marroquino oatácida, no recém-extinto século XVI.
Professor em Guinala
Mas as
lides do comércio não eram decididamente, mau grado as suas insofismáveis
competências na matéria, a vocação mais profunda de Sanai, aliás Ventura de
Sequeira, e foi com entusiasmo que em 1605, ainda no fulgor maduro dos seus 62
anos, atendeu ao apelo do jesuíta Padre Baltazar Barreira solicitando-lhe que
descesse para Guinala, no Rio Grande, e aí se juntasse a outro jesuíta, Pedro
Fernandes, para ali abrirem e fazerem funcionar uma Escola para ensino das
primeiras letras e cálculos às crianças, no que por sua vez dava atendimento ao
líder da comunidade luso-africana local, Sebastião Fernandes Cação, com o apoio
do rei de Biguba, Enchabole, “para ensinar a Doutrina e a ler e a escrever aos
mininos”. A iniciativa jesuíta foi um sucesso fulgurante, e rapidamente dezenas
de “mininos” das elites de Biguba e Guinala, tanto os filhos de portugueses e
grumetes como os do rei, dos fidalgos e dos chefes militares, e alguns até
filhos de bixirins, foram surpreendendo e encantando os pais e a restante
população, pois mesmo os de colo já recitavam e cantavam hinos, e alguns mais
crescidos aprenderam a ler e a escrever em menos de um ano.
Quando
Pedro Fernandes foi chamado a Ribeira Grande, para abrir, em 1606, na capital
de Cabo Verde, a primeira Escola formal de Ensino público, foi Ventura que
ficou a segurar a Escola de Guinala, valendo-se da ajuda dos filhos e de dois
dos seus antigos alunos de S. Filipe, da Escola do seu efémero reino no Cacheu,
que a ele se vieram juntar.
O
imponente poilão com séculos de idade que por esses anos serviu aos meninos de
Guinala de Escola ficou eternizado neste soneto de Ventura, que fazia cantar em
cada dia na abertura das aulas (infelizmente, não nos chegou a respetiva música):
Desponta a aurora clara de
nascente,
Levanta-se do Buba a densa bruma.
O poilão, majestoso e imponente,
Acolhe à sua sombra a jovem turma.
Leal amigo, seguro e frondoso,
Que nos forneces toros[44]
e adabas[45],
E almadias[46],
e bâmbalos[47]
sonoros,
Abriga a nossa aldeia em tuas
asas.
Tuas raízes, fortes e seguras,
São as cadeiras em que aqui
aprendem
Nossas crianças, cândidas e
puras.
Como teus frutos, que em teus
ramos crescem,
Sejam as almas sábias e maduras
Dos de Guinala, que te agradecem.
Poilão-Escola-Tribunal-Igreja
De novo rei, no país de infância
Por
meados dos anos 10 de seiscentos, a grande invasão dos Sumbas de sessenta anos
atrás que dera origem à aliás rica história de vida de Ventura de Sequeira estava
completamente esquecida, e os familiares mais velhos de Sanai haviam retomado o
governo da nação Sape. Acabara de falecer, sem descendência masculina, o primo
que ocupara até então o trono bolão na Serra, circunstância que levou a família
a pedir ao Padre Barradas, que bem conheciam, que convencesse o menino de Abu
a voltar ao país e ocupasse o seu lugar agora vago.
E assim
se concluiu com chave de ouro, contrariando o rumo habitual da história, o
périplo de um príncipe que no exílio distante logrou preparar-se como poucos na
altura para uma missão de reconstrução e superação na paz, no labor e no culto
dos valores humanistas e cristãos de uma sociedade que fora sujeita às maiores
violências da guerra, do obscurantismo e da exclusão.
Ventura
de Sequeira voltou às margens do rio dos Cárceres, onde ocupou a cadeira de Beca[48]
ainda por longos anos, o suficiente para, com novas armas, as do conhecimento,
da sabedoria, da justiça e da compaixão, legar aos vindouros uma sociedade
harmoniosa e progressiva.
Não foi
em vão, porém, que a história da sua vida, tão rica quanto agitada, lhe ensinara
que os ideais têm de ser firmados em segurança e capacidade de resistência às
intempéries, como casa edificada sobre rocha e não areia, e foi por isso que o rei Sanai Ventura, a par da Escola, da Igreja e do
Tribunal, empreendeu negociar com os povos vizinhos na Serra, landumas, susos
e em especial com os limbas[49]
um tratado de defesa comum, que de futuro pudesse impedir que novas invasões
viessem a destruir a vida dos seus povos.
[1] Marés
altas e baixas
[2] Variação
ruidosa da maré nos rios. O rio Gâmbia terá sido por isso denominado de “Cantor”
[3]
Habitantes da Abissínia
[4]
Marabutos, clérigos muçulmanos
[5] Árabes (al-arab)
[6] Ou Gabu,
ou Kabu…
[7] Mandinga
[8] Etnónimo
do topónimo Jafada (hoje Cacheu)
[9] Os Sapes
da Serra Leoa dividiam-se em bolões, mais para o litoral, e limbas,
mais para o interior.
[10] O nome
deste rio evoluiu para a corruptela Scassos e depois Scarcies.
Também designado Kaba.
[11] Codé
[12]
Comércio
[13]
Intérprete
[14]
Lançados – comerciantes portugueses residentes nos rios da Guiné.
[15] Locais
ladinizados, auxiliares dos tangomãos.
[16] Baobá ou embondeiro, servia de escola, sala de reuniões, igreja e tribunal na aldeia.
[17] Adivinho,
sacerdote gentio.
[18]
Ritualista, guardiã da baloba.
[19] Feitiços
[20] Palhota
com feitiços em que são realizados os rituais animistas.
[21]
Práticas correntes nos pequenos reinos medievais da Guiné, para determinar
culpados de pequenos crimes, e até de ocorrências naturais, como a morte por
doença. Terá sido um dos estratagemas mais comuns para fazer escravos.
[22] Generais
[23]
Governadores sob o comando dos jagarafes.
[24] Um dos
reinos litorais, a norte dos de Salum, Sine e Baol, a sul do de Walo e a oeste
do de Dialof.
[25] Fruto
de que se fazia vinho.
[26] Espécie
de maçã com caroço, o qual é consumido como amêndoa.
[27] Planta com
raiz medicinal.
[28] Fruto
[29] Guizos
[30] Carne
salgada e secada ao sol.
[31] Grão
[32] Espécie
de malagueta.
[33] Fruto
[34] Tecidos
finos de algodão.
[35] Tecido
grosseiro de lã.
[36] Esta e
outras miudezas, trazidas da Índia e de Veneza, assim como moedas de baixo valor furadas, eram muito procuradas para adorno.
[37]
Conchas, pequenas e grandes, funcionavam como moeda na região do N’Gabu.
[38] Tecido estampado.
[39] Riscado
[40] Contas
e bagas decorativas de vários tamanhos.
[41]
Corruptela de Arras, cidade no norte de França.
[42] Nome
dado por Dinis Dias a esta baía (hoje Dakar), em homenagem ao chefe local da
altura.
[43] Idem.
Mais tarde os holandeses haviam de a batizar “Goedereede” (Boa Enseada). Gorée
é uma corruptela posterior daquela designação, na língua francesa.
[44] Jangadas
[45] Arados
[46] Pirogas
[47]
Tambores
[48] Rei
local.
[49] Ao
contrário dos Bolões, os Limbas tinham um sistema de defesa baseado em abrigos
subterrâneos em que se acoitavam quando eram atacados.
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