18 -Nos Cutelos do Fujão Matias
As investidas do corsário Francis
Drake à cidade de Ribeira Grande, ao serviço da rainha inglesa Isabel I, no
último quartel do século XVI, ao provocarem a fuga desordenada dos habitantes
para as ribeiras e montanhas do interior da grande ilha cabo-verdiana, terão
criado as primeiras oportunidades sérias de dispersão de fujões[1]
pelos cutelos de Santiago.
Pouco a pouco, os recantos mais
férteis das montanhas e planaltos do interior da ilha-mãe foram sendo assenhoreados
por ex-servos tornados donos de si próprios, dos seus funcos, dos seus animais,
das suas culturas, das suas decisões, assim Deus lhes mandasse as chuvas de
verão e de outono que lhes fizessem crescer palha e arbustos para o gado e
germinar, medrar e frutificar nas hortas o milho, o feijão, a mandioca, a
batata doce, amadurecer na ladeira as deliciosas papaias sob as umbelas protetoras
de largas folhas no topo dos finos e aprumados troncos, corar as mangas,
suspensas como brincos rosados das frondosas copas da mãe… Assim também a
abundância das culturas nos vales entretivesse os seus donos, deixando-os satisfeitos
com as colheitas, sem tempo para perseguições, e com dinheiro para comprarem
novos escravos que os substituíssem nas duras tarefas da lavoura… Porque
faltando as abençoadas chuvas, a carestia fazia com que a sua sorte se invertesse
perigosamente, os senhores olhando-os como capital perdido e a recuperar, os
governantes da Ribeira Grande acicatando os terratenentes para que lhes
pagassem impostos, incluindo os relativos a “mercadoria” extraviada, e até o
rei, em Lisboa, agitando-se com a perspetiva de corrosão da ordem estabelecida,
em cujas premissas, no que tocava a Cabo Verde, a mão-de-obra escrava pesava
sobremaneira. Nem tão pouco eles podiam acoitar-se mais acima, expondo-se menos,
forçados que eram a buscar o sustento mínimo nos vales, em investidas fugazes
às minguadas colheitas e magros rebanhos, pela calada da noite…
Quanto mais se ia deteriorando,
em finais do século XVII, o panorama económico e político na Ribeira Grande,
com os Vizinhos a serem afastados do comércio da Guiné e com a crescente relutância
dos quadros administrativos em comparecerem nos postos para que eram nomeados
pelo rei, mal remunerados e obrigando a morar numa cidade doentia, com a
correspondente e inevitável proletarização e deterioração da administração
pública e da eficácia do exército, tanto mais se degradava, em paralelo, a correlação
de forças e de poder entre as classes sociais, minadas por compadrios de promiscuidade,
carentes de normas, expostas à pequena corrupção de interesses imediatos e
comezinhos, num contexto em que as autoridades militares e judiciais perdiam progressivamente
capacidade penitenciária e punitiva, de tal modo alastrara a cumplicidade entre
os seus funcionários, muitas vezes próximos ou mesmo parentes dos criminosos
que supostamente deviam capturar, julgar e encarcerar.
O início do século XVIII foi marcado
pelo acontecimento rocambolesco dos autodesignados “valentes de Julangue”, que
logo em 1703 deixaram na vergonha uma força militar de 400 homens comandada
pelos capitães Francisco Araújo Veiga e Francisco Soares, deixando às
escâncaras a impotência do poder de então para resgatar os fujões que, vivendo
isolados nos cutelos, se amotinaram, armaram-se com zagaias, manducos,
pistolas, bacamartes, espadas, lanças e facas, resistiram, repeliram os
militares, voltaram a dispersar e a esconder-se, e assim selaram o seu estatuto
de trânsfugas destemidos e ciosos da conquista da liberdade a que haviam
forçado o protocolo escravocrata… Mais
ainda, quando a governação quis ao menos ter a última palavra com a prisão do
mentor dos fugitivos, Domingos Lopes, de nominho “Neto”, que a custo acabara
por capturar após uma década de perseguições goradas, ficou à vista quanto a
cumplicidade entre fujões, homiziados, forros e até com os próprios agentes de
segurança gangrenara as estruturas administrativas e militares da ilha, logrando
o Neto empreender uma fuga fácil e descarada em que voltou impune às montanhas,
levando consigo, para cúmulo, outros prisioneiros e mesmo alguns guardas.
Da oligarquia à
escravocracia
Com este episódio, os fujões e
homiziados, aliados aos forros[4],
deixaram demonstrado, avant la lettre, que em Cabo Verde a palavra escravocracia
resgatara o direito à sua etimologia. Mais ainda, os rebeldes deixaram claro
que não queriam sequer trabalhar por conta alheia, preferindo um campesinato de
subsistência a servir senhorios à jorna, fosse a que preço fosse, quando muito
incrementado por pequenos negócios de troca com os navios que vinham fazer
aguada nas praias, uma atividade que inaugurava um novo ofício, o das rabidantes[5],
protagonizado por mulheres, mais seguras que os homens na movimentação pelas
ribeiras, a caminho das praias.
Ao arrepio da ordem estabelecida,
muitos preferiam mesmo integrar as milícias privadas dos senhores das fazendas,
em geral também brancos da terra[6],
frequentemente com laços afetivos e familiares próximos, a troco da segurança,
alimentação e alojamento que por eles lhes era dispensada, pese embora o
compromisso de terem de se bater em refregas frequentes e às vezes fatais.
Em 1731, o Bispo D. Frei de Santa
Maria de Jesus, a pedido do Governador Francisco de Oliveira Grans, e
valendo-se da exemplar organização dos registos da Igreja, presente em todos os
recantos da ilha na pessoa dos párocos, traçava um quadro clarificador da
população de Santiago na altura: de um total de 18.083 habitantes de Santiago,
os escravos estavam reduzidos a 3.255 (18,1%); espalhavam-se pelo seu
território 11.935 forros (66%); e os mestiços de elite, ocupando a maioria dos cargos
de administração, organizações militares, empresariado agrícola e poder
político, ascendiam a 2.477 (13,7%); ao passo que os brancos, de origem reinol,
já não eram mais do que 398 (2,2%), incluindo os que moravam nas serras e
vales, pobres e iletrados. Um quadro que pode ser completado com o cálculo do
número de fujões que um outro bispo, D. Francisco de Santo Agostinho, avançara
duas décadas antes, que estimava ascenderem a seis centenas.
Quando, nas primeiras décadas do século XVIII, sobrevieram ataques externos ainda mais devastadores à Ribeira Grande, dos quais o de um outro corsário, desta vez ao serviço do rei francês Luís XIV, foi o mais demolidor, em 1712, a situação em Santiago era deplorável, fosse na vertente social, administrativa, militar ou na económica, e não foi por acaso que Jacques Cassard e as suas tripulações saquearam e incendiaram sem resistência a garbosa Cidade da Ribeira Grande, deixando-a extirpada e em ruinas irreversíveis, apesar de alegadamente dever estar na cidade uma milícia de 3.000 militares, certamente ocupados pelos senhores dos morgadios que se digladiavam com as suas milícias em contendas fratricidas.
A manifestação do caos na ilha de
Santiago haveria de agravar-se sobremaneira e de se evidenciar ainda mais,
atingindo um clímax que ninguém pudera prever, com a ascensão, em 1761, do
autointitulado “príncipe de Santiago”, António de Barros Bezerra e Oliveira, de
capitão-mor na Ribeira Grande a Governador, no estertor de um processo que culminou
em um beco sem saída, com a economia de rastos, as instituições em roda livre,
uma elite corrupta, desgovernada, quase totalmente dependente da perspetiva de
rendas do reino, e um povo divorciado da produção e do desenvolvimento, sedento
de uma liberdade sem deveres ou compromissos.
A cento e cinquenta anos de
organização e prosperidade haviam sucedido, pois, outros tantos de
desestruturação e declínio. Cabo Verde estava assim maduro, na segunda metade
do século XVIII, para sofrer bem de frente o embate do despotismo iluminado que
campeava em Portugal e na Europa… Após trezentos anos de ensaio do que teria
sido uma simples extensão administrativa de Portugal às ilhas de Cabo Verde,
estavam a chegar duzentos de regime colonial…
Spártaco, o miliciano
redentor
Eis, em breves linhas, o quadro de
que emergiu nos cutelos e vales das ribeiras de leste de Santiago a saga do
fugitivo Spártaco, cognome por que veio a ser conhecido Matias Freire, nas
décadas conturbadas do miolo do Século das Luzes, em que o padrão de um Cabo
Verde, arduamente desenhado e trabalhado como extensão do Reino de Portugal, autárquico
e burguês, com nobreza e clero importados da Metrópole, e um povo, por sua vez importado
dos Rios da Guiné, em vias de ladinização e libertação lenta, se transformaria,
em lume brando, em um modelo original de proletariado campesino, vagamente
anárquico, desligado de um poder agora manipulado por ex-nobres e ex-burgueses,
em deslocação da Ribeira Grande para a Praia, no que se refere aos poderes, e
para os vales e serranias da ilha de Santiago, no que se refere ao povo, sob
forte influência de um clero local já firmemente implantado, mau grado os
bispos, reinóis, marginalizados por uns e outros, terem garantido distâncias de
segurança, primeiro na Trindade, depois na Brava e nas longínquas ilhas de
Santo Antão e S. Nicolau, até voltarem, tardiamente, já em meados do século XX,
à nova capital, a Praia de Santa Maria.
Matias nascera precisamente na
Trindade em 1692, na Fazenda de João Freire de Andrade, entretanto tornada por
doação propriedade do bispado, e aos 20 anos, quando do assalto de Cassard a
Ribeira Grande, em 1712, era um escravo exemplar e servia com os pais o bispo Frei
Francisco de Santo Agostinho, que chegara em 1709, e de quem ele recebera, tal
como dos clérigos seus assistentes, em especial do Vigário Geral e
Mestre-Escola António Henriques Leitão e do pároco de S. Domingos, um
ex-militar, de uma família burguesa do Fogo, formado na Ribeira Grande, de nome
Manuel Monteiro de Macedo, catequese e instrução de ler, escrever, cantar e
contar.
O bispo Frei Francisco viria a
falecer em 1719 e foi durante a vagatura da Prelazia, que se prolongaria por
dois anos, que Matias, juntamente com alguns dos rapazes da guarnição da
Trindade, aproveitou a brecha para se juntar ao tropel de auto-libertos de
Santiago. Sem pré-aviso, o pequeno grupo de fugitivos subiu a Ribeira até Figueira
de Portugal, que bem conhecia das rixas entre morgadios e capelas em que
participara regularmente, mas sobretudo por ter integrado, quando Matias completara
20 anos, a milícia que o seu dono e bispo organizara, suprindo a apatia timorata
do Governador José Pinheiro da Câmara, partindo da Ribeira do Engenho, onde se
abrigara, descendo com um contingente de algumas centenas de populares armados,
arregimentados nas paróquias do interior, de Santa Catarina do Mato a S.
Lourenço dos Órgãos até Buguende, levando o comando de Cassard a retirar-se
para o mar, não sem que incendiasse primeiro o casario da cidade, o paço
episcopal e a biblioteca, e levasse mesmo os sinos das torres e os canhões do
Forte e dos Baluartes.
Matias e os seus companheiros de
fuga galgaram a Ribeira de Forno até Fontes de Almeida, uma zona de águas
abundantes habitada por camponeses forros, de onde treparam a Espinho Cheu,
junto ao Cutelo de Pedra Branca, a uma altitude à prova das rusgas de Meirinhos
da Serra ou Capitães do Mato, e por ali foram ficando uns meses, acolhidos por
um pequeno grupo de outros fugitivos evadidos há mais tempo da Ribeira Grande,
já alojados em funcos, com água e hortas por perto, e com famílias constituídas.
Mas a ilha de Santiago é extensa
e cheia de recantos discretos, e Matias, embalado, tal como os colegas de fuga,
jovens como ele, pelos relatos heroicos que circulavam no meio escravo sobre os
Valentes de Julangue, perspetivando um futuro risonho e colorido pela frente, a
condizer com os romances de cavalaria que lera nos serões eruditos da Trindade,
como Amadis de Gaula, ou Os Cavaleiros da Távola Redonda, cogitara um cenário que
o aproximasse desses bravos que ousavam rejeitar a servidão e lutar pela liberdade,
mesmo que para isso tivessem de empunhar armas.
E continuaram a fuga, tendo por
objetivo atingir a Ribeira de Julangue, nas terras de Santa Cruz, e aí tomarem
o gosto ao vigor e à segurança que só a liberdade usufruída e partilhada confere.
Evitaram passar por S. Domingos, na altura feudo da omnipotente e imprevisível família
Bezerra e Oliveira, atravessaram Caiada e Água Gato, passaram cautelosamente
pelos Órgãos Pequenos e foram esconder-se nas grutas de Robão Cal, sobranceiras
à Ribeira de Santa Helena, já à vista da Ribeira Seca, e por isso não longe da
Ribeira de Julangue, que fendia a Achada Duas Figueiras, entre a Ribeira dos
Picos e a Ribeira da Montanha. Um posto de observação e de refúgio ideal para
um tempo de estudo e de espera, com água acessível e dispensando qualquer
construção, que a gruta, ampla e confortável, supria com vantagem.
Nado e criado na Trindade, numa
das fazendas mais fecundas e produtivas da ilha, Matias estava familiarizado
com a natureza, não apenas nos produtos hortícolas que lá cultivara, feijões
diversos, milho, abóbora, mandioca, mas ainda saborosas frutas, quer as vindas
da Metrópole, como laranjas, figos, maçãs, melancias, marmelos, quer as
novíssimas e deliciosas papaias importadas do Brasil ou as odorosas mangas chegadas
da Índia e os cocos vindos das costas do Índico. Brincara mesmo nos ramos de
uma das calabaceiras mais antigas de Santiago, certamente com séculos de vida,
de que, pela quaresma, se colhiam os frutos pendentes para os abrir e lhes
introduzir mel e assim se obter, misturando-o com a polpa farinhenta, o
delicioso ponche de calabaceira. Mas a paisagem das encostas do interior, que
agora calcorreavam, exerciam sobre ele e os companheiros de aventura um encanto
novo, por um lado pela novidade de algumas espécies vegetais, como a gestiba,
utilizada para tratar cáries, ou a erva-cidreira, eficaz em infusões contra a
tosse, ou o funcho, muito apreciado pelas indispensáveis cabras, ou arbustos e
árvores de altitude, como o tortulho, a losna, a língua-de-vaca, a carqueja, o
dragoeiro, o espinho branco, a figueira brava, o marmulano… Ao encanto
silencioso da vegetação, que só a brisa do crepúsculo vinha agitar ao de leve,
juntavam-se, por outro lado, as aves que, usufruindo da proteção arredia das alturas, por ali
escondiam os seus ninhos, e enchiam o ar com cantos variados, desde o arrolhar
dos pombos aos pios estridentes dos andorinhões, até ao burburinho dos ranchos
de galinhas do mato vasculhando o chão, à chinfrineira dos bandos de pardais,
aos pios raros e discretos de francelhas e milhafres assassinos depois de
mergulharem das alturas sobre as suas presas, ao piar soturno das corujas pela
noite dentro, ao crocitar brigão e ruidoso dos corvos, ou ao silêncio sagaz de
uma ou outra garça vermelha à cata de insetos nas moitas. Já nas ribeiras,
abundavam as deslumbrantes passarinhas, coloridas e vigilantes em voos rasantes
pelas poças de água, as garças boieiras, de uma alvura angélica, pé ante pé na
pegada do gado em pastoreio, ou, ao escurecer, em bandos pacatos voando em
formatura a caminho dos seus dormitórios, nas raras copas de árvores
desfolhadas; ou ainda, quando desciam ao Litoral, à Achada do Portal ou à
Achada Baleia, à Praia Formosa, à Achada da Ponte, S. Tiago ou Santa Cruz, e ao odor fresco da
maresia se associava uma fauna abundante de aves marinhas, gaivotas irrequietas
e palradoras, alcatrazes de asas enormes, em voos altos e planados, rabos de
palha arrancando voos graciosos de rochas altas, por sobre as vagas, bandos de
pilritos debicando na areia pulgas do mar trazidas no vaivém das ondas…
A conquista do Paraíso
Para todos os efeitos, Matias e
os companheiros de evasão estavam a viver, em 1720, literalmente entre o céu e
a terra, o Ano da Graça das suas vidas, o verdadeiro, o supremo, o libertador.
Foram ensaiando descidas tímidas ao mundo mais real, pelo vale de Santa Helena,
travando conhecimento primeiro com outros fugitivos, depois com alforriados acomodados
com suas hortas em Caiombe e no Barril, e no ano seguinte, atingira Matias a
bela idade de 29 primaveras, perderam todo o temor de se mostrarem nos vales,
tanto mais que os próprios terratenentes da região, de Mendo Faleiro ao Poilão,
da Achada do Bargado à Achada Duas Figueiras ou até mesmo a Santiago e Santa
Cruz, no litoral, sendo eles próprios mestiços alforriados, uns por nascimento
e outros por testamento, viam nos recém-chegados às abas das suas propriedades,
fossem forros ou fujões, ou até mesmo homiziados[7],
mau grado os riscos que comportava o respetivo acolhimento, potenciais aliados
na preservação e exploração das suas terras, em contraponto com os agentes da
Administração e do Governo, que encaravam mais como sanguessugas a sorver com impostos e monopólios
o sangue do seu labor, e como concorrentes
disfarçados e opressores a travarem-lhes os negócios, do que como aliados na
manutenção de um sistema escravocrata moribundo.
O mesmo divisionismo se passava,
de resto, por essa altura, na hierarquia da Igreja de Santiago, com o sucessor
de D. Frei Francisco, D. José de Santa Maria de Jesus de Azevedo Leal, um
franciscano, ele sim mais interessado na pastoral que no governo da Diocese,
que se apressou a confiar ao seu Vigário Geral, António Rodrigues Leitão, a
quem investiu de plenos poderes para o efeito, a maçada de se ocupar dos bens
materiais e dos compromissos protocolares e de aturar as quezílias com que quer
os governantes seculares quer os próprios clérigos do Cabido e das paróquias armadilhavam
regularmente o trabalho de cura das almas, atrapalhando a missão nuclear do
clero.
O Padre Manuel Monteiro de Macedo, pároco em S. Domingos e em S. Lourenço dos Órgãos, onde mantinha, ele também, uma milícia privada, no sítio da Gamboa, estendia a sua influência, meio religiosa meio profana, a condizer com a sua proveniência da esfera militar, a toda aquela região, e não tardou que se apercebesse da presença de Matias e do seu pequeno grupo, que se apressou a convidar para integrar as suas hostes, vendo neles, que já conhecia da Trindade, potenciais colaboradores preciosos, instruídos, honestos, devotos, fortes e voluntariosos, novos Paulos capazes de percorrer aqueles montes e vales a catequizarem e a congregarem aquela malha humana, heterogénea e dispersa, mas firme e unida no propósito de se eximir a uma sina em cujo horizonte não se vislumbravam nem os portais da libertação espiritual nem a saída do túnel da pobreza material; havia de o conseguir reunindo todos à volta de um ideal, algo indefinido nos métodos e contornos, mas assente na ideia basilar da libertação de amarras formais e inibidoras que o Evangelho claramente desatava, a caminho das Bem Aventuranças; um objetivo a conseguir pela prática das regras de vida consagradas pelo Concílio de Trento: Mandamentos da Lei de Deus, Mandamentos da Santa Madre Igreja, combate aos pecados capitais, prática das Obras de Misericórdia… Um padre de personalidade forte, que lhe valera já desavenças em 1705 com o Governador Gonçalo Lemos de Mascarenhas ou, ainda há pouco, com o Vigário Geral, que pretendia substituí-lo nas suas paróquias, cedendo a pressões de alguns poderosos, que o consideravam desestabilizador, ao proteger e até amotinar forros, fujões e homiziados, e mesmo com o Bispo, com quem só veio a reconciliar-se mais tarde, em 1727, pela intervenção do Governador Francisco de Oliveira Grans, e do Ouvidor José da Costa Ribeiro, acabados de chegar, com mandato real para pacificarem o clima agitado em que vivia a ilha.
Sementeira agreste
Aos 38 anos tornara-se Matias o braço direito do Padre Macedo, à frente da Milícia de Gamboa, de duas dezenas de
efetivos, mas também como catequista nos diversos povoados da Ribeira dos
Picos, Ribeira de Santa Cruz, Ribeira do Salto e até na Ribeira dos Flamengos, deslocando-se
ao longo de cada mês a Jalalo, a Serelho, ao Toril, Mato, Bel-Bel, Achada
Leitão, Liberão, Cudelho, lugares de uma zona mais afastada da área de
jurisdição da Paróquia aos quais o Padre Macedo tinha menos tempo de se
deslocar com frequência, investindo por isso Matias da tripla missão de ensinar
o catecismo às crianças, instruí-las nos rudimentos da leitura, da escrita e
das contas, e transmitir aos adultos os novos ventos da liberdade, de cuja
conquista ele próprio e os seus companheiros eram exemplo, mas que tinha de ser
transformada em comunidade, com regras e objetivos, espirituais e materiais, como
era o do socorro aos aflitos ou o da morigeração de costumes que considerava
pecaminosos, alguns deles agregados insidiosamente a práticas religiosas.
Era o caso da esteira, um
ritual muito arreigado, de despedida aos defuntos, pelo qual a família do morto
convidava próximos, amigos e conhecidos, e até forasteiros, estendendo como
sinal uma esteira à porta, a velar o cadáver e a permanecer em vigília depois
do enterro, por tempo indeterminado, em geral não menos de uma semana, provendo
alimento e mesmo dormida para todos. O ritual começava por uma homenagem
sentida à alma do corpo que se finara, com choros protagonizados por
carpideiras em melopeias de cantochão, e recados para os que o morto iria
encontrar no além, em especial os recém-falecidos, expressos pelos remetentes
em mensagens proclamadas em tom rogatório, encadeadas e sobrepostas, algumas
delas escritas em bilhetes que eram enfiados sob a mortalha do cadáver, na
esperança de virem a ser entregues aos destinatários. A comida, cozinhada em
casa ou trazida da vizinhança, era abundante, e havia grogue para toda a gente.
Passado o funeral, o ajuntamento mantinha-se, e o ritual transformava-se, à
noite, de luzes apagadas, numa orgia sexual a que ninguém se furtava, incluindo
mulheres casadas, sob a justificação paradoxal de este ritual tácito obedecer
ao preceito bíblico do Génesis, “crescei e multiplicai-vos”.
Estas orgias repetiam-se ao ritmo
dos falecimentos, mas não eram as únicas que naquela sociedade incorporavam, de
forma discreta mas reiterada, comportamentos libertinos na sociedade do século
XVIII no interior de Santiago. Associados a festas religiosas, os reinados
consistiam na formação de confrarias, alegadamente piedosas, que elegiam
anualmente um rei e uma rainha e saíam por períodos mais ou menos longos em
visitas às casas, recolhendo esmolas e donativos alegadamente para o culto do santo
festejado. E se na origem tal tradição, ligada à Igreja e às paróquias, fora
protagonizada por homens honrados, que
canalizavam os proventos recolhidos para a manutenção das obras da sua
paróquia, a tradição degenerou, e populares menos zelosos do sagrado passaram a
organizar peditórios por conta própria, fazendo-se passar indevidamente por
confrarias, e gastavam o dinheiro e os géneros recolhidos em festas de que o
pecado da gula e o da luxúria eram uma vez mais o verdadeiro móbil.
Também a festa das Cinzas, cuja
natureza litúrgica no limiar da Quaresma é apelar à penitência, lembrando, com a
prática de jejum e de abstinência, que “somos pó e que em pó nos
transformaremos”, se convertera em dia de folguedos, de comida e bebida
abundantes, que mais uma vez culminavam em sexo, ao ponto de se tornar o dia
do ano em que numerosas donzelas perdiam a virgindade, consumando-se uma outra
tradição, dita do foro, que consistia em cada homem oferecer nesse dia
mel a uma mulher, fosse ela esposa ou não, a qual ficava obrigada a dormir com
ele.
O calendário destas tradições e
ritos libertinos, em que comer e beber até à emriaguez e fazer sexo integravam
o cardápio, alargava-se às sambunas[8],
festas protagonizadas por grupos de mulheres, que dançavam e entoavam cantos
brejeiros acompanhados de batidas ritmadas das mãos em trouxas de pano, que apertavam,
sentadas, entre as coxas, criando variações rítmicas, as quais, alternando
momentos ora de lentidão macerada, ora de repiques frenéticos, estes designados
de txabêta, encadeados e progressivos, logo traduzidos em movimentos
ágeis dos pés das dançarinas tendo como efeito numa convulsão balanceada das
nádegas, a que chamavam da cu torno, acompanhado de rotações lentas do
corpo e de flexões igualmente lentas, as transportava para um êxtase que lhes beatificava
o rosto e vidrava os olhos, desembocando em um estado entre o místico e o
transe, nos limites da possessão e na fronteira do profano para o religioso e da
mística metafísica e cristã do além para a crença animista nas almas penadas
que regressam, se apoderam de corpos vivos, os possuem e comandam, até decidirem voltar ao mundo invisível mas
poderoso dos que já foram.
Se, por um lado, a promiscuidade
libidinosa que transparecia das festas deste povo, rebelde, pobre e abandonado
à sua sorte, traduzia uma espécie de fracasso da ação morigeradora da Governança
e da Igreja, evidenciando falhas na erradicação pretendida de tradições
profundamente implantadas numa matriz animista que desconhecia o pecado e tudo justificava
por forças misteriosas de espíritos que, como explicavam os jabacouces,
vagueiam e se insinuam, ao sabor de forças misteriosas, em corpos que se
sucedem de geração em geração, alterando-lhes o comportamento ou até
comendo-lhes a alma e a vida, não era menos verdade que vingava no seu seio,
com carácter de perenidade, uma personalidade nova, que perdera roupagens
gentílicas mas guardara as vibrações mais profundas da sua intuição cósmica, ao
mesmo tempo que, ladinizadas nas fazendas e paróquias da Ribeira Grande,
Alcatraz, Trindade e outras, estas pessoas tinham adotado a religião cristã,
ligavam-se ao Messias Redentor e Libertador, e aceitavam sem conflito a
catequese, os sacramentos e os rituais que o Padre Manuel se encarregava de
garantir, percorrendo a região ou delegando em diáconos e catequistas, como era
o caso de Matias, mesmo se fazia vista grossa ao rigor da observação dos
costumes preconizados pelos mandamentos que pregava e aos pecados que
condenava. Havia sempre uma porta de saída, o sacramento da penitência, que os
livrava da má consciência, a troco de uma confissão de fraqueza - “mim é
coitado”! – e de umas rezas purgatórias, e em última instância lhes franquearia,
como compensação às agruras da vida, as portas do céu, onde reinava um Deus
omnipotente, mais amigo que castigador, e vagueavam os espíritos dos seus entes
queridos a quem tinham levado a alma, em regime nómada, entre o além e o aquém…
Caminhos de redenção
O Padre Manuel conhecia muito bem
todos os requebros da personalidade e das convicções deste povo real e único, e
por isso elegera com clareza três vetores de atuação da Igreja, de que ele era
o responsável direto, neste vasto campo de trabalho, constituído pelos corpos e
as almas que davam vida ao vasto território da sua jurisdição paroquial, uma
longa faixa que ia, a oeste, de Praia Baixo a S. Domingos e Boa Entrada, até
aos limites das paróquias de Santa Cruz e S. Miguel, a nordeste, para além do
Monte Chaminé, Poilão e Bel-Bel, até à Ribeira dos Flamengos, a norte.
A primeira das suas preocupações
era, como se impunha, a manutenção da fé dos crentes e o seu aprofundamento,
mantendo viva a pregação da doutrina da Igreja, garantindo a administração dos
sacramentos, do batismo ao matrimónio, da penitência à extrema-unção, e
celebrando a Eucaristia o mais possível, percorrendo aos domingos,
alternadamente, as quintas de massapé e de sequeiro dos vales e encostas, e
mesmo alguns dos ajuntamentos de fujões e homiziados que se abrigavam mais
acima, nos cutelos, em que evangelizava e instruía, com homilias e conselhos,
homens, mulheres e crianças, e ouvia em confissão quem já tivesse atingido
rebates de consciência e se quisesse aliviar do peso dos pecados.
A segunda das três grandes
preocupações do Padre Macedo era, claramente, a de proteger todas as suas
ovelhas dos agentes do poder, em que incluía o Governador, que considerava
fraco e irrelevante; o Ouvidor, que acusava de perseguir os fracos e de
proteger os poderosos, em vez de promover a justiça; e até o Vigário Geral, seu
superior hierárquico, a quem apontava o dedo por o considerar aliado dos
poderes terrenos em vez de se dedicar à cura das almas. E como o braço militar
da governança se tornara irrelevante e corrupto, cedendo à proliferação de
milícias antagónicas de proteção privada, viu-se forçado a estabelecer ele
também a milícia da paróquia, com o fim de impor respeito a oportunistas,
criminosos e assaltantes, que proliferavam na ilha.
A terceira preocupação, e também
a mais ousada, nobre e criativa do Padre Manuel, prendia-se com a convicção
mais profunda que o tocava genuinamente, e que o levara a aceitar o sacerdócio
depois de ser militar: tornar verdade a máxima que tanto marcara Matias, quando
foi seu aluno na Trindade, exarada pelo evangelista S. Lucas, citando Jesus: …”enviou-me
para proclamar a libertação aos cativos e a restauração da vista aos cegos,
para pôr em liberdade os oprimidos”… Sabia bem, pelo traquejo que fora ganhando
com as repetidas disputas havidas quer com o Governador, quer com o Ouvidor, quer com alguns dos morgados e mesmo com o
Vigário Geral, que esta terceira tarefa que se impunha a si próprio como
prioritária era a mais árdua, por ferir interesses da ordem estabelecida, e por
isso tratara de se munir ele também de um corpo armado de prontidão na Gamboa.
Matias, Fortunato e Salvador, os
três ex-fugitivos da Trindade, foram assim, a partir de 1730, primeiro sob a
orientação do Padre Manuel Monteiro de Macedo e mais tarde, após a sua morte, em
1748, sob o comando do próprio Matias Freire, entretanto ordenado também presbítero,
e durante vários decénios, verdadeiros apóstolos enviados pelas ribeiras que
sulcavam as bacias de S. Domingos, Praia Formosa, Ribeira Seca, Ribeira dos
Picos, Ribeira de Santa Cruz e Ribeira do Salto.
A Milícia da Gamboa, cujos
efetivos patrulhavam regularmente ribeiras e cutelos, foi por esses tempos e
até à chegada à ilha, em 1764, do contingente de tropas enviadas a Santiago
pelo Marquês de Pombal para estabelecer a ordem metropolitana, um escudo duplo
de proteção do povo da região, por um lado contra abusos dos poderes anárquicos
reinantes e por outro dos malfeitores sem rei nem roque que assaltavam para
roubar e, havendo resistência, até matavam… A proteção da Milícia aos povoados foi
nesse período o garante da concretização do primeiro objetivo do Padre Macedo,
o da catequização das famílias, criando um clima de paz e segurança favorável à
emergência de preocupações do foro espiritual e metafísico. Tanto mais que eram
os próprios milicianos que ministravam os ensinamentos evangélicos e preparavam
os atos litúrgicos, ficando as confissões e restantes sacramentos para a
passagem regular de um padre.
Foi nesta vertente de miliciano-padre
que Matias angariou o epíteto de Spártaco, numa evocação da história do famoso
Espártaco, herói trácio que, tornado escravo, liderou uma revolta de libertação
contra a Roma Antiga, história essa que o próprio Matias relatava, incentivando
quem o ouvia a libertar-se da canga de uma opressão que, deixada para trás por
via de alforria ou de fuga, era mister que fosse exorcizada de vez do próprio
pensamento, em nome de Jesus, que veio “para pôr em liberdade os oprimidos, e
proclamar o ano da graça do Senhor”.
A porfia mais tenaz de Matias foi,
porém, a do combate aos costumes lascivos da concupiscência, de tão grudados
que estavam a tradições gentílicas ancestrais, entretanto insidiosamente enxertados
em ritos da própria liturgia cristã… Seria a grande fome de 1747-1750, matando
indiscriminadamente velhos, jovens e crianças, ao ponto de ter havido casos
desesperados de antropofagia, a dar azo a Matias de brandir o terrível
argumento da sentença de um Deus, que acolhia como Misericordioso, mas capaz de
castigar o pecado com pragas devastadoras, como fizera no Egito para libertar o
seu povo da escravatura, matando os primogénitos dos opressores, incluindo o do
próprio Faraó, e que aqui usava para mostrar a quem O queira seguir que abomina
a luxúria, tal como fizera com Sodoma e Gomorra.
Consta que a partir dos anos 50
de 700, a escassa população que resistiu, naqueles vales devastados pela fome, de
S. Domingos a S. Miguel, guiada pelo santo, forte e sábio Padre Matias, qual
Espártaco libertador da servidão e do pecado, pautou o seu viver pelas
virtudes teologais e cardeais, esforçando-se por fugir, quanto a fraqueza
humana o permitia, aos pecados mortais e mesmo aos veniais, cumprindo os
mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja, praticando as Obras de
Misericórdia, por forma a merecerem as bem-aventuranças eternas, quando Deus se
servisse de receber no céu as suas almas.
Entre avanços e recuos, sucessos
e insucessos, brigas e reconciliações, fartura e fome, nascera em Santiago,
torneada por uma história intrincada, única e irrepetível, uma sociedade nova, vincadamente mestiça, não só na dimensão étnica, mas igualmente nas vertentes idiossincrática, culturai, religiosa…
[1] Esvravos
foragidos
[2] Estação
das chuvas
[3]
Planícies férteis das ribeiras
[4] Que
foram libertos, alforriados
[5] Teria
surgido por esta altura esta figura, reservada a mulheres, de comércio
informal.
[6] Nova
burguesia de libertos, qualquer que fosse a cor da pele
[7]
Foragidos da Justiça
[8] As
sambunas, folguedos populares aqui considerados como festas em separado, faziam
normalmente parte do batuco, sucedendo à finaçon, um momento dedicado ao
lamento e à crítica social.
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