21 - Salândia - ficção - Um dia na vida de Gael
1. Um dia na vida de Gael
A janela ao fundo do corredor do
primeiro andar, ocupado pelas diversas salas, bibliotecas, digitotecas,
auditórios e consultórios da Axis[1],
de fronte à longa alameda de acácias rubras que ladeiam a avenida de acesso à
mansão, cobrindo-a por inteiro da sua folhagem ténue e binada, de um verde
tenro, de que no verão irrompem fartos tufos de flores rubicundas de fogo, aqui
e ali matizadas de pétalas brancas raiadas, elas também, de vermelho, e no
outono exibe longas e luzidias vagens negras e nutritivas, oportunamente
recolhidas e armazenadas junto ao cabril pelo robô de serviço, é ampla e alta,
de estilo arte nova, à laia de vitral, e não abre, deixando apenas entrever a
quem olhe pelas vidraças marteladas, de tamanhos irregulares mas simétricos, de
uma beleza entre clássica e exótica, o cenário verde-rubro a evocar uma nave de
catedral gótica, que o grande portão de ferro forjado, simbolizando uma trama de neurónios em colorida fusão, rematando em arco
ogival apontando para o alto, também em volteios de arte nova, ao fundo da alameda, encerra ou franqueia,
ao ritmo das saídas e entradas de viaturas de familiares, cooperantes e
visitantes, num contraste rebuscado com os automatismos ocultos que parecem
dar-lhe vida e entendimento próprios, traduzidos não apenas no rotineiro mas
ágil e silencioso abrir e fechar, sem fechaduras, dobradiças ou gonzos, numa
espécie de geometria no espaço, mas humanizado
outrossim por uma voz doce e acolhedora vinda de um intangível algures
que, a quem sai, deseja boa viagem personalizada, e a quem entra saúda com
boas-vindas a cada uma e cada um dos ocupantes, indicando logo o lugar de
parqueamento programado, se no subterrâneo ou no exterior, e até rastreando
cada veículo e avisando quem o conduz, se algum pormenor carece de uma
intervenção na oficina comunitária, ou se o nível da energia do veículo, se
mais vetusto, demanda reabastecimento.
Paradoxalmente, seriam as grandes
potências económicas, tecnológicas, militares e nucleares dominantes na
primeira metade do século XXI a ditar, por absurdo, a emergência de pequenos
países, na sua maioria insulares, como Madagáscar, Zanzibar, a Maurícia e as
Seicheles no Índico, Timor e Singapura no Extremo Oriente, Cuba e as Ilhas ABC
nas Caraíbas, Páscoa e a Polinésia no Pacífico, ou os arquipélagos da
Macaronésia no Atlântico, quando se perderam em guerras fratricidas e
apocalípticas que só por um triz não comprometeram a própria subsistência da
Casa Comum da Humanidade, mas deixaram em ruínas continentes inteiros, numa
altura em que o Antropocénico emergira havia pouco mais de 200 anos, ameaçando inverter,
com as sucessivas revoluções industriais invasivas, os equilíbrios entre a
primazia do Cosmos sobre a presunçosa supremacia humana, exacerbando o domínio
do homem sobre os outros seres e sobre os outros homens, incapazes de adequarem
as conquistas tecnológicas à sustentabilidade do Planeta e de toda a Natureza,
e de apreenderem a lição deixada pelas consequências da soberba ou
obscurantismo de todos os grandes impérios históricos da humanidade, desde a
Mesopotâmia à Pérsia e ao Egito, no Médio Oriente; ao Mongol no Extremo
Oriente; ao Maia, ao Huari, ao Inca e ao Azteca, nas Américas; ou ao Grego, ao
Romano e ao Otomano, na Europa; e mais recentemente, ao Britânico, ao Espanhol,
ao Francês e ao Português, de uma abrangência globalizada, colonizadora e
dispersa, todos extintos ou reduzidos à sua expressão modesta e articulada com
os demais povos.
A Salândia, emergindo de um
pequeno país arquipelágico atlântico do Trópico de Câncer, no extremo sul da
Macaronésia, de dez ilhas e dezasseis ilhéus, que tomara o nome do cabo mais
ocidental do continente africano, o Verde, mapeado, na visão cósmica da Renascença, pelos portugueses e
povoado pelos portugueses e guineenses em meados do século XV, com uma
população oscilante, que só no século XIX ultrapassaria os cem mil habitantes,
ganhou especial importância no século XXI, devido às características
morfológicas, climatéricas e sobretudo humanas das duas principais ilhas
salineiras, Sal e Boa Vista, e das suas populações, ao mesmo tempo altivas e
acolhedoras, que foram atraindo fluxos crescentes de turistas amantes de sol,
de mar e de paz, autonomizando-se administrativamente nos anos 60 do século XXI
como terceira região da República de Cabo Verde, a par da de Barlavento, com as
ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia e S. Nicolau, e os ilhéus dos
Pássaros, junto a S. Vicente, e o Branco e o Raso, entre Santa Luzia e S.
Nicolau; e da de Sotavento, com as ilhas do Maio, de Santiago, Fogo e Brava, e
o ilhéu de Santa Maria, na baía da capital, Praia, e os de Areia, Grande,
Rombo, Baixo, De Cima, Do Rei, Luís Carneiro e Sapado, a norte da Brava.
O Istmo da Tortuga, de 300 metros
de comprido por 60 de largo, incluindo uma ponte em arco, com um vão de 20
metros de altura, para a navegação de recreio entre as marinas de Regona e Fontona,
permite grande fluidez ao intenso tráfego gerado pelo Vertiporto, ao passo que
a atividade portuária comercial da ilha se processa em Palmeira, e a de
cruzeiros se concentra a sul, no porto de águas profundas da Baía de Ervatão, a
norte de Sal Rei, na ilha da Boa Vista, sendo o tráfego entre os dois assegurado
pela Frota Interportuária rápida NDPH[14],
que garante uma naveta entre Ervatão e Palmeira, uma distância de mais de 50 quilómetros
percorrida agora comodamente em apenas quinze minutos.
O grupo de scarabistas[15],
uma dúzia de adolescentes entre os 13 e os 17 anos, que hoje competiam na pista, agora
adaptada a circuito de velocistas, construída inicialmente pelos italianos em
1939 para escala de aviões de longo curso entre a Itália e a América do Sul,
batizada então de Aeródromo Internacional da Ilha do Sal, comprada em 1947 pelo
Governo de Lisboa e rebatizada com o topónimo de Espargos, e depois renomeada
Amílcar Cabral, após a independência, em 1975, refletia fielmente o atual cosmopolitismo
da Salândia. O Gael é tetraneto de irlandeses que em finais do século XX se
fixaram em Santa Maria para montar um bar; os pais do Yang vieram do Mindelo, de
uma família oriunda de Zhuhai, e exploram no Maxi-Mall da Hortelã uma das lojas
de pronto-a-vestir do grupo Yanling; os pais da Rafaela são netos de foguenses
e dedicam-se ao comércio de vinhos e bebidas espirituosas; o Adulai tem sangue fula, do pai, que lhe deu
o nome, e a mãe é oriunda da Moldova, os dois a trabalhar no NuTReS; o Murillo
tem as suas raízes nos USA, de imigrantes mexicanos, e os pais exploram um
restaurante na Marina de Fontona; O José, o Noah, a Sofia, o Enzo, o Demba, a Joana
e a Melissa são de famílias há muito estabelecidas nas ilhas de Cabo Verde, por
isso genuínas representantes da miscigenação cultural e histórica que
caracterizam este país, outrora conhecido por “Paraíso de Morabeza”, a maior
parte delas com atividades ligadas, direta ou indiretamente, ao Turismo.
Terminada a competição, e após a
passagem pelos balneários, que funcionavam no antigo hangar de manutenção, na
parte sul do circuito, todo o grupo rumou a Terra Boa, para exercícios de
descompressão, nas áleas de palmeiras de saia, casuarinas, jacarandás e acácias
rubras que se perfilam no interior da floresta de 22 hectares que cobre a zona,
até às proximidades do Morrinho de Açúcar e de Monte Grande, agora também
florestados, abrigando, sob as copas de tamarizes africanos, espinheiros
brancos, acácias amarelas, sicómoros e tamareiras atlânticas, numerosos bandos tagarelas
de galinhas do mato, e até raposas das ilhas,
essas discretas e sagazes, trazidas da América, e graciosos antílopes,
para os quais foram previstas algumas clareiras férteis.
A terceira e última ACD do dia deste programa de estruturação física e mental promovido pela Axis ia desenrolar-se à tarde em Fiura, no extremo nordeste da ilha, pelo que o Gael e os companheiros foram almoçar no Kraka, com a monitora de mergulho, Amanda, chegada de Sal Rei, um restaurante muito procurado, por serem ali os pratos de marisco os mais económicos, dado que provém de aquicultura, trazido na hora dos viveiros-gaiola, ali ao pé.
Poço de Fiura Piscina natural da Buracona
A oração de sapiência de hoje
estava a cargo do ancião Joel do Rosário, um dos preceptores[18]
mais conceituados da atualidade, vindo expressamente de S. Nicolau, onde, aos 102
anos, lidera ainda um grupo de investigação neurológica na Universidade
Internacional do Caleijão. Nascido na Ribeira Brava em 2008, de uma família
distinta, Joel fora ainda criança para Baiona, onde o pai seguia uma carreira náutica,
e aí fez os seus estudos básicos, estagiando na ESTIA[19],
uma Escola de engenharia de ponta, onde conheceu um grande cientista de origem
maurícia, biólogo e filósofo, que o marcou profundamente e o encaminhou para uma
longa carreira de pesquisa e partilha de saberes.
O tema do dia era “O Desporto e a
Mente”, que o preceptor, ele próprio tendo sido até há pouco praticante de
desportos de mar, estava à vontade para desenvolver, e com o qual encantou a
assembleia, entusiasmada com os conceitos de simbiose entre os neurónios
e axónios cerebrais com o ecossistema numérico; do desequilíbrio
controlado de alternância de teses e antíteses, gerador de sínteses de inovação;
da sociedade fluida, em que o poder circula, atua e se certifica na
horizontal, ao jeito das antigas cibermoedas, e não na vertical, um axioma
determinante no modo de governação das pacificracias; do cérebro coletivo,
como o que naquela sala se materializa já na base de dados do CID, municiadora
de inovação e desenvolvimento; da informação autocatalítica, carregada
em memórias periféricas dos CID, com capacidade de deteção de falsidades, uma
garantia indispensável de credibilidade…
Todos estes e outros conceitos, carregados,
testados e depurados por uma EDAN[20]
de IS, onde se lhes adicionam e assimilam as sucessivas e regulares
contribuições dos participantes nas ACD e em outros eventos formativos,
enriquecem paulatinamente o SAGS[21],
uma unidade de gestão alimentada pelo NuTReS e pelos sistemas de gestão dos
restantes núcleos governamentais, filtrados pelas EDAN e convertidos em
posturas pelo Governo Regional da Salândia (GRS).
(continua)
[1] ONG
promotora de eventos formativos, de desporto, competição, investigação e
desenvolvimento cultural.
[2]
Inteligência Sintética, originariamente conhecida por Inteligência Artificial.
[3]
Dispensário de Informação Partilhada, um dos Serviços Públicos de nova geração,
a par dos de Educação, de Saúde e de Garantias Cívicas (antiga Segurança
Social).
[4] Pequeno
veículo, modelo mais recente da geração dos antigos skates e segway,
de 4 rodas, as da frente muito pequenas, movido por uma célula vitalícia de
tório (Th, combustível de uma massa atómica concentrada que substituiu a partir
de meados do século XXI os combustíveis fósseis e elétricos).
[5] Geração
de aeroportos do século XXII, para aeronaves DAV (Descolagem e Aterragem
Vertical).
[6] Uma das
ilhas artificiais projetadas na XXI Legislatura dos Governos Gerais de Cabo
Verde, e concluída em 2074, por altura das celebrações do Centenário da
Independência.
[7] Ações de
Curta Duração
[8]
Almofadas de peles de animais recuperadas nos matadouros, de cabritos e suínos,
outrora confecionados artesanalmente para transportar água ou leite.
[9]
Conhecida posição de ioga para eliminação de toxinas, com efeitos de perda de
peso, eliminação de problemas respiratórios e outros desconfortos.
[10] Outra
das posições do ioga, que promove o afastamento dos quadris e combate a
ciática.
[11] A
seguir aos sistemas de governo históricos, como as teocracias, oligarquias,
plutocracias, monarquias, autocracias, anarquias ou democracias, nos finais do
século XXI, após a implosão dos populismos, que desaguou na dispersão do poder
por pequenas células geridas por sábios, o mundo compreendeu finalmente a
inutilidade do domínio bélico, e proliferaram as nações em que o mantra dominante
passou a ser o da paz, da concórdia e do entendimento cooperativo entre povos e
países.
[12]
Designações correspondentes às dos antigos infantários, escolas e
universidades.
[13] Núcleo
Tecno-Económico da Região da Salândia. Como o acrónimo sugere, e em linha com o
carácter pacifista vigente, o NuTReS é um organismo orientado para o sustento
alimentar e anímico das populações, e pautado por princípios rigorosos de
sustentabilidade ambiental, congregando competências de vários dos antigos ministérios,
como o da Economia, o das Finanças, o da Agricultura, o da Indústria e
Tecnologia…
[14] Navios
Deslizantes de Propulsão Híbrida
[15]
Tripulantes de scarab.
[16] Uma
tecnologia de química neutra descoberta há quase 100 anos, mas aplicada apenas
desde os anos 80 do século XXI.
[17] Centro
de Investigação e Desenvolvimento
[18] Título
sucedâneo, na nomenclatura académica, dos de Mestre ou Professor, recuperando
uma categoria mais antiga, do tempo das monarquias, mas que se ligava melhor ao
papel de intérprete do saber, e menos ao da transmissão de um conhecimento “ex
cathedra”.
[19] École
Supérieure de Technologies Industrielles Avancées.
[20]
Estações de Desambiguação e Avaliação de Notícias.
[21]
Servidor de Apoio à Governança da Salândia.
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