22 - Bela Dita - Cidadela do Conhecimento
Quando percorremos, na Ilha da
Boa Vista, a Via Rápida Diagonal (VRD), entre Ervatão-Norte e Ervatão-Leste, deparamo-nos,
sensivelmente a meio caminho, à nossa esquerda, com uma imponente orla de
algumas dezenas de metros de calabaceiras majestosamente alinhadas, de espessos
troncos, farta ramagem e abundantes frutos oblongos de um verde aveludado, suspensos
de pedúnculos longilíneos, formando como que a sebe fortificada do portal de acesso
quase virtual a uma herdade discreta, entre os picos de Salamansa e Joaquim
Barros, os dois postados quais vigias de algum tesouro misterioso e guardado a
recato, do cimo respetivamente dos seus 239 e 156 metros de altitude, deixando
porém vislumbrarem-se, pelos interstícios dos troncos, copas nutridas de
fruteiras várias, de que sobressaem o amarelo vivo de limões e o vermelho
arroxeado e intenso de romãs maduras.
Ao longo do amplo vale do Rabil, desde a Fonte Domingos Marcelo à Fonte Carqueja, por entre bosques esparsos de tamareiras, papaieiras e mangueiras, sucedem-se, à esquerda e à direita, tenros prados verdejantes, bananais, canaviais de açúcar e extensas campinas floridas, a perder de vista, até ao sopé dos morros mais elevados da Ilha, a sul: o de Santo António, de 378 metros, e o da Estância, de 390, ambos ostentando encostas florestadas com espécies trazidas nos anos 70 de 2000 da Mauritânia e do Brasil, como mafumeiras, plátanos americanos, ucanheiras, baobás e nins, entremeadas de tamarindos, e coloridas aqui e ali de majestosas copas de paineiras cor-de-rosa.
Numa ilha em que a beleza ainda se
faz de contrastes, já não pela premência antiga da aridez, mas, ao contrário,
pela variedade dos tons de verde e do florido das culturas, entrar no reduto a
todos os títulos surpreendente de Bela Dita impõe-se a quem por ali passe,
tanto mais que, certamente devido à baixa pressão demográfica que até então se
fizera sentir na ilha, só no segundo quartel do século passado as suas ricas potencialidades
foram sendo descobertas, reconhecidas e exploradas, desde logo as agrícolas e florestais,
de seguida as ambientais, e só mais recentemente as de aproveitamento cultural
e científico, como a seguir descobriremos.
A configuração geomorfológica de
Bela Dita, em caprichoso anfiteatro, confinando, à laia de estádio de grandes
proporções, uma várzea de chão de massapé[1],
mesmo que de apenas alguns hectares de superfície, encerra um microcosmo esplendoroso,
tão contrastante com a planura nivelada do percurso, quanto inesperado e
multifacetado, porém sabiamente circunspecto.
Dos montes Forcado e Caçador, os
terceiro e quarto mais elevados da ilha, de 369 e 355 metros, respetivamente,
descem, de norte para sul, os três afluentes da Fonte Branca, agora uma
aprazível lagoa no meio da amena veiga, atapetada de nenúfares, sobre cujas
águas serenas se curvam e espelham as copas pendentes de salgueiros chorões, enquanto
a oeste, do Monte Figueira Velha e do Morro Lume Credo fluem os Regatos de Nova
Sintra, sulcando a várzea até deixarem preguiçosamente o leito à vista do
bosque de calabaceiras, marulhando tranquilamente por entre as suas raízes espraiadas,
como se fosse seu mister regá-las, para
de seguida o retomarem, a caminho da Ribeira do Rabil, depois de se esconderem
por breves momentos no canal, por debaixo da Via Rápida.
Bela Dita tornou-se assim, nas
encostas e no subsolo, a cisterna de todo o extenso corredor atravessado pela Via
Rápida, do Deserto de Viana a Curral Velho, alargando-se, de oeste para leste, do
Rabil a Passo Conde. De tal modo a água superabunda, que toda a várzea interior
de Bela Dita pôde ser declarada zona protegida não selvagem em que apenas podem
ser cultivadas flores e fruteiras, sob a orientação atenta do PIAF[3],
instalado na ladeira leste.
Foi no sítio de Nova Sintra,
preservando contudo, diligentemente, a ruína da mansão dos Andrade, que na
década de 70 de 2000 fora instalada a ALCA[4],
inserida na Rede AVP[5]
de Cabo Verde, uma iniciativa de um grupo de jubilados ativistas eméritos que
haviam seguido carreiras humanistas e científicas no sistema de ensino do país,
depois prosseguidas em Singapura, e que a seu tempo foram responsáveis pela
superação da perigosa crise dos alupecistas[6],
evitando que se alastrasse de Santiago às ilhas de leste. A origem da ALCA reporta, com efeito, ao
período de há um século atrás, de 2012 a 2015, quando em Sal Rei, na sequência
do forte incremento do Turismo que então a sua operação charter fizera
emergir na ilha, um importante operador, pioneiro na promoção de Cabo Verde
como destino turístico, cujo lema era “Turismo, Indústria da Paz”, montou o
Projeto Triplo Salto, em homenagem ao grande atleta Nelson Évora, com que
visava, em jeito de contrapeso à mutação social gerada pela súbita presença de
visitantes estrangeiros, ajudar a conferir às crianças e jovens das escolas um
reforço de qualificações que lhes permitisse virem a contribuir decisivamente,
no decurso das três etapas do Sistema Escolar de então, para que a sociedade
local se tornasse rapidamente beneficiária e progressivamente agente ativa da
transformação económica e social que o Turismo potencia, cultivando e
preservando valores culturais e éticos arreigados na tradição local. Com a
cooperação, aliás entusiasmada, dos altos funcionários do Ministério da
Educação, à época tutelado por duas mulheres notáveis, primeiro Vera Duarte e
depois Fernanda Marques, e bem assim do pároco de Sal Rei de então, Paulo Vaz,
que criara uma importante Escola no Centro Social Boa Esperança, a equipa de
professores da ilha passara a dispor de sessões de reciclagem na língua
portuguesa e em educação musical por monitores especializados e artistas vindos
de Portugal, financiados por dois operadores e pela Câmara Municipal, então presidida
por José Pinto Almeida, os quais ministravam também aulas dessas duas matérias
aos alunos[7],
desde a pré-primária ao quarto ano de escolaridade, até que os docentes do
quadro tivessem completado a reciclagem. Um projeto que durara três anos, mas
que fora interrompido em 2015, e por isso não chegara ao objetivo que se
propusera de se estender aos graus do Secundário, quando a iniciativa passou
para a responsabilidade da Direção de uma Associação entretanto constituída
localmente para o efeito, que não vingara à época, mas cuja matriz
universalista e cooperativa permanecera latente nas memórias e nos anseios
daquele grupo de alunos e futuros reputados fundadores, como veio a
manifestar-se na criação e expansão da Cidadela do Conhecimento de Bela Dita,
aqui descrita.
Desde então, a ALCA tem provido
não só o sistema de ensino da região e do país de quadros eminentemente
qualificados e cotados na vertente pedagógica, comunicacional e diplomática,
como tem garantido prestações de qualidade internacionalmente reconhecida em
postos de responsabilidade de variadas empresas, mormente do Turismo, uma
atividade outrora olhada de soslaio na ilha, por ser considerada naquelas
circunstâncias exógena e intrusiva, mas
agora valorizada e elevada ao topo das
carreiras profissionais mais respeitadas, disputadas e remuneradas, bem como em
diversos organismos de representação internacional e de formação avançada, no
país e no estrangeiro.
O primeiro gestor da ALCA foi,
logo desde o seu lançamento, em 2076, Imanuel Cohen de Brito, um dos mais
distintos discípulos do conhecido lente Joel do Rosário, ainda docente, embora
jubilado, na prestigiada UIC[8].
Tendo concluído estudos de Filosofia na mítica Sorbonne, a seguir ao exigente
curso de Gestão Pedagógica em Singapura, ali estabelecera contacto com alguns
dos grandes pensadores ainda vivos nos anos 20 do século passado, entre os
quais o grande antropólogo e filósofo, também historiador, geógrafo, sociólogo
e epistemólogo Edgar Nahoum Morin, como ele de ascendência judia sefardita, já no
ocaso da vida, mas brilhantemente lúcido, de quem reteve, entre outras, a ideia
do paradigma da complexidade[9],
que preconizava os “Sete Saberes para a Educação[10].
Baseado nestes conceitos, teve a lucidez
e a coragem inusitada de enfrentar na Academia os grandes problemas históricos
de cariz sociológico da sociedade em geral, e da cabo-verdiana em particular,
criando um departamento então improvável, a que deu o nome de Laboratório de Catarse
Histórica, cujo objetivo definiu, parafraseando o filósofo existencialista do
século XX Jean-Paul Sartre (1905-1980), com a máxima “O importante não é aquilo
que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”[11].
Assim, aos 7 saberes para a Educação enunciados por Morin, Imanuel apôs uma
lista de 7 problemas estruturais[12]
ligados à realidade histórica da sociedade, no seio da qual funcionam como inibidores
de comportamento, e por isso chamou às respetivas terapias[13],
que enunciou e sistematizou, “desentupidores de vasos comunicantes”[14],
que se tornaram objeto da catarse pretendida, e cuja programação dividiu em quatro
sessões de aprendizagem pelos alunos, metade teóricas, metade laboratoriais,
ministradas em quatro períodos de seis meses cada: (i)Razão,
Emoção, ou Inteligência e Sensibilidade; (ii)Realidade e Imaginação; (iii)Filosofia,
Ciência e Mitos; (iv)Cosmologia e Arte. Com estes vetores, o grupo de
Especialistas da ALCA dotou a Academia de uma espécie de gládio capaz de
desfazer o nó górdio que tanto afligira as sociedades do século XXI, perdidas
nos meandros obscuros de dúvidas existenciais entrincheiradas em pós-verdades
que por longas décadas alimentaram hostilidades e mesmo guerras que pareciam
insanáveis, alienando carências próprias a alegadas culpas de antepassados, mas
que, para gáudio das correntes mais pacifistas e progressistas, haviam
desaguado na serenidade construtiva dos regimes pacificratas que desde há meio
século foram devolvendo a paz, a concórdia e o progresso à humanidade, mesmo
que à custa das duras experiências suicidas das grandes guerras que afligiram
os grandes poderes fácticos na América, na Europa e na Ásia, nas décadas
conturbadas de 20, 30 e 40 de 2000…
Para lá chegar, as preleções dos
cientistas surfaram como pano de fundo, ligado ao programa de Reflexão do Mind
Tree, “O Fluxo e a Força”, o conceito inovador de Inteligência Híbrida,
corolário do da Inteligência Sintética, que por sua vez o fora de Inteligência
Artificial, que acrescenta às funções analítica e sintética dos dois conceitos
anteriores, cuja aplicação era curativa e corretiva, a vertente generativa,
avançando para projetos de neuro-estimulação, capazes de expandir e potenciar capacidades
intelectuais e motoras ou mesmo de desenvolver funções novas no sistema neurológico
de dendritos, axónios e sinapses dos neurónios, numa reconfiguração biónica ao
mesmo tempo excitante e semeada de desafios.
Para descomprimir, um dia por semana
alunos e preceptores da ALCA rumam a uma das maravilhosas praias da ilha,
Ervatão-Leste, Lacacão, Curralinho,
Varandinha ou Chave, para a prática da componente mais ativa do curso, o surf,
justamente o desporto em que a simbiose entre a força do vento e das ondas, a
capacidade de equilíbrio, de progressão ou travagem, o gozo emocional e o
conforto da razão se conjugam para reproduzir no desporto a linha zen
que conduz à Paz e à Sabedoria Regenerativa…

[1] Terra
escura, argilosa, muito fértil.
[2] Estação Hídrica
de Fecundação Bacteriana das Nuvens. Na época das monções, esta Estação envia
para as nuvens balões que as inundam de bactérias pluviógenas.
[3] Pomar (designação moderna de Escola Superior ou Universidade)
de Investigação Agrícola e Florestal.
[4] Academia
de Línguas e Comunicação Avançada.
Pomar (designação moderna de Escola Superior ou
Universidade) de Investigação Agrícola e Florestal.
[5]
Alfobres, Viveiros e Pomares são as designações dos três estádios de formação
académica atual em Cabo Verde.
[6]
Movimento dos finais do século XX e primeiras décadas do século passado
derivado do acrónimo “alupec” (Alfabeto Unificado Para a Escrita do
Cabo-Verdiano),
[7] Além da
música e da língua portuguesa, o projeto previa ainda a introdução da
disciplina de filosofia com crianças e o acréscimo de outras línguas ao
programa, como o inglês e o francês.
[8]
Universidade Internacional do Caleijão, herdeira do antigo Seminário-Liceu de
S. José, do século XIX.
[9] Segundo
Morin, a complexidade provém da interação da razão e da emoção, do real e do
imaginário, da ciência e da arte.
[10]
(i)Saber
que o conhecimento é propício ao erro; (ii)o saber liga-se ao conhecimento
pertinente (inteligência geral); (iii)saber conhecer-se como ser humano
multidimensional; (iv)saber /conhecer /aprofundar a sua identidade terrena; (v)saber
enfrentar as incertezas; (vi)saber pôr em prática a compreensão; e (vii)saber
pôr em prática a ética do género humano.
[11] Um
carma a seguir celebrizado pelo carismático e malogrado Presidente dos Estados
Unidos da América, John Fitzgerald Kennedy.
[12] “Os 7
pecados capitais da sociedade proto-antropocénica”, como os catalogou Imanuel
Brito, sob o acrónimo P.E.S.C.A.R., prendem-se com deficiências em matéria de
Planeamento, Ética, Sequenciamento, Conhecimento, Articulação e
Responsabilidade.
[13] À falta
de Planeamento, ICB contrapôs, na matéria a lecionar, a programação de exigentes
processos de implantação de Qualidade e de Empreendedorismo; à falta de Ética,
o enaltecimento e valorização da Meritocracia e do culto dos Valores Matriciais;
à falta de Sequenciamento, o Método de Revisão Periódica de Processos; à falta
de Conhecimento consistente, a Investigação Contínua e a aposta na Formação Permanente
dos Formadores; à falta de Articulação, a Economia Circular, que valoriza toda
a ação, seja Económica, de Manutenção Ambiental, Social, Cultural, individual ou
coletiva, a montante ou a jusante; finalmente, para corrigir as deficiências de
Responsabilidade, a que atribui o cerne das disfuncionalidades das sociedades,
ICB sublinha a importância nuclear da Inteligência Emocional, motor genuíno da
motivação para a criatividade, e a Monitorização de toda a Comunicação Pública
por Estações de Desambiguação e Avaliação de Notícias (EDAN).
[14] Os
diversos setores da sociedade, na Política, na Administração Pública, na
Economia, na Jurisprudência, na Sociedade Civil…
[15] Um conceito
muito grato aos cabo-verdianos, com origem na palavra amor-amorável, tornado
viral no desenvolvimento do Método da Catarse Histórica de Imanuel Brito e da
sua equipa, e agora internacionalizado.
[16] Navio
Cruzeiro de bandeira neozelandesa, movido a energias híbridas – atómica, solar
e eólica - de última geração, de 80.000
toneladas e capacidade para 2.700 passageiros, podendo navegar a uma velocidade
média de 50 nós com ondulação normal, em modo de hidrofoil.
[17] A Australian
Research Council financiou a instalação da ALCA e integra a atual
Administração.
[18] A mais
prestigiada e antiga Universidade da Nova Zelândia (fundada em 1869).
[19] Cadeia
hoteleira lançada nos anos 50 de 2000, num conceito inspirado num engenheiro
indiano de Bangalore do final do século XX, cuja particularidade é dar resposta
à procura de um setor de mercado que busca refletir sobre as aspirações
imateriais do ser humano, sob a orientação de personagens eméritos, que
aprofundam nas regiões em que se inserem os diversos saberes da humanidade.
[20] Todos
os hotéis da cadeia Mind Tree oferecem aos clientes que o desejem duas horas de
reflexão diária sobre um tema trimestral ou semestral previamente proposto, sob
a orientação de uma sumidade internacional, que edita e publica no final uma
obra, científica ou artística, resultante da sua interação com os participantes
no programa do referido período.
[21] Ações
de Média Duração.
[22] Conceito recuperado na corrente de pensamento ligada à pacificracia do alter ego definido por Cícero como valorização máxima do “outro”
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