25 - Reminiscências de uma década intensa

     A ideia nativa do blogue que abri há alguns anos sob o designativo “Contos di Prassa” foi a de registar memórias das minhas vivências juvenis na Ilha de Santiago no início dos anos 70 do século passado, sob o signo icónico da Esplanada da Praça Alexandre de Albuquerque, um posto de observação privilegiado do que era a vida na Praia por esse tempo…

    Mas esgravatar memórias é como tirar cerejas do canistrel da colheita; encarnadas, lustrosas e túmidas, enleiam-se aos pares, ligadas pelos pedúnculos, à semelhança de bifurcações de neurónios, que por sua vez se desdobram em sinapses; puxando-se umas às outras, ganham nitidez e brilho, parece que ávidas de gravar linhas em páginas, se o titular lhes der trela, acicatado pela tinta edulcorada e viciante das apetitosas bagas…

    Foi assim que, pelos combros do carreiro das vidas vividas na Praia naqueles tempos áureos, fui rememorando e partilhando em acréscimo também outros passados, em situações e sítios diversos, com pessoas e contextos mutantes, e em tempos de bem antes de eu ser, e de mais para diante no meu devir; e por outras veredas desvendadas, paulatinamente, nos meandros de um arvoredo armado em bosque nas florestas que tenho atravessado, não sei se desperto se sonhando, dei por mim a elucubrar futuros auspiciosos, como quem perscruta, esgueirando-se a predadores, trepando às copas e devassando as nuvens, um céu luminoso prometido, imaginado mas não explicado, entregue ao mistério e à fé de quem quer crer, sabendo embora que é só do presente trémulo e fugaz que se desenha e fabrica o futuro, sempre apressado em virar pretérito, e que uma pessoa só é sujeito ativo se for isso mesmo, ator de mudança, sem o que se resigna a estiolar como agente passivo, perene pagador de promessas e impostos deduzidos de ninharias sem história. Porque lavrar o presente é levantar biota escondida em leiva revirada, alimento para as aves do céu, medrado em terra escondida e descansada, adrede exposta; e semear é apostar num tempo incerto que rapidamente se deixa de ter, como paisagem que se avista em fuga apressada pela janela de um comboio. Só a colheita dirá quanto sobra do que a lavoura prometeu…

    É por isso que não me atardo muito a teorizar sobre o titubeante hic et nunc, que de súbito já não o é, e prefiro aplicar o tempo fugaz a garantir a sementeira no ápice que se esgota, apressando-me de seguida a regar as leiras para que possa brotar em vida nova, efetiva e afetiva, embora certo apenas da incerteza da colheita; e opto, nos vagares, por catar no passado motivação para ser o pouco que sou, ou então por menar um futuro que motive as alegrias parcelares do viver de quem venha.

    Entre o indagar no passado e o projetar o futuro, eis que, de repente, emergindo das sombras do subconsciente, me deparei com umas reminiscências muito vivas, fruto dessas sementeiras e dessas regas, denodadamente laboradas antanho, mas teimosamente apontadas para um devir que ainda não foi ou, quando muito, vai sendo, devagar, timidamente.

    Vou começar por trazer para aqui uma delas, de um tempo não muito vetusto, mas nitidamente datado no pretérito. Foi em 2017, na qualidade de membro da Direção da Câmara de Turismo de Cabo Verde, sucedânea da UNOTUR (União dos Operadores Turísticos), que acompanhei a seu convite o Ministro da Tutela, numa visita de dois dias à ilha do Sal, para que se inteirasse das realidades, potencialidades e constrangimentos a relevar para o exercício do seu mandato como governante do setor. No rescaldo dessa visita houve por bem o Ministro José Gonçalves convidar-me a assessorá-lo, apostando na presumível serventia que poderiam aportar o meu conhecimento e a minha experiência de algumas décadas de intensa atuação na área,  primeiro de fora para dentro de Cabo Verde, e depois nas próprias malhas do tecido da indústria no Arquipélago.

Ministro José Gonçalves

    Havia um plano linear, já algo trabalhado com a assessoria do economista Paulino Dias, entre outros planos anteriores, que passava antes de mais por uma consulta exaustiva à sociedade civil, através de mesas redondas, para as quais foram sucessivamente convidadas as forças vivas de todas as ilhas; em segundo lugar, previa retiros de especialidade, com responsáveis e técnicos setoriais, um sobre Sociedades de Desenvolvimento, outro sobre Legislação aplicável ao setor; em terceiro lugar, reuniões com as Câmaras Municipais, geridas pela Direção Geral, na altura encabeçada por Carlos dos Anjos, e depois por Francisco Martins; em quarto lugar, visitas de estudo, uma delas às Seicheles, um país tido, a par de outros destinos insulares como a Maurícia ou algumas ilhas nas Caraíbas ou na Polinésia, como modelo a estudar, e outra ainda a Portugal, de preparação de protocolos com o Ministério do Turismo e com a respetiva Direção Geral do país irmão; em quinto lugar, a montagem de três órgãos de topo para a estruturação e o desenvolvimento da oferta turística do arquipélago: o Instituto do Turismo, o Conselho Nacional de Turismo e as Organizações de Gestão do Turismo (OGT - DMO em inglês – Destination Management Organizations); finalmente, em modo de corolário, a elaboração de um Plano Estratégico para o Turismo, de um Plano de Marketing e até a ideia exigente de um Código do Turismo. Em suma, todo um estuário de ferramentas que desaguou na encomenda a empresas internacionais especializadas, com o apoio do Banco Mundial, de Master Plans para a concretização do desenvolvimento do Turismo em todas as ilhas do arquipélago.

Economista Paulino Dias                                           DG  Carlos dos Anjos                                                   DG  Francisco Martins
    
    Todo este plano foi concretizado minuciosamente entre 2017 e 2019. Estabeleceram-se agendas, infografias, equipas de trabalho, relatórios e planificação fechada de todo esse processo. O site informativo caboverde-info.com, na rubrica CONSTRUINDO, registou e preserva todos esses documentos, que aí podem ser acedidos, desde relatórios a portarias. É um conjunto vasto de trabalhos articulados e sistematizados que podem e devem ser revisitados por quem estuda ou programa Turismo, ou até em jeito de balanço.

    Mas o que aqui destaco, por a considerar estaminal, é apenas uma das diversas munições que serviram para conjeturar e estruturar as GOPEDST (Grandes Opções do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Turismo), o documento orientador para o setor do Turismo, que veio a ser publicado no Boletim Oficial em janeiro de 2019[1].

    Como meta de partida para outras diligências, tratou-se de elaborar um questionário tendencialmente exaustivo sobre não conformidades e hipóteses de melhoria pelo método do pensamento sistemático (por oposição ao pensamento fragmentado), que se processa pela via do pensamento crítico (por oposição ao pensamento seletivo), na linha filosófica clássica de Sócrates, Platão e Cícero, que propugnam o acesso à aproximação da verdade, do bem e do belo, procurando responder a interrogações de vária ordem, relativas a pensamentos, a suposições, a dúvidas, a contraditório, a implicações, a causas, a consequências, a motivações, a plausibilidades, garantindo no processo autodisciplina e autocorretividade e superando egocentrismos e corporativismos, em nome duma aproximação máxima quanto possível à desejável objetividade. Uma espécie de análise SWOT mais fina, com mais camadas, mais preventiva, mais clássica e mais abrangente, percorrendo uma série de temas em gavetas paralelas mas interligadas e hierarquizadas, neste caso atinentes direta ou indiretamente à esfera de influência da indústria do Turismo, setor transversal à sociedade por excelência, como o da economia, da finança, o da fiscalidade, da política, do investimento, da governança, da gestão, da sociedade, do trabalho, da justiça, o da agricultura, o da indústria, o da técnica, o dos serviços, o do desporto, o da paz, o do respeito pelos povos, o da saúde, o do ambiente, o da cultura, o da ciência, o da arte, o do direito, o do conhecimento, o da educação, o da qualidade, o da comunicação, o do ensino, o da segurança, o da mobilidade, o da articulação, o da qualidade, o da equidade, o da proporcionalidade…

    Esta primeira ferramenta de construção das GOPEDS-T apurou 76 questões, que serviram para lançar a preparação das Mesas Redondas, de que saíram conclusões e recomendações em consequência, após debate aturado de intervenientes cobrindo o espetro da estrutura económica, social e política do país Cabo Verde, e culmina na elaboração do documento orientador do Turismo, as GOPEDS.

1.      Como aceder ao crédito?

2.      Como evitar a concorrência desleal?

3.      Como limitar a economia informal irresponsável?

4.      Como garantir os fornecimentos de primeira necessidade (eletricidade, água, telefone, internet…)?

5.      Como garantir a segurança (jurídica, de saúde, ambiental, instalações, informática, pessoas e bens,…)?

6.      Qual o nível de garantias dos trabalhadores (seguros, leis laborais…)?

7.      A que níveis se situa em CV em cada setor da economia o know how dos recursos humanos em busca de emprego?

8.      Existe oferta adequada de equipamentos e serviços às empresas (hard, soft…)?

9.      Há um serviço expedito de registos de marcas?

10.   Há proteção adequada dos direitos de autor?

11.   Quais os níveis de agilidade dos serviços públicos no combate à burocracia?

12.   Como inteirar-se das obrigações fiscais?

13.   Qual o nível de regulamentação e execução da fiscalidade?

14.   Qual a agilidade do Notariado?

15.   Qual o nível de literacia no mundo empresarial relativamente à planificação dos negócios?

16.   Quais os dados e as ferramentas disponíveis para se fazer um estudo de mercado global e setorial em CV?

17.   Como limitar os constrangimentos provocados às empresas pelo funcionamento lento da justiça?

18.   Sendo certo que a lentidão dos tribunais funciona na prática como um incentivo ao desrespeito pelas leis, porque é que o sistema não consegue retificar esta situação?

19.   Existe empenho em agilizar a justiça, designadamente através da criação de tribunais económicos e industriais para dirimir com rapidez a litigância da macroeconomia, e, por outro lado, de centros de arbitragem, para libertarem os tribunais comuns com a resolução expedita dos pequenos delitos?

20.   Que obrigações tem uma empresa na preservação e melhoria do meio ambiente?

21.   Que função social têm as empresas?

22.   Que enquadramento têm as empresas no âmbito da saúde pública?

23.   Como fomentar nas empresas o culto do nível zero dos índices de corrupção?

24.   Qual a implicação e nível de responsabilidade das empresas no incremento e melhoria da qualidade do conhecimento na comunidade?

25.   Que papel podem e devem as empresas assumir no acesso dos trabalhadores e das famílias à riqueza e à propriedade?

26.   Que valorização é dada em CV à competência nas empresas?

27.   Que valorização é dada em CV ao trabalho/empenho/dedicação à empresa de que se faz parte?

28.   Os incentivos fiscais e económicos são um fator de investimento produtivo, ou tendem a fomentar discriminação e concorrência desleal?

29.   Como podem as empresas em Cabo Verde tirar partido dos comportamentos negativos da finança nas economias ditas desenvolvidas para delas extraírem ilações úteis ao seu próprio planeamento?

30.   Como podem as empresas em CV tirar benefício do exemplo ascensional das economias e das sociedades ditas emergentes?

31.   Quais os capítulos específicos a relevar numa eventual vocação cabo-verdiana para evidenciar valores, conceitos, modos e soluções próprios?

32.   Qual o ponto crítico de charneira entre a flexibilidade de planeamento e atuação das empresas em CV e os hábitos de trabalho e assunção de responsabilidades por parte do staff de colaboradores?

33.   Qual a evolução, no seio das novas gerações em CV, do modo de encarar o trabalho, a assunção de responsabilidades nas empresas, a dedicação aos serviços?

34.   Qual a zona de charneira que liga a flexibilidade de planeamento e reação das empresas e a legislação laboral e empresarial?

35.   Como se adequa em CV a oferta de empregos e a respetiva procura quanto ao género?

36.   Como se pode avaliar a disponibilidade no mundo do trabalho em Cabo Verde para assumir responsabilidades?

37.   Como pode ser melhorada a visão existente do trabalho por parte dos trabalhadores?

38.   Estará em desenvolvimento uma atitude mais empática dos trabalhadores perante as exigências e objetivos dos projetos empresariais em CV?

39.   Que análise pode ser feita no seio da sociedade cabo-verdiana quanto à valorização de atitudes como o empreendedorismo, o risco, ou a emulação construtiva?

40.   Que avaliação pode ser feita quanto ao respeito do cidadão comum pela capacidade e empenho na criação de riqueza através do empreendedorismo ou, por outras palavras, que respeito existe na sociedade cabo-verdiana pela propriedade privada?

41.   A valorização da inteligência emocional faz parte dos métodos e filosofias de formação profissional e de gestão de recursos humanos nas empresas em CV?

42.   As empresas estão a encarar e a valorizar ações de coaching?

43.   Há apetência nas melhores empresas pelo desenvolvimento de processos de certificação de Qualidade?

44.   Que pode ser feito de imediato no âmbito da introdução dos métodos de avaliação contínua de desempenho e de monitorização de resultados nas empresas e na administração pública?

45.   Que incentivos funcionais existem em Cabo Verde, nas empresas, administração e organizações, para o desenvolvimento de uma atitude empreendedora por parte dos Recursos Humanos?

46.   Os programas educacionais apelam ao empreendedorismo como fonte de progresso sustentado e distribuição universal da riqueza?

47.   As ferramentas de aquisição de conhecimento e criação de motivação proporcionadas pelos programas académicos são de molde a incentivar a iniciativa, o risco calculado, a autoestima e o empreendedorismo?

48.   Qual o impacto das ferramentas de e-government no desempenho das empresas em CV?

49.   A função reguladora do Estado é garantia e fator de justiça e qualificação empresarial, como se espera?

50.   Como fomentar a disseminação do empreendedorismo pelas diversas ilhas do arquipélago?

51.   Que modelos empresariais específicos podem contribuir em cada ilha para o respetivo desenvolvimento?

52.   Que modelo de cooperação entre o governo central e o governo local servirá melhor em CV o desenvolvimento local em harmonia com o desenvolvimento global de CV?

53.   Como fomentar a levedação de fermentos das boas práticas empresariais no tecido económico de CV?

54.   Que tipo de cooperação entre o empresariado privado e a administração pública como meio de promover o incremento da qualidade do empreendedorismo em CV?

55.   Que caminho está a seguir a estruturação de plataformas intermodais de transportes interilhas?

56.   As empresas públicas são fator de proteção social e regulação económica, ou, pelo contrário, promovem a discriminação social e tolhem o investimento produtivo associado ao risco?

57.   Que ambiente existe no seio da sociedade cabo-verdiana quanto ao respeito pelos compromissos económicos, financeiros e laborais?

58.   Qual o nível de cumprimento de pagamentos por parte das empresas?

59.   Qual o nível de cumprimento de pagamentos por parte dos cidadãos?

60.   Qual o nível de cumprimento de pagamentos por parte do Estado?

61.   Que hipóteses de sinergias são suscetíveis de ser identificadas na conjugação de esforços entre setores da economia, desde o público ao privado, do governo central aos governos autárquicos, ou entre os diversos setores da economia ou da administração?

62.   Há na economia cabo-verdiana uma preocupação analítica de criar observatórios capazes de descortinar constrangimentos e apontar vias de solução desenhando economias de escala e vantagens competitivas e evitando custos de contexto?

63.   Existe em Cabo Verde alguma organização vocacionada para identificar, relacionar e recolocar em linha de operacionalização o acervo de estudos, reflexões, planificações, conclusões e resoluções produzidas pela sociedade civil ao longo dos tempos?...

64.   Qual o grau de sintonização do ambiente de negócios em CV, quer na esfera da governança, quer na das empresas, quer ainda na do ensino e formação profissional, com o ritmo acelerado das últimas revoluções industriais, com fulcro nas tecnologias de informação e comunicação e na evolução destas para o chamado “ecossistema numérico” ou “integração simbiótica” (internet das coisas, computação na nuvem…)?

65.   Estão as organizações (poder, empresas, ONG…) em CV conscientes das opções económicas (setores primário, secundário, terciário…) adequadas à conquista de um desenvolvimento sustentável para o país?

66.    Como se situa CV numa plataforma global (da economia, da finança, da política, da cultura)?

67.   Quais os caminhos para travarmos um combate vitorioso com a corrupção, a droga, a ausência de valores sólidos?

68.   Qual o grau de empatia das populações com os fluxos de turismo?

69.   Como encara o cabo-verdiano a relação com a sua própria História e a sua Cultura?

70.   Como encara o cabo-verdiano a sua inclusão na História e Geografia Universais?

71.   Como estão a ser aplicados os recursos disponíveis na promoção de Cabo Verde como destino turístico e de investimento?

72.   Cabo Verde tem um portal informativo abrangente, aprofundado e fidedigno?

73.   Cabo Verde cuida do seu património histórico?

74.   Cabo Verde tem estruturas de combate ao tráfico e ao consumo de drogas ilícitas?

75.   Cabo Verde está preparado para combater o crime organizado?

76.   O Sistema de Saúde está apto a servir adequadamente a população, bem como a desenvolver o Turismo, incluindo o sénior?

 

    Respostas a todas e cada uma destas questões, largamente abordadas nas 5 Mesas Redondas (Relatórios em www.caboverde-info.com/Construindo/Mesas-Redondas) e nos 2 Retiros de especialistas (idem) e resumidas nas Conclusões e Recomendações de cada um destes eventos, permitiram, por um lado, a elaboração do documento orientador para o Turismo no horizonte 2018-2030 (GOPEDS-Turismo- Resolução 1/2019 do Conselho de Ministros) e, recorrentemente, a elaboração dos Master Plans por ilha, cobrindo o mesmo horizonte temporal (www.caboverde-info.com/ Construindo/ Masterplan-por-ilha).

     Rememorando todo o afã de reflexão e programação sustentada da Indústria Líder de Cabo Verde na década passada (sem excluir outras jornadas, muito especialmente as que resultaram no excelente Plano Estratégico 2010/2013 - www.caboverde-info.com/ Construindo/ Planeamento-Turismo2 – ou os sete  EITU - Encontros Internacionais do Turismo), aflora a incontornável emergência de se aproveitar o trabalho feito e de construir articuladamente sobre os alicerces já escavados e empedrados, sem prejuízo de investigar, inovar e operar as transições necessárias…



[1] BO N.º 2, I Série, de 09-01-2019


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