29 . Zezinho
O ano de 1989, em que fundei a
Soltrópico em Portugal, foi também um tempo de mergulho nas estruturas ainda
incipientes do Turismo em Cabo Verde, para aquilatar as hipóteses e a dimensão
de uma operação turística que contemplasse o maior número possível de ilhas do Arquipélago,
o objetivo nuclear que me levou a montar o operador. A minha primeira abordagem
foi às agências de viagens que mais se destacavam por esse tempo, a Cabetur na
Praia, do sr. Aquilino Camacho, e a Atlântico no Mindelo, do sr. Guilherme Santos
Ferreira, convicto que estava de que estas duas ilhas, as mais populosas e frequentadas,
fariam com o Sal - na altura a única entrada usual por via aérea em Cabo Verde
-, uma triangulação perfeita para quem quisesse ter uma panorâmica do país, ao
alcance das restantes ilhas.
Quer num caso quer noutro, deparei-me
então com uma certa ideia de exclusivismo, em que os alvarás pareciam conferir
um ligeiro ar de monopólio aduaneiro com direito a sorver percentagens de
intermediação improdutiva a expensas de operadores externos no ramo das
viagens. Como não fazia sentido encarecer à partida a operação em 5% - a taxa que
me foi solicitada à cabeça de qualquer prestação -, procurei alternativas, e
encontrei a Praiatur, do sr. Alfredo Rodrigues, em quem encontrei abertura a conceitos
empresariais e comerciais mais liberais, assentes numa estruturação moderna e mais
escorreita do negócio com base na criação de valor em cadeia a preços ajustados.
A Praiatur tinha acabado de se estabelecer, tal como a Soltrópico, e os
objetivos coincidiam nos dois lados: criar produto novo e serviços de qualidade
que atraíssem clientela também ela de qualidade, que estivesse mais interessada
na oferta turística do que apenas em bilhetes de passagem.
Foi com um destes grupos que o
Zezinho, que manifestamente ganhava gosto pelo trabalho que fazia de conduzir
gente entusiasmada com as paisagens, o sol e as pessoas de Santiago, atraída
pelo exotismo das ilhas menos acessíveis que a do Sal, deu nas vistas, ao ter
de cumular com a da condução a função de guia, por impedimento da Manika, a titular
do cargo na Praiatur por esses tempos. Os elogios chegaram-nos com os
comentários do grupo, e rapidamente se percebeu que cada turista que era
entregue aos cuidados do Zezinho tornava-se um amigo, ao ponto de ele ir sendo
convidado a passar férias em vários pontos de Portugal, e mesmo mais tarde,
quando começaram a chegar franceses, ingleses, italianos, alemães, espanhóis,
noruegueses ou polacos, a empatia era constante, apesar da barreira das línguas
e das culturas. Diversos artigos de viajantes em jornais de vários países
surgiram a apontar a eficácia, a simpatia e a seriedade do Zezinho, de seu nome
José Augusto Rodrigues Monteiro, que entretanto tinha seguido uma formação como
guia, e em quem se podia confiar para a resolução dos mais diversos qui-pro-quo
que sempre aparecem no decurso de um périplo turístico, e o mesmo acontecia com
as mais diversas personalidades, nacionais ou estrangeiras, desde governantes a
empresários, desportistas ou académicos recebidos na Capital pela Praiatur, os
quais bastas vezes não dispensavam a foto conjunta com ele, para memória e
recordação.
De entre os episódios que ao
longo do tempo iam atestando a sensibilidade do Zezinho para quase adivinhar
constrangimentos dos seus clientes, mas sobretudo o empenho em os resolver, há
alguns verdadeiramente notáveis. Em uma das inúmeras vezes que ele levou uma
família ao Tarrafal para uma estadia de alguns dias, desapareceram-lhes os
passaportes. A aflição dos respetivos titulares era compreensivelmente
dramática. Um dramatismo que o Zezinho imediatamente soube partilhar e
neutralizar. Percebendo que se tratava de um furto, não se conformou com a
ideia de que visitantes vindos de longe não só fossem vítimas de tão grave
percalço como ainda que ficassem com a impressão negativa de que tinham vindo a
um destino inseguro. No dia seguinte levantou-se às 4 da madrugada e chegou
muito cedo ao Tarrafal, que conhecia profundamente, pois ali se deslocava quase
diariamente, lidava com muita gente, e sabia de uns ‘piratinhas’ marginais
que costumavam fazer das suas. Feitas as pressões convenientes, o gatuninho
foi denunciado, e os passaportes voltaram às mãos dos donos ao início da manhã.
Uma outra viajante deu-se conta já
no aeroporto, à partida do grupo de que fazia parte, da Praia para S. Vicente, no
programa “Panorama de Cabo Verde”, de que deixara as suas joias no hotel. O
Zezinho foi recuperá-las mas decidiu criar suspense, teve tempo de as
introduzir num coco que comprou numa loja de artesanato e entretanto enviou
para o Sal, última etapa do circuito, ao cuidado do sr. Anacleto Soares, que à
chegada do grupo a Espargos, dias depois, entregou à senhora a prenda, supostamente de
conforto pela perda sofrida… Abrindo-a, o júbilo foi redobrado ao deparar-se,
no interior do artefacto, com os anéis de ouro que já dera por perdidos…
Este exemplo de ‘perdidos e
achados’ documenta lindamente a cumplicidade que se estabeleceu entre as
empresas que nas diversas ilhas lidaram com o turismo que despontava, quantas
vezes sujeito a constrangimentos de vária ordem, no alojamento, no transporte
ou nos serviços, ainda rudimentares, pois criou-se entre os diversos
colaboradores um espírito de entreajuda e de solidariedade uns com os outros e de
todos com os turistas, que honraram e cunharam a marca mais profunda que Cabo
Verde tem para ‘vender’: a morabeza, exaltada com frequência pelos viajantes
ao regressarem a suas casas. Desse período pioneiro, da última década de 900 e dos
primeiros anos de 2000, ficaram-nos memórias e ensinamentos intensos, como
sempre acontece quando encontramos no caminho barreiras novas que temos de
aprender a transpor em conjunto: um desses ensinamentos, em modo de paradoxo, vinha
das apreciações de quem regressava daqueles circuitos com travessias em
embarcações pequenas e baloiçantes, partilhadas com mercadoria, veículos e animais
em sofrimento, alojamento em pensões modestas, embora asseadas, como eram a
Tátá no Tarrafal, o 5 de Julho na Ribeira Grande, a Sodade no Mindelo, a Solmar
na Praia ou a Boa Esperança em Sal Rei, a dizerem maravilhas dos contactos
havidos com as pessoas com quem se haviam cruzado e já com saudades e gana de
voltarem, valorizando as experiências usufruídas com as gentes e a natureza, em
detrimento das pequenas contrariedades, encontradas mas superadas, que
menorizavam, em aparente contraponto com alguma indiferença de apreciação
relativamente à excelsa comodidade dos hotéis em que concluíam o circuito, em
Santa Maria… Um período em que a Companhia Aérea Nacional, TACV, teve um papel inestimável,
ao articular com os operadores, particularmente com a Soltrópico, um conjunto
notável de circuitos que só deixavam de fora Santa Luzia e Brava[1].
Para isso muito contribuíram os dois Delegados que por esses tempos estiveram
em Lisboa, António Cabral e João Mendes, às vezes obrigados a exercícios
contorcionistas para combinarem os raros voos internacionais com as conexões
interilhas, e tendo que encontrar preços competitivos, em face da complexidade
dos trajetos.
Se é comum considerar-se que o Turismo, mais do que paisagens, eventos, atividades as mais diversas ou mergulhos na natureza em terra, mar e ar é também, se não sobretudo intercâmbio emocional, cultural, compassivo e benevolente com pessoas diferentes das que povoam o nosso dia-a-dia, encontros com profissionais como o Zezinho, em quem a dimensão humana absorve e supera as meras expectativas de um serviço bem prestado, muito para além do conhecimento e capacitação técnica, funcionam como uma conexão com novas dimensões, diferenciadas e enriquecedoras, quais sinapses multiplicadoras de capacidade e velocidade de intercomunicação e comunhão, abrindo horizontes novos, inclusivos, que tão bem traduz o feliz slogan “Turismo, Indústria da Paz”, como se através da interação com uma pessoa nos ligássemos de uma assentada a um povo e à sua história…
Zezinho, carinhoso com as crianças
Um dia, nesses tempos de implantação e consolidação de alicerces na construção do que veio a ser um grupo exemplar de operadores na área do Turismo em Cabo Verde, o Zezinho, que recusava liminarmente gorjetas, quis saber a minha opinião sobre se seria curial ou mesmo eticamente recomendável aceitá-las. Provavelmente não estaria à espera que eu o sossegasse, e lhe lembrasse que havia mesmo profissões no ramo da prestação de serviços em que o essencial da remuneração passava por gratificações; ou que acrescentasse ainda que quem gratifica por um serviço, quer mesmo recompensar mais-valias e manifestar o agrado com a prestação e o contacto, e tem prazer nisso, a menos que houvesse algum tipo de chantagem forçada, essa sim, reprovável. Um episódio que espelhava com singeleza a forma como este profissional de eleição se inseriu no cerne de uma visão genuína do que é esta indústria de fazer amizades e de gerar paz e concórdia logo no limiar do relacionamento, que é o Turismo…
Na verdade, uma amizade nasce da benevolência, e quem quer bem a outrem é também beneficente, partilha, doa-se, procurando que as pessoas se sintam confortáveis, incluídas e felizes. Num transfer ou numa excursão com o Zezinho rapidamente se afugenta algum deficit de sono ou se desanuvia alguma desventura. A partilha de uma anedota, de uma estória, a indicação de alguma toponímia ou efeméride à passagem por sítios pitorescos ou com história, diluem humores negativos, aproximam desconhecidos, destravam línguas e criam empatia. E não falta a indicação e eventual paragem nos spots que no trajeto se prestam a enriquecer a reserva audiovisual de recordações, como o Centro de Artesanato de S. Domingos, entretanto encerrado, mas a que sucedeu uma outra atração turística, o Centro de Promoção Ecológica, na Via Circular; a Cabeça da Velha nos Órgãos; os mercados dos Órgãos e da Assomada; o Jardim Botânico de S. Jorge; os ‘coquêro môco’ da Ribeira Seca[2]; as sete barragens da ilha (Poilão, na Ribeira Seca; Faveta, nos Picos; Saquinho, entre a Achada Falcão e a Achada-Lém, em Santa Catarina; Flamengos, na Ribeira do mesmo nome; Principal, idem; Salineiro, na Cidade Velha; e Figueira Gorda, em Pedra Badejo); o Marquês de Pombal, aliás Morro de Engulilança, nos Picos; os poilões[3] gigantes da Boa Entrada, em Santa Catarina, ou da Ribeira Grande, por detrás da Cidade Velha; a Praia dos Namorados na Calheta; algum trapiche, em Monte Negro, na Ribeira de Principal ou na Cidade Velha; ou um artesanato de cestaria em Picos de Cima, ou de olaria em Fonte Lima. E outros atrativos interessantes.
Tem ainda o Zezinho para os momentos mortos uma reserva de alegorias e pequenas fábulas para entretenimento, como aquela em que explica porque fogem as cabras dos carros, ao passo que os cães os perseguem ladrando, enquanto que vacas e burros só abandonam a estrada lentamente e contrariados[6]… Perito em diagnosticar sinais de algum transtorno, é preventivo, ainda que necessariamente reativo a procurar solucioná-lo. Se há crianças pequenas, não lhes falta um carinho do guia-condutor, ou uma paragem não agendada para descomprimir um choro ou o cansaço, e para as crianças mais crescidas há sempre uma estória ajustada à idade ou um desafio consentâneo com a curiosidade ou o grau de aventureirismo que manifeste.
É caso de se dizer que das mãos
do Zezinho parte-se sempre da Praia com a boca doce… E já no avião de regresso,
perdura nas alturas uma sensação de sabura[12],
difusa mas consistente, de uma experiência genuinamente humana, de que
rescende uma aura de confiança na humanidade em algum paraíso natural que se perdera e de certo modo se reencontrou…
[1] Embora
tenha vindo a ser construído um aeroporto na Brava, as condições eólicas
inviabilizaram a sua operacionalidade.
[2]
Coqueiros de troncos retorcidos em caracol, alegadamente embriagados pelos
vapores do trapiche junto do qual cresceram…
[3]
Calabeceiras, embondeiros e baobás
[4] O navio
que transportava a Missão Científica.
[5]
Festividade do Padroeiro S. Nicolau Tolentino, comemorado a 2 de fevereiro.
[6] A
explicação tem que ver com o tempo em que esses animais alegadamente apanhavam
transportes, sendo que as cabras tinham saído sem pagar, os cães não tinham
recebido o troco, ao passo que vacas e burros tinham deixado as suas contas
acertadas…
[7] Época das
chuvas, de julho a outubro.
[8] Em Cabo
Verde, designa um feijão encorpado, semelhante à feijoca cultivada no norte de
Portugal.
[9] Estas
bagas e sementes são utilizadas para confecionar geleias, compotas e frutas
cristalizadas, mas vendem-se ao natural nos mercados como guloseimas para
chupar.
[10] Nome
popular da garça branca boieira
[11] Chlorocebus
cercopithecus aethiopus, trazido do Continente no século XVI.
[12] Prazer,
felicidade (de ‘sabor’)
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