34 - Por um Turismo de Boa Saúde

 

Quando cheguei pela primeira vez a Cabo Verde, em novembro de 1969, um dos temas candentes da atualidade de então era a conclusão dos trabalhos da Missão de Estudo e Combate de Endemias, mais conhecida por Missão das Endemias, uma equipa de 25 operacionais chefiada pelo epidemiologista Dr. Manuel Torquato Viana de Meira, médico-chefe da Missão do Instituto de Medicina Tropical, de Lisboa. Do grupo de trabalho faziam parte o Dr. Henrique Teixeira de Sousa, que além de médico também se celebrizou como escritor, e o Preparador Manuel de Abreu Coutinho. Celebrava-se com justificado entusiasmo e alívio, em particular a superação da malária (paludismo), até então causa não só de muitas mortes no arquipélago, como ainda da incapacitação das populações afetadas para uma vida de qualidade, devido a febres, diarreias, dificuldades respiratórias, anemias e danos vários (cerebrais, cardíacos, pulmonares, renais…). Uma vitória histórica sobre um flagelo secular, graças a um trabalho longo e paciente de drenagem de terrenos pantanosos pelas ilhas, de desinfestação de casas insalubres, combatendo a tradição da criação de gado a domicílio, introduzindo pesticidas e detergentes desinfetantes nos hábitos das populações, instalando meios de diagnóstico e protocolos de terapêutica inovadores naquela altura. O Dr. Meira foi até homenageado com uma rua de seu nome, no Monte Sossego, no Mindelo.
Já antes desta Missão das Endemias, pelo menos uma outra, também dedicada à saúde pública dos cabo-verdianos, chefiada pelo Dr. Almerindo Lessa, estudara durante vários meses em 1956 a Seroantropologia das Ilhas de Cabo Verde, um programa que culminou com duas mesas redondas de alto nível, reunindo no Grémio do Mindelo, em 21 e 24 de julho desse ano, a fina flor de então do corpo médico das ilhas: António Miranda, Henrique Lubrano de Santa Rita Vieira, Henrique Teixeira de Sousa, João Morais, Daniel Tavares, Olímpio Nobre Martins, Manuel Camões e Manuel Meira, a que se juntaram diversos gestores da sociedade civil da época, advogados, professores, industriais, comerciantes, militares, funcionários superiores da Administração Pública, e das quais resultou a publicação, em 1957, de um livro de particular interesse para que se possa perceber a importância das medidas sanitárias empreendidas nesses tempos, que se traduziram desde logo na minimização dos efeitos da grande seca que viria a eclodir no início dos anos 70, em contraponto com os que tinham ocorrido por exemplo nos anos 40, de triste memória.
  

De então para cá foram surgindo esporadicamente surtos de complicações sanitárias diversas (cólera, dengue, covid…), mas foram sendo neutralizadas com maior ou menor rapidez pelo sistema de saúde progressivamente melhorado, permitindo ao Turismo em crescimento retomar de cada vez sem grandes sobressaltos a sua evolução normal de aproximação aos objetivos sucessivamente traçados.

Sem prejuízo de precisões técnicas mais apuradas, que não deixarão certamente de ser trazidas a estas Jornadas, pode assim dizer-se que Cabo Verde, ao dobrar o cabo do milhão de entradas turísticas anuais, aproximando-se a passos largos dos 6 milhões de noites turísticas dormidas na sua rede hoteleira no mesmo período de tempo, pode e deve buscar nichos de especialização dos seus produtos de bens e serviços, de modo a proporcionar a quem nos visita,  e ao mesmo tempo - há que sublinhá-lo -  também aos residentes -, novas garantias e atrativos, mais diversificados e mais qualificados.

Sendo a Segurança (sanitária, mas também física, psicológica, económica, sociológica, ambiental e até jurídica) uma condição determinante das escolhas dos turistas nas suas viagens, importa cuidar de cada uma das faces deste poliedro delicado.

 

Venhamos então ao tema que aqui nos traz, o da Saúde e Bem-Estar, e olhemos para o que dizem as estatísticas, no que respeita à procura dos turistas pela oferta disponível nesta vertente.

O primeiro dado que ressalta aos nossos olhos é o de que cerca de 60% dos viajantes em média se deparam com algum tipo de problema de saúde durante as suas deslocações. Mas ficamos desde logo a saber também que desses 60%, a maioria se resume à conhecida “diarreia do viajante”; e que por outro lado só 3% contraem paludismo; que só 1,5% sofrem de infeções respiratórias; e que complicações mais graves como hepatite A, febre tifóide ou cólera são puramente residuais[1].

Por outras palavras, as preocupações atuais de um destino turístico sustentável quanto à saúde centram-se sem rodeios e antes de mais em garantir serviços de saúde pública para as suas populações, que assegurem também aos visitantes, por um lado um quadro endémico saudável, e por outro um atendimento pronto, tranquilo, desburocratizado e de qualidade em caso de necessidade, num contexto de acordos entre seguradoras dos países de origem e de destino[2], no que respeita a visitantes, numa espécie de paridade semelhante à que foi há muito conseguida em Cabo Verde com a moeda, de modo a assegurar o sossego que só a previsibilidade pode conferir a quem viaja.

Importa, outrossim, relativizar receios catastrofistas que por vezes aparecem sobrevalorizados no comentário público quanto à capacidade de carga turística, um problema que, a meu ver, está ainda distante dos nossos horizontes. Na verdade, analisando com serenidade os números, percebemos que um milhão de turistas/ano não representa mais, em termos médios constantes, do que cerca de 4% de acréscimo à população residente no país, pese embora esta proporção poder subir muito nas ilhas do Sal e da Boavista, quer pela maior incidência dos fluxos de turistas, quer pela exiguidade das suas populações. Uma particularidade a ter em conta ainda assim nas respostas a serem dadas nestas duas ilhas, em quantidade, em diversidade e em qualidade.

Nesta conjuntura, e perante a excelente iniciativa que aqui nos é anunciada de um investimento privado prestes a ser operacionalizado que se inscreve precisamente na busca de respostas a essa procura, com foco específico nos fluxos turísticos crescentes, a pergunta que me ocorre propor a esta plateia de agentes interessados nessas mesmas respostas, é a seguinte: --Dando como certo, em face dos pressupostos atrás aduzidos, que compete ao Sistema de Saúde Público dar resposta às necessidades de cuidados de saúde correntes, quer de residentes quer de visitantes, em quantidade, em diversidade e em qualidade, em que espaço ou dimensão pode ou deve movimentar-se a eventual iniciativa privada de médicos, técnicos de saúde e empresários de dispensa de serviços de bem-estar a quem os procure, e em particular aos turistas?

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Do ângulo de observação em que me situo, que é o da procura, que, como sabem, acompanhei por dentro durante décadas e que sigo ainda com empenho, em especial no âmbito do acolhimento a turistas, individualmente e em grupo, e tentando ser o mais pragmático possível, sem prejuízo de mais e melhores visões, e deixando considerações sobre o core business mais especificamente clínico a quem tem essas competências, eis algumas oportunidades que me parecem promissoras, e alguns desafios que merecem, a meu ver, ser encarados:

A primeira grande oportunidade, e provavelmente a mais óbvia é-nos oferecida pela geografia do arquipélago que é a nossa casa, onde acolhemos quem vem até nós. Ora, como bem sabemos, por vezes acontece que paradoxalmente o que é mais óbvio escapa às nossas análises por se tornar vulgar e corriqueiro, e por isso temos tendência a desvalorizá-lo. Comecemos então por nos questionarmos sobre as motivações mais comezinhas que trazem até nós um número crescente de turistas. O que é que os atrai então a estes dez grãozinhos de terra?

-Parece claro que vêm a Cabo Verde em busca do clima dos trópicos; em busca do sol; em busca do mar; em busca das dunas; em busca dos contrastes paisagísticos das nossas ilhas…

Vem-se a Cabo Verde para a brandura da paisagem, para uma natureza sem ciladas, com uma fauna de aves, sem animais ferozes, tanto em terra como no mar… Valorizar esta base idílica com o conforto organizado e competente de cuidados de saúde e bem-estar, utilizando a água, o ar puro, o contacto corporal, a comunicação emocional e psíquica, recorrendo a hidroterapia, a massagens, a regimes de emagrecimento e aprendizagem de hábitos alimentares saudáveis, ou, indo ainda mais longe, a programas de reflexão e introspeção, eis um desafio que parece impor-se na hora de fazer opções quanto à construção de uma oferta turística complementar aos cuidados básicos de Saúde.

Outra oportunidade que me parece enorme consiste em potenciar um valor que está na raiz da cultura cabo-verdiana e parece adormecido, vítima da agitação dos tempos modernos: a Morabeza. Dir-se-á que é uma ideia sonhadora, e é-o, certamente, mas talvez possa ser muito mais que isso. E eu direi porquê:

v (i)primeiro, porque é mais fácil e mais rápido  desenvolver apetências naturais das pessoas e mesmo das sociedades que as integram, do que modificar os seus comportamentos tradicionais; e o carácter acolhedor e solidário do cabo-verdiano é uma conotação endémica que só se perderá se não for reconhecido, valorizado, acarinhado, estimulado e incentivado, com a vantagem nada negligenciável de se estar a constituir em simultâneo um investimento precioso na valorização e na autoestima dos próprios prestadores de serviços;

v (ii)em segundo lugar, porque, se prestarmos atenção, perceberemos, em acréscimo, que a procura de bens intangíveis por parte de quem viaja em lazer, como a empatia, a comunhão de pensamento e de experiências, ir ao encontro da diversidade e da complementaridade de opiniões e convicções, descobrir a riqueza de novas culturas, fomento de novas amizades, é uma constante nas aspirações mais genuínas de quem viaja, paralelamente aos programas mais visíveis do turismo ativo e das ocupações de lazer.

Uma terceira ideia a explorar é a de se aproveitar a diversidade das nossas ilhas para corresponder à necessidade de espairecer de quem vem até nós quase sempre de um mundo urbano, artificializado e hiper-regulado. Um vasto campo aberto a opções que lhe proporcionem banhos de natureza, liberdade e descontração, e interfaces de simbiose com a cultura e a vida local das populações, agregando à oferta de lazer programas de valor acrescentado que combinem entre si efeitos terapêuticos, educativos, sociais, ambientais e éticos.

Vêm-me à ideia os banhos de limo e areia e os banhos de pocinha, tradicionais na ilha de S. Nicolau, mas não será difícil redescobrir outras tradições regeneradoras na Brava, na Boa Vista, no Maio ou aqui no Sal, sem excluir as outras ilhas, restaurá-las, valorizá-las e convertê-las em oferta turística de primeira água, com especificidade, originalidade e valor acrescentado.

Muito mais haverá a discorrer sobre oferta complementar de Saúde e Bem-Estar em Cabo Verde, mas gostava de terminar este desafio ao debate com uma pequena provocação, benigna mas, a meu ver, nuclear: refiro-me ao problema crónico da conectividade.

E como uma imagem vale mais que mil palavras, olhemos uns minutos para estas infografias[3], que agregam algumas das entidades que em Cabo Verde interagem na complexa construção multipolar em que se movem os fluxos do Turismo, para nos questionarmos até que ponto esta constelação aparentemente tão harmónica e fluente tem aderência no terreno a um grau de planeamento, de operacionalização, de monitorização e de avaliação que torne cada uma delas o elo atuante e eficaz que dela se espera para se chegar aos resultados projetados.



  
Quem sabe, as melhores oportunidades de inovação dos negócios são bem mais acessíveis do que à primeira vista se nos afiguram, e haja apenas, no essencial, que as descortinar nas sombras dos planos e das estruturas já existentes, à semelhança do prestidigitador que vai tirando graciosas pombas e coelhos da sua cartola, com a magia de uma varinha de condão…


Porque afinal, o que ele fez foi juntar saberes prévios, e preparar-se com muito estudo e muito treino…

Muito obrigado.



[1] Bouchaud, 2003

[2] Os seguros de saúde são sem dúvida um tema central a ter em conta por quem investe na prestação de serviços no setor. Falar de saúde preventiva, cuidados de saúde primários, hospitalização, repatriamentos, cuidados paliativos, medicina estética, ou discutir preferências de medicina pública ou medicina privada, faz correr rios de tinta, e a atividade seguradora é de extrema relevância, quer seja assumida e paga pelos Estados, quer seja suportada pelo cidadão, e por isso é indispensável a quem investe saber como se movem as grandes empresas do setor segurador, quais as coberturas dos assegurados, e quem as garante.

[3] 1. Direção Geral do Turismo e Transportes, Ministério do Turismo e Transportes;  2. Federação das Associações de Turismo de Cabo Verde; 3. Direção Nacional da Administração Pública; 4. Associação Nacional de Municípios; 5. Cabo Verde Trade Invest; 6. Núcleo Operacional para a Sociedade de Informação; 7. Casa do Cidadão; 8. Direção Geral de Modernização Administrativa; 9. Inspeção Geral das Atividades Económicas; 10. Instituto de Gestão da Qualidade e da Propriedade Intelectual; 11. Conselho Superior das Câmaras de Comércio; 12. Sociedades de Desenvolvimento Regional; 13. Organizações Não Governamentais; 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20.

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