38 - Halcyon Air
Aquele passarinho, de cauda curta mas de bico alongado e rubro, de vestes coloridas, femininas - passarinha, afinal -, esvoaçando com mestria, rasando as lagoas e os ribeiros em voejos curtos, apressados mas graciosos, traçando, num vaivém infatigável, asas em leque, rotas de azul e branco, tornou-se-me, nas andanças pelos montes e vales de Santiago, ou quando ia ao Fogo ou à Brava, nos céus que cruza, a imagem condensada da companhia aérea que haveria de aproximar a distância entre as gentes das Ilhas da Morabeza. O Zezinho tinha olho apurado para elas, e parava, se as via a jeito de serem fotografadas. E quando, em abril de 2005, foi preciso registar os Estatutos da novíssima Companhia Aérea que dava corpo à ideia, foi o nome científico da pequena ave, halcyon leucocephala, que se impôs, pesquisado pela Guiomar da brochura qua a Bird Life International publicara em 1993 em colaboração com o INIA de S. Jorge dos Órgãos, o santuário mais sagrado, ali no sopé verdejante doi Pico de Antónia, dessas gracinhas de 22 centímetros; e depois, em 2006, perspetivando-se a entrega do primeiro Avião de Transporte Regional (ATR), da Aérospatiale, batizado com o nome de Santa Maria para a Halcyon Air, foi a imagem da “passarinha”, ágil e discreta, estilizada na Contacto Virtual, a quatro mãos, com o Luiz Carvalho, com base nas dezenas de fotos que eu recolhera, estampada no leme do ATR 42-320, em Toulouse, o mesmo vindo a passar-se em 2010 com o ATR 42-500, que lhe sucederia, o Santa Catarina, desta vez com direito a inauguração solene, sob os auspícios do Primeiro Ministro, José Maria Neves, amadrinhado por quem dera o nome à Companhia, a Guiomar, e benzido pelo Padre António Silves Ferreira, na altura Pároco no Sal, em representação do Prelado, D. Arlindo.
A decisão de lançar a Halcyon Air surgiu no termo de prolongados esforços gorados da Soltrópico, em negociar uma parceria consistente com os Transportes Aéreos de Cabo Verde, visando um triplo objetivo, repetidamente exposto à Direção da altura (2004), encabeçada por João Higino (PCA) e Eunice Barbosa (Diretora para a Península Ibérica): (i)continuar a garantir, mediante reserva prévia e disponibilidade, condições de circuito aos turistas individuais que queriam conhecer as ilhas, em continuidade com o que era já prática corrente desde 1990, em programas estudados com os sucessivos Diretores da Companhia em Lisboa, em especial António Cabral, em 1991/92 e João Mendes, de 1993 a 1996, que iam desde uma semana a duas e mesmo a três, envolvendo até 7 ilhas, caso do circuito “Cabo Verde Profundo”; (ii)organizar excursões de turistas, de dia inteiro, a diversas ilhas, partindo do Sal, onde afluía o grosso do Turismo; (iii)em consonância com a abertura da Morabitur, um Operador de direito cabo-verdiano lançado em 1996 numa parceria da Soltrópico com a Praiatur, vocacionado para Recetivo e para o Turismo Interno, lançar uma programação conjunta de turismo interilhas para nacionais e residentes, como forma de lhes proporcionar o conhecimento do país e o usufruto de experiências turísticas, um projeto que viria reforçar o papel das agências de viagens estabelecidas pelas ilhas e estimular o aparecimento de outras, em ilhas ou locais onde se fizesse sentir a necessidade de consolidar ou de inovar a prestação de serviços turísticos.
Tornava-se, porém, notório que, aos olhos dos responsáveis pela Companhia a partir de 1998, o dinamismo deste Operador no encaminhamento de fluxos turísticos para Cabo Verde, mas sobretudo a progressiva criação de estruturas locais em que se empenhou foi sendo visto não tanto como uma oportunidade de partilha de negócios em complementaridade, mas, ao invés, como concorrência hostil em domínios que a Companhia dava mostras de considerar prerrogativa sua. Ao ponto de ter emergido, no Departamento de Promoção e Imagem da Companhia, em finais de 1997, elaborado por duas Diretoras que viriam a fundar uma Agência de Comunicação na Praia, um projeto que visava a constituição de um Operador de Recetivo próprio, com Delegações nos Mercados de Origem, numa pulsão que, naturalmente, excluía o género de parcerias que estávamos a propor, pois curto-circuitava na prática o trabalho dos operadores independentes, quer a montante, quer a jusante… Uma pulsão que se foi adensando até 2003 e foi entupindo os canais de cooperação e desenvolvimento mútuos, até aí fluidos, sem que sucessivos memorandos enviados às Direções de então tivessem logrado desobstruí-los; pelo contrário, e paradoxalmente, foram comprometendo seriamente o ritmo de progressão das operações da Soltrópico, incorrendo os mentores de então nos TACV em um erro lamentável de perceção, em contraponto com os ventos de globalização que sopravam com força crescente, a aconselhar abertura, e não fechamento, e teve como infeliz consequência, ao recusar as parcerias propostas, entre outras a de adiar sine die a solução de um problema cada vez mais sério de conectividade sustentável entre as ilhas, que perduraria no tempo, uma daquelas oportunidades que passam e dificilmente voltam a abrir-se.
No decurso de abundante correspondência trocada[1], cujo teor se foi torvando em nebulosidade progressivamente densa, traduzindo o estrangulamento que nos estava a ser infligido, embora formalmente cordata de parte a parte, e de várias reuniões havidas, na Praia, em Lisboa, e até em Madrid, essa visão hostil não só não se desvaneceu, como veio ao de cima, já não através de mensagens mais ou menos explícitas, mas com atuações subliminares: ao mesmo tempo que eram cortadas à Soltrópico as condições anteriormente disponibilizadas nos voos, quer internacionais quer interilhas, tendo em conta o peso dos circuitos na nossa operação, que atingia 36% do seu volume total, eram facultadas aos nossos concorrentes em Portugal tarifas e condições ainda mais favoráveis que as que tínhamos obtido com o lançamento do charter Lisboa/Sal, em abril de 2004… Este sim, um procedimento claramente retaliativo, francamente hostil e desleal, para não o caracterizar em termos menos benignos, pois foi também autopunitivo para a Companhia, como viria a evidenciar-se mais tarde, o que aumentava a nossa perplexidade...
Perante este cenário de contornos inopinadamente
distópicos, não nos restava, uma vez mais, e a contragosto, outra saída que não
fosse a procura de nova alternativa à parceria com os TACV, velha de 13 anos.
Foi assim que emergiu, dos destroços de uma
relação antiga e promissora com um parceiro de negócios que tínhamos por
confiável e seguro, a Halcyon Air… Um processo complexo, cuja gestão foi
entregue a quem dominava os escaninhos intrincados da aeronáutica, no caso pendente,
e, uma vez mais, o novo parceiro Air Luxor, de Paulo Mirpuri, naqueles anos
assessorado por José Simões Coelho, uma personagem surpreendente, carismática,
daquelas que congregam um potencial elevado de criatividade e de indução de
confiança junto dos interlocutores, comunicativo e empreendedor, com um pendor
para lampejos meteóricos, dos que tanto podem vencer barreiras e orbitar acima
da exosfera como depressa perder altitude e sofrer o impacto do regresso à
atmosfera da realidade comezinha em que os projetos duráveis tendem afinal a desenrolar-se,
se entretanto houver para-quedas que os resgatem...
Num primeiro encontro de agregação de
sócios, no Aeroporto do Sal, no dia 5 de setembro de 2004, reuni, pois, com
Simões Coelho, Astragilda Almeida (da Air Luxor Cabo Verde) e Anacleto Soares
(Morabitur), ficando nesse dia lançado um primeiro desenho das participações da
Companhia num capital que ficou estipulado em cinquenta mil contos, com a
Morabitur à cabeça, a Air Luxor a seguir, aguardando-se a adesão da GDP, da
Soltrópico, da Imobiliária Seabra Baptista, de uma empresa privada de
assistência médica e de várias agências de viagens, ficando José Simões Coelho
mandatado para preparar os Estatutos, completar o quadro de participações e
outorgar a Escritura Pública.
Ainda em setembro de 2004 foi desenhada a
operação do avião esperado, com base no tráfego já em curso gerado pelas
operações da Soltrópico, sem exclusão de outras, designadamente a partir do
Sal, operadas pelos let da Cabo Verde Express, de 19 lugares, num volume
que deveria crescer rapidamente, com a passagem de 2 voos intercontinentais
semanais para 4, no verão que se aproximava, e depois para 6, com operações
oriundas de Paris, Praga e Varsóvia, apoiadas no Recetivo da Morabitur e das agências
do seu Grupo.
Foi a José Simões Coelho que coube negociar,
e fê-lo com mestria, através da Aérospatiale de Toulouse, a aquisição em
leasing do ATR 42-320 em segunda mão, propriedade da Atriam Capital, de
Dublin, em condições financeiras comportáveis, que haveria de chegar a Cabo
Verde em finais de 2006, onde seria registado pela Agência de Aviação Civil (AAC),
com data de 24 de novembro desse ano, com a matrícula MSN 296[2],
depois de uma passagem turbulenta pela Guiné, como se verá mais adiante...
Enquanto isso, a Sociedade Halcyon Air Cabo
Verde S.A. constituiu-se e foi registada em 25 de fevereiro de 2005, sempre
pelos cuidados de Simões Coelho, e o registo dos Estatutos[3]
foi publicado no Boletim Oficial nº 14 III Série, de 15 de abril de 2005, com o
capital de quinze mil contos, subscritos pela Morabitur, Viagens e Turismo, Lda
(35%); Sameg–Serviços de Assistência Médica Geral Lda. (18%); Air Luxor Cabo
Verde, Sarl. (15%); Gabinete de Desenvolvimento e Projetos, S.A. (10%); Seabra
Baptista, Avaliações Imobiliárias, Lda (10%); ClamTour, Viagens e Turismo Lda.
(5%); Agytur, Viagens e Turismo, Lda. (4%); Ecotour, Viagens e Turismo, Lda.
(3%).
A Administração ficou entregue a Paulo
Miguel Corte-Real Mirpuri (Presidente), a José Simões Coelho (Administrador) e
a António Gualberto do Rosário Almada (Administrador).
Negociado o contrato de leasing do
avião no final do verão de 2005, não se antevia no horizonte o início das
operações, tanto mais que os manuais entregues na AAC eram sistematicamente
devolvidos com críticas severas que os especialistas contratados não conseguiam
sanar, ao ponto de se gerar uma cortina brumosa nos contactos de Simões Coelho
com os responsáveis da AAC, que em nada favorecia a ultrapassagem do nó górdio
que se atara à volta da certificação.
Com o leasing a correr e a estrutura
já montada a debitar, num volume de despesas mensais na ordem dos cem mil
euros, somados ao leasing o
contrato de reservas de manutenção, o aluguer de um pequeno Escritório no
Aeroporto da Praia, seguros e salários, entrou em cena a fecunda capacidade
imaginativa e resolutiva de Simões Coelho, que propôs à Administração direcionar
num primeiro momento o avião para Bissau, onde conseguia garantir certificação
rápida, e onde a aeronave tinha garantidas operações regulares e rentáveis, dado
que a Guiné não dispunha de Transportes Aéreos próprios desde a liquidação da
Air Bissau em 1998. A solução foi apresentada informalmente aos sócios da
Halcyon Air, ainda sem detalhes, que a acataram com alívio, ficando a aguardar
o modus faciendi, o mesmo acontecendo com o leaser, a quem
interessava o desbloqueio da situação.
Mas as notícias que começaram a chegar da Guiné
nos primeiros meses de 2006, por vias travessas e diferidas no tempo, sem
sequer ser dado conhecimento aos sócios da Halcyon-Air, nem mesmo os respetivos
detalhes ao Administrador Gualberto do Rosário, foram-se sucedendo em ecos
perturbadores: (i)no dia 14 de fevereiro de 2006 ocorrera na capital da Guiné uma
reunião entre putativos sócios da denominada Halcyon Air Bissau, Lda.:
Astragilda Santos Almeida, gestora da Air Luxor Cabo Verde, Casimiro Nunes
Ferreira Taveira, e Baltasar Alves Cardoso, que subscreveram um capital de um
milhão de francos CFA, assumindo respetivamente 75%, 15% e 10% desse montante;
(ii)dois dias depois, no dia 17 de fevereiro, José Simões Coelho endereçava um
Pedido de Código Binário e Reserva de Matrícula para a aeronave ATR 42-320
Series, SN-296, o avião da Halcyon Air, em espera em Toulouse, uma vez que só
era disponibilizado com a obtenção de um COA, o que significava que o mesmo teria
sido viabilizado na Guiné de forma expedita; (iii)no dia 1 de março ocorre,
sempre em Bissau e sempre sem conhecimento dos sócios da Halcyon Air, a partir
de agora citada como “Halcyon Air Cabo Verde”, a Assembleia Constituinte da putativa
Halcyon Air Bissau SA, em que se transformava a Halcyon Air Bissau Lda., antes constituída
e registada; uma Assembleia protagonizada pelos mesmos três sócios da que se
reunira a 14 de fevereiro para constituir a Sociedade por Quotas, mas em que a
distribuição do capital, agora aumentado para dez milhões de CFA, com abertura
para se alargar a quinhentos mil euros, o equivalente a trezentos e vinte e
sete milhões e quinhentos mil CFA, se alterava com a saída de Astragilda
Almeida, que deixava de ter quota na Sociedade, e a entrada de três novos
sócios: a African Investments and Trading Incorporation, por cedência da
participação de Casemiro Nunes Ferreira Taveira, seu representante legal, de
15% do capital; a Sociedade de Gestão de Participações, SA. com 4% do capital; e
(sublinhando-se aqui de novo, sem lhe ser dado conhecimento e ainda menos
consentimento), da agora cognominada Halcyon Air Cabo Verde, a quem era
atribuída uma participação de 30% no capital, uma quota alegadamente
constituída pelos seus próprios ativos(…); e Baltazar Alves Cardoso, que passava
a deter 51% do capital social. O Presidente do Conselho da Administração designada
é José Simões Coelho, e António Gualberto do Rosário é citado como
Administrador, apesar de, consultado, se ter recusado a aceitar o cargo. O
terceiro Administrador é o acionista maioritário (51%), Baltasar Alves Cardoso.
Em suma, para resolver o problema do atraso
na obtenção do COA em Cabo Verde, criava-se um problema ainda mais intrincado,
com uma Sociedade constituída irregularmente na Guiné, ao arrepio dos Órgãos
Sociais e dos Acionistas da Halcyon Air, que no entanto aparecia por sua vez como
um dos principais acionistas da congénere de Bissau, alegadamente cedendo os
seus ativos como participação social da neófita, com a agravante de os
restantes acionistas em Bissau configurarem ligações conhecidas ao espetro político
local, abrasivo, como se sabia. Uma situação deveras explosiva…
Perante este estado de coisas, e em face
dos procedimentos tornados herméticos de Simões Coelho, o Presidente do
Conselho de Administração, Paulo Mirpuri, que concordava, tal como os restantes
sócios, com uma solução provisória passando por um empréstimo do avião em
operações na Guiné, mas de modo nenhum com a perda de controlo por parte da
Halcyon Air que se desenhava, quis apresentar a sua demissão, comunicando-me
esse desiderato, como promotor e representante dos acionistas com maior
capital, o mesmo sucedendo também com Gualberto do Rosário, agravando-se assim a
situação deveras embaraçosa de vacatura de poder na Empresa, uma vez que ainda
não tinha ocorrido uma Assembleia Geral para eleição dos respetivos Corpos
Sociais, sendo que a efetivação desses pedidos de demissão devia ser feita
perante o Conselho fiscal ou Fiscal Único.
Dada a premência da situação, e na
qualidade de representante dos acionistas Morabitur e Soltrópico, convoquei,
com prévio conhecimento dos Administradores, uma Assembleia com carácter
urgente, para 18 de março (de 2006), que foi adiada, por falta de quorum,
para dia 13 de abril, no Palácio Borja, na altura a sede da Air Luxor, no topo
da Calçada das Necessidades, a qual, para serem validadas as medidas a tomar, teria
de ser universal. Todos os acionistas marcaram presença, ou se fizeram
legalmente representar, exceto a Air Luxor Cabo Verde e a Sameg, precisamente as
duas controladas por Simões Coelho, o que teve por efeito a projetada
Assembleia ter servido apenas para que ouvíssemos de Paulo Mirpuri uma resenha
do estado em que se encontrava a Sociedade e uma análise assertiva dos
procedimentos técnicos e operacionais em curso, de contornos muito
preocupantes.
Houve por isso que convocar uma Assembleia
Geral em boa e devida forma, tomando todas as precauções que se impunham, dada a
superfície de gelo fino em que estávamos a deslizar, mas cuja travessia era incontornável,
para se chegar a terreno firme, e recuperar a normalidade; sem rede, uma vez
que para todos os efeitos a Administração Provisória estava demissionária, e os
restantes Órgãos Sociais estavam por eleger. Apesar de já ter tido que
atravessar na minha vida empresarial turbulências algo emaranhadas,
provavelmente terá sido esta a que se me apresentou mais melindrosa de superar
até então. Além de ser indispensável unir as hostes no objetivo que nos unia,
de levar a bom porto uma companhia aérea, que não era coisa pouca em si, era
imprescindível, em paralelo, neutralizar a deriva em que se convertera a
operação na Guiné, e para isso necessitávamos de respaldo jurídico robusto e de
um Conselho de Administração com peso para derrubar as insidiosas barreiras que
se nos atravessavam no caminho.
Um dos mais conceituados causídicos de Cabo Verde à época, Arnaldo Silva, acedeu ao convite em apoiar-nos juridicamente em equipa com os assessores jurídicos da Soltrópico, Luís Pedro Costa Pulido e da GDP, Dircilena Évora; e Jorge Spencer Lima, um homem conhecido por não temer arrostar com grandes desafios, que em 2004 declinara o convite para integrar a Sociedade, acedeu não só a tornar-se agora o principal acionista da Halcyon Air, mas ainda a arcar com a responsabilidade de Presidente do novo Conselho de Administração, a eleger na Assembleia Geral, convocada, agora com todos os quesitos, para o dia 26 de maio de 2006 na sala de reuniões da ASA, no primeiro andar do Aeroporto Amílcar Cabral, em Espargos, Ilha do Sal.
Uma Assembleia memorável a vários títulos,
de dia inteiro, da qual toda a situação societária sairia esclarecida e sanada,
com a admissão de novos acionistas, com destaque para Jorge Spencer Lima, que
foi também eleito Presidente do novo Conselho de Administração; com a aprovação
de um aumento do capital social de 50 para 100 milhões de CVE, e a respetiva
subscrição na mesma proporção das participações, à exceção de Simões Coelho, a
quem a Air Luxor Cabo Verde cedera as suas ações, e que apenas subscreveu o
aumento em 50%, passando a parcela assim liberta para um novo acionista; foi
entregue toda a documentação da Empresa, em 37 pastas de arquivo
administrativas e jurídicas, 8 pastas de documentação técnica do avião,
contratos firmados e outra documentação avulsa.
Acabou por ser uma reunião globalmente
esclarecedora e cordata, embora a meio da tarde se tivesse levantado por
momentos alguma celeuma com o advogado Amadeu Oliveira, que acompanhou Simões
Coelho a seu pedido, e tentava justificar a todo o custo alguns procedimentos
menos defensáveis do seu constituinte nas diligências com a constituição da Halcyon Air Bissau, mas os
seus pares Arnaldo Silva e Dircilena Évora serenaram os ânimos, alegando que
não competia a esta Assembleia dirimir questões do foro jurídico ou judicial,
as quais, a existirem, seriam tratadas em sede própria, após uma auditoria
externa, cuja adjudicação ficou desde logo aprovada por unanimidade.
Antes da redação definitiva da Ata,
concluída pelos juristas presentes enquanto os participantes confraternizavam
no bar, no extremo oposto do corredor do Concourse Hall, aguardando para
a assinarem, foi aprovado um louvor à anterior Administração por proposta de
Adelaide Lima, “pelo trabalho brilhante que os Administradores cessantes, Paulo
Mirpuri e José Simões Coelho tiveram na condução da Sociedade, tendo em conta
as circunstâncias do Projeto”, aduzindo que “a Halcyon Air Bissau foi a
salvação da Halcyon Air Cabo Verde”.
Sobrava apenas criar condições para a transferência do ATR para Cabo Verde, a razão de ser da Halcyon Air, dando cumprimento às resoluções tomadas agora com toda a segurança estatutária e jurídica na Assembleia.
Foi solicitada de imediato uma auditoria à
BDO (Binder Dijker Otte & Co.) às contas da Halcyon Air Bissau, e recebemos
em 12 de julho um primeiro parecer jurídico relativo à validade das decisões
tomadas pela Companhia estabelecida em Bissau, da autoria da Dra. Janine
Hopffer Almada, que arrasava todas as contratações feitas, salvaguardando ainda
assim os direitos de terceiros de boa fé, cuja responsabilidade teria porém de
ser assumida por quem os induziu em erro, iludindo a respetiva ilegalidade,
pelo que foi denunciado o contrato ao abrigo do qual a aeronave tinha sido
enviada para Bissau, e deposta nas instâncias competentes de Bissau uma
providência cautelar solicitando a interrupção imediata das operações em curso.
A nova Administração tinha em mãos uma
tarefa absorvente, mas teve o cuidado de pacificar a situação criada, muito
graças ao bom relacionamento que o novo Presidente mantinha com toda a gente,
quer em Cabo Verde quer na Guiné, pelo que, chegados a meio do verão, como pode
aferir-se da leitura da ata do Conselho de Administração de setembro, o eixo
das preocupações já estava centrado na aceleração do início das operações, com
a entrega, ainda informal, na AAC da Praia dos Manuais de Operações de Voo e de
Manutenção, no aluguer de um hangar à ASA, na compra das ferramentas de
manutenção, na contratação de um gestor capaz de dinamizar o Escritório, ao
passo que em outubro estávamos a tratar da campanha comercial, do site
para as reservas, da contratação do pessoal de bordo e da definição da respetiva
indumentária, e na reunião do Conselho de Administração de 14 de novembro, na
Praia, com a presença de todos os Administradores, tendo Adelaide Lima sido
substituída por Helena Delgado, e Dircilena Évora sido representada pelo
Presidente, planeava-se o início das operações nas ilhas ainda antes de
terminar o ano, uma vez que estava tudo a postos, faltando apenas o ATR, que
Simões Coelho tudo fazia para reter em Bissau, embora o avião estivesse no chão
havia cerca de dois meses, por ter caducado o respetivo seguro de voo,
resultado de diligências efetuadas junto da Seguradora (Garantia) na Praia. Uma
situação que apenas seria ultrapassada com uma autêntica operação de comandos
magistralmente orquestrada pelo Presidente Spencer Lima, de que me dispenso de
descrever aqui os detalhes.
Em 24 de novembro foi, finalmente, feito o
registo do ATR 42-320 na AAC da Praia, e o avião, finalmente resgatado, chegaria
finalmente à Praia, onde se respirou de alívio, e se preparou, tendo como principal
centro de atração Tito Paris, um portfolio de promoção da Companhia e
das operações em preparação[4].
Em face da demora na atribuição do COA pela
AAC, a Administração, por carta de 30 de março de 2007, entrou em contacto com
os TACV, cuja gestão tinha sido entregue a uma empresa canadiana representada na
Praia por Gilles Filiatrault, dispondo-nos a ceder temporariamente o nosso
avião à Companhia, numa altura em que a mesma carecia de uma aeronave para as
operações agendadas, chegando a ser assinado entre as partes um Memorandum
of Understanding (MOU) para o efeito. Uma diligência bem-vinda, que tinha o
potencial de recriar um clima de colaboração mútua saudável, numa situação em
que as duas partes dela recolhiam benefícios, mas que não resistiria,
infelizmente, às mudanças na gestão da Companhia de Bandeira…
A consolidação da Empresa seguiu, ainda
assim, com passo firme, como documenta a Ata da Assembleia Geral realizada na
Ilha do Sal no dia 13 de abril de 2007, na qual foram tomadas novas medidas
importantes: foi ratificado o aumento de capital decidido pelo Conselho de
Administração, de cem para duzentos mil contos, extensível a duzentos e
cinquenta mil; foi confirmada a cooptação de Helena de Oliveira Delgado como
Administradora, em substituição de Adelaide Lima, que pedira para abandonar o
cargo; deu-se nota da regularização das contas de 2005 e do fecho das de 2006;
aprovou-se a redução do Conselho de Administração de 5 para 3 membros (Jorge
Spencer Lima, Armando Ferreira e Helena Delgado); alterou-se a composição da
Mesa da Assembleia Geral, doravante presidida por um representante a nomear no
prazo de 15 dias pelo novo acionista Taaccia XXI, que passou a deter 19% do
capital social, assumindo a vice-presidência José Pedro Máximo Chantre
Oliveira, e ficando como Secretário Manuel António Lima Mendes.
O capital social representado nesta
Assembleia tinha agora a seguinte distribuição: Jorge Daniel Spencer Lima, 33%;
Taaccia XXI, 19%; Morabitur, Viagens e Turismo, Lda., 15%; Air Luxor Cabo
Verde, S.A., 11,25%; Soltrópico, Viagens e Turismo, S.A., 10%; José Pedro Cohen
Fonseca, 3,75%; Clamtour, Viagens e Turismo, Lda., 2,5%; Agytur, Viagens e
Turismo, Lda., 1%; Qualitur, Viagens e Turismo, Lda., 1%.
No Relatório de Gestão relativo a 2007,
redigido em 26 de março de 2008, a Companhia aparece enfim retratada já quase
de corpo inteiro, com a sede e o pessoal administrativo transferidos para o 2º
Piso do Concourse Hall do Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, na
Ilha do Sal, com uma equipa de 33 colaboradores, desde pilotos, já com os
treinos feitos em Toulouse, a pessoal de bordo e de check-in, equipa de
manutenção, pessoal administrativo.
Mas haveria ainda pela frente quatro longos
meses de espera pela entrega formal do COA à Companhia, que viria a ocorrer
apenas em 18 de julho, um período dedicado quer pela Administração quer pelas
equipas de trabalho a consolidar as complexas estruturas exigidas pela
regulamentação da Aviação Civil, tanto logísticas, como relativas à aeronave, ou
aos diversos patamares de recursos humanos.
Só em 31 de julho de 2008 foram iniciadas
as operações de voo, com a primeira rotação diária Sal/Santiago/S. Vicente/Sal,
seguida, também diariamente, do percurso inverso, um trajeto que estava
desenhado desde 2005, e obteve sucesso imediato, uma vez que passou a permitir a
empresários, turistas e cidadãos em geral programarem deslocações de duração
curta ou média entre as três ilhas, incluindo ida e volta no mesmo dia, entre
as 10 horas e as 16.30, ficando os
horários das 8 às 10 horas e das 16.30 às 18 dedicado a excursões de turismo de
um dia às ilhas com aeródromo não contempladas pelo voo regular diário, ou
seja, Fogo, S. Nicolau e Maio, sendo que a ilha da Boa Vista era servida por um
voo de ligação com o Sal no período antes das 8 horas, perspetivando-se ainda a
programação de voos no final do dia a Dakar, Bissau, Banjul, ou mesmo Las
Palmas.
Com a Halcyon Air finalmente a funcionar e
a faturar, com os quatro aeroportos internacionais em pleno funcionamento (o da
Boa Vista abriria em novembro), balcões de vendas nas agências de viagens em
todas as ilhas com aeroporto, viveram-se tempos de alívio e de justa satisfação
com a superação do sinuoso caminho percorrido para ali chegarmos.
No Conselho de Administração de agosto
(2008) as preocupações trazidas e discutidas prendiam-se agora com a
necessidade de um Estudo de Viabilidade Económica que desse consistência ao
trabalho de planeamento da evolução da Companhia; com uma radiografia de benchmarking
à rede de transportes e de distribuição em Cabo Verde, que nos desse indicações
sobre a dimensão do nicho de mercado a preencher e do ritmo de progressão a
imprimir; com a execução de uma Certificação de Qualidade que desse à Companhia,
além da qualidade dos serviços que conseguia já evidenciar, um nível sustentado
de excelência, através de processos de avaliação e monitorização que detetassem
não conformidades e identificassem oportunidades de melhoria contínua; com a
elaboração de um Código de Conduta da Sociedade e dos seus colaboradores, que
clarificasse os métodos e os objetivos da Empresa, não só económicos,
financeiros e operacionais, mas também sociais, éticos e ambientais; com a
premência de se conseguir uma Direção profissional e especializada, preparada
para garantir com esmero e em tempo útil os objetivos a que nos propúnhamos,
tendo em pano de fundo um acréscimo de qualidade nos serviços a prestar,
acompanhada de uma contenção nos preços… Foi analisada também a campanha de
Imagem, Comunicação e Promoção desenhada pela Contacto Virtual, com base no
logótipo que criara, nas imagens que tinham sido rodadas na Praia, e em alguns slogans
que propunha, tendo sido aprovados dois: “Voamos para aproximar”, e “Cabo Verde
quer ir mais longe”[5].
Foi no dia 1 de setembro de 2009 que entrou
para a Companhia um Diretor Geral, com larga experiência no setor, primeiro nos
TACV e depois na Interisland, dando seguimento à preocupação da
Administração de profissionalizar a gestão da Companhia.
Ou porque não tivesse havido na passagem de
testemunho uma análise circunstanciada da situação concreta da Empresa, de
extrema fragilidade financeira, a exigir comedimento nas despesas, ou porque o
novo Diretor tivesse adquirido a convicção de que a melhor solução para a
Halcyonair era a instalação de uma estrutura maximalista autónoma que lhe
permitisse sair por cima, ou pela conjugação desses dois fatores, certamente
potenciados pela perceção de que a passagem do planeamento e da gestão para as
mãos de um perito experiente seria de molde a superar as barreiras que havia
pela frente, passando desapercebido que numa iniciativa privada, de contornos
bem diferentes dos de uma Empresa Pública, que é respaldada por recursos
públicos repostos a cada ano, a sustentação tem de ser testada e garantida
pelos seus acionistas em cada passo dado, entrou-se num período de gestão em
roda livre, em que os custos se tornaram exponenciais, com a agravante de as
receitas projetadas não se concretizarem, inviabilizadas em boa parte por
sucessivos percalços com as aeronaves.
Um ano depois, a situação financeira da
Empresa tornara-se calamitosa, alguns acionistas estavam exauridos, e apesar da
entrada de novos sócios a permitirem sucessivos aumentos de capital, a solução dos
apertos financeiros que se sucederam passou a depender perigosamente de
financiamentos bancários, na figura de empréstimos obrigacionistas até seiscentos
mil contos, numa altura em que a receita anual bruta da empresa não chegava aos
cinquenta mil contos.
O Memorando de despedida do Diretor Geral, redigido
em modo inusitadamente confiante, era paradoxalmente eloquente ao expor o
enorme desequilíbrio que se criara em um ano entre a estrutura instalada e os
resultados produzidos, sem que nenhuma das recomendações do Conselho de
Administração tivesse sido tida em conta (Estudo de Viabilidade Económica, Benchmarking,
Certificação de Qualidade na Gestão, elaboração de um Manual de Normas de Conduta
dos Recursos Humanos, estabelecimento de acordos com prestadores de serviços já
estabelecidos, incluindo com os agentes de viagens, na venda de bilhetes de
passagem…). Com apenas um pequeno avião a circular, instalou-se um sistema
próprio de handling em todos os aeroportos, o que implicou a admissão de
equipas próprias, de chefes de escala, a aquisição de minibus em várias
ilhas para transporte dessas equipas, tratores GPU, carrinhos de bagagem; abertura
de um call-center no aeroporto da Praia e de lojas de vendas nos
aeroportos do Sal, S. Vicente e Boa Vista, e na Cidade de S. Filipe, no Fogo; abertura
de um balcão de vendas na Casa do Cidadão da Praia; contratação de diversos
angariadores pelas ilhas; aluguer de um bloco de apartamentos para alojar o
pessoal deslocalizado no Sal; cereja no topo do bolo, era a perspetiva de entrada
nos grandes formatos de concorrência com os ‘tubarões’ do transporte aéreo, com
rotas intercontinentais, que passariam pela aquisição de um Boeing 737-800 em
ACMI, e por voos para diversas capitais da África Ocidental, incluindo Abidjan,
Bamako, Conakri, Lagos, Abuja…
Mau grado a capacidade notável do PCA em ir
desencantando soluções para novos fôlegos da Companhia, a ata da Assembleia
Geral de 4 de maio de 2012 já não consegue superar a atmosfera de fim de ciclo
que pairava no ar, ao aprovar as contas relativas a 2011 com a respiração
suspensa, uma vez que refletiam a interrupção de todas as operações durante o
último trimestre do ano, porque o ATR 42-320, Santa Maria, estivera nas
Canárias em longa manutenção, só regressando a Cabo Verde em dezembro, e mesmo
assim só conseguindo voltar a operar em fevereiro, havia três meses, e, por sua
vez, o ATR 42-500, Santa Catarina, teve de voltar à procedência por ter expirado
o respetivo contrato de leasing.
Os artífices da Halcyon Air, todos eles, desde os promotores aos acionistas, aos gestores, aos pilotos, aos mecânicos, ao pessoal de bordo, administrativo e de check-in, se não lograram tornar-se credores da almejada vigência de tão interessante iniciativa empresarial, são-no sem dúvida de terem conseguido pôr de pé e sustentar com qualidade apreciável durante anos inesquecíveis uma operação exemplar de conexão entre quase todas as ilhas de Cabo Verde, numa resposta harmoniosa, profissional, pontual e concorrencial nas suas diversas vertentes, tanto a económica, como a turística, como até a da mobilidade cidadã em geral.
Quanto seja possível abstrair-se do amargo
de boca da cilada na sustentação financeira, a Halcyon Air ficará como uma bela
recordação e como uma inspiração aprazível para novos voos de quem ouse voltar
a tentar, capitalizando as lições que ficaram a pairar…
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